O Condenado Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


volume 1

Capítulo 56: Banhado de sangue

Tércio e Néfi estavam tendo uma luta sangrenta. Ou sendo mais específico, Tércio estava coberto pelo próprio sangue. Haviam cortes por todo o seu corpo, desde as bochechas até suas canelas. Ainda que pequenos e superficiais, era o suficiente para gerar uma imagem diabólica. O preto de seu uniforme mascarava o vermelho, mas as partes rasgadas mostraram fios de vida deixando o hospedeiro.

Apesar da dor que se espalhava por todo o corpo, o garoto, de apenas quatorze anos, aguentou firme, sem sinais de que iria recuar. Seu rosto seguia com uma expressão focada no inimigo à frente, livre de medo ou sinais de agonia. Afinal, por que iria temer o oponente justo agora que estava se acostumando ao oponente?

Determinado a sair vitorioso, seu semblante se tornou resoluto e seus olhos miraram com severidade o adversário. Seu coração palpitante e a empolgação difícil de conter o dizia que estava na hora de elevar o nível da luta.

Discretamente, tentando evitar o olhar investigativo do outro lado, as chamas na mão esquerda de Tércio começaram a mudar de cor, ganhando um brilho azulado. Porém, antes que a transformação estivesse completa, um grito miserável foi ouvido.

Não podendo se dar ao luxo de virar para ver o que havia acontecido, o garoto de cabelo mascado espiou sobre o ombro esquerdo e viu algo preocupante. Arthur se encontrava caído, gritando, e Katrina apontava uma lança para o seu pescoço. E como se não bastasse, O Canibal estava se dirigindo para a carruagem dourada.

Já era complicado o suficiente ter que lidar com Néfi e agora ele também teria de enfrentar aquele homem imensamente grande? Pensar nisso, fez Tércio suspirar. Devia ter continuado no Coliseu dos Condenados. Era mais seguro.

Contudo, já que as coisas estavam se complicando ainda mais, não tinha outra opção, senão lutar usando todo o seu poder. Mas isso era algo que, se tivesse escolha, preferia não fazer.

Vendo o Canibal se aproximar cada vez mais, o Atroz acolhido por Eliza decidiu atacar primeiro. Dessa forma, o fogo em suas mãos brilhou com ainda mais intensidade, chegando a envolver todo o seu braço.

Ele apontou suas mãos para baixo e explodiu as chamas, fazendo com que tudo o que estivesse em sua volta fosse queimado.

Néfi acabou sendo pego de surpresa pela ação repentina e foi obrigado a saltar para trás, para evitar ser engolido pelo fogo.

Foi nesse momento que Tércio, aproveitando a brecha, se virou e se preparou para atacar o Canibal. Mas então, de repente, a porta da carruagem abriu.

Segurando uma pedra, que parecia um pedaço de espelho, em uma das mãos e um cristal vermelho na outra, Serena saiu do veículo. Ela tentou forçar um semblante corajoso, mas seu rosto estava pálido e suas pernas tremiam.

Enquanto estava dentro da carruagem, a neta do duque acompanhou de perto as lutas de seus protetores. Desde que sua tia, Eliza, criou a Equipe de Subjugação, ela ouviu os rumores que falavam sobre o quão poderosos eram os alunos que compunham essa equipe e que eles eram tão fortes quanto os Cavaleiros Reais. Mas hoje, a luta daqueles dois a deixou impressionada. Estavam além de sua imaginação. Eram ainda mais fortes do que pensava.

No entanto, seus inimigos eram terríveis e, em pouco tempo, os dois sofreram grandes ferimentos. Tércio estava coberto por sangue. Mesmo em seu rosto pequenos cortes se acumulavam, contribuindo para que sua aparência fosse mascarada pelo carmesim. Olhar para ele nesse estado era um tanto quanto macabro. E Arthur, apesar de ser bastante ágil, ao ponto de que os olhos mal podiam acompanhar, acabou sofrendo uma derrota esmagadora, de forma que seus gritos agonizantes causaram arrepios na espinha dos novos alunos da academia.

No momento em que Arthur foi derrotado e o Canibal começou a andar em direção a carruagem, as gêmeas se encolheram ainda mais do que quando ouviram o grito miserável. E Isaac, que não era nem um pouco bobo, se afastou da porta.

Serena, por outro lado, segurou forte os cristais que tinha em mãos, ambos dados por seu tio e avô. E reunindo o pouco de coragem que lhe restava, saiu da carruagem. Isaac tentou pará-la, mas quando percebeu, ela já estava do lado de fora.

A valente neta do duque estava apavorada. Sendo franca, sua vontade era de fazer como as gêmeas e se encolher em um canto. Mas Tércio parecia estar em seu limite. Assim sendo, mesmo estando com medo, precisava ajudá-lo.

Não é que Serena tivesse qualquer consideração em relação ao rapaz insuportável responsável por arruinar o bolo de sua festa ― na verdade, seus sentimentos e impressões eram negativos em relação a ele. Porém, seu sonho era ser como o avô, o Duque Griffon, um homem corajoso e de bom coração, disposto a ajudar qualquer um... mesmo plebeus.

Por isso ela encarou aquele homem grande e assustador, e ― a despeito dos braços e pernas trêmulas ― corajosamente apontou o cristal vermelho para ele.

― Um Núcleo Mágico! ― Quando viu a pedra vermelha, O Canibal de repente parou no lugar em que estava e murmurou baixinho enquanto se tornava mais cauteloso.

Do outro lado, ao notar que a pessoa que deveria proteger havia deixado seu lugar seguro por conta própria, Tércio exibiu um semblante severo. Então, exibindo uma expressão no rosto que demonstrava aflição e raiva, gritou:

― O que você está fazendo?! Volte para dentro agor... ― com o canto dos olhos ele viu uma sombra se aproximar feito um raio.

Antes que Tércio pudesse terminar de falar, aproveitando-se de seu descuido, como uma víbora que se esconde nas sombras, esperando o melhor momento para dar o bote, Néfi atacou. Sua espada, fina e flexível, demonstrou uma incrível rigidez e poder de penetração repentinos, quando atravessou o ombro do garoto em um único golpe, perfurando sua carne e atravessando as camadas de pele como se fosse uma simples folha de papel.

Por sorte, a espada não perfurou seu peito, pois no último segundo, Tércio conseguiu inclinar o corpo, evitando um golpe fatal.

Contudo, sua esquiva não o impediu de sofrer um dano devastador.

Uma sensação de queimação envolveu o seu ombro e uma dor aguda se espalhou por seu corpo. Mesmo que o ferimento não tivesse sido mortal, a dor era o suficiente para encher-lhe os olhos.

Mas ele era um garoto forte, que já vivenciou diversas situações perigosas. Quantas vezes foi apunhalado? Ou quantas vezes esteve à beira da morte? Foram tantas, que contar era inútil. Por isso, sem demonstrar medo e nem hesitação, ainda com a lâmina cravada em sua carne, o Atroz colocou Néfi sob um olhar firme. E seus braços queimaram, liberando um calor irresistível.

No entanto, antes que pudesse completar o ataque, o astuto agressor, usando a sola de seu pé gigante e magro, acertou um chute bem no meio do peito do garoto.

O golpe foi tão forte que Tércio vomitou o café da manhã e o almoço de uma só vez. E naquele instante, a espada fina foi arrancada de seu ombro, salpicando sangue no ar.

Ele rolou no chão e bateu contra uma pilha de escombros de uma casa cuja fachada já havia caído há muito tempo. Naquele instante, foi como se o oxigênio do mundo tivesse acabado, pois não conseguiu respirar e sentiu que estava sufocando. Então, colocou a mão sobre o peito e começou a tossir feito um velho viciado em cachimbo que sequer consegue atravessar a rua sem se cansar.

Ao mesmo tempo, agora que o garoto chato já não estava mais em seu caminho, Néfi olhou para Serena como um predador que encontra sua presa. Dessa forma, com a espada fina, levemente manchada de vermelha, em mãos, ele caminhou em direção a ela.

Quando notou que o inimigo esguio andava em sua direção, Serena ficou pálida. Não podia acreditar que Tércio também havia sido derrotado ― ou melhor, quase morreu por sua causa.

Ela só queria ajudar, mas acabou atrapalhando. E o pior: agora havia dois homens muito assustadores indo em sua direção. O primeiro era grande e asqueroso e se aproximava pela frente, carregando um machado horripilante. E ao lado, um sujeito magro e comprido empunhava uma espada enquanto a encarava feito uma víbora avaliando sua comida.

Serena sentiu as pernas tremerem. Quem ela deveria atacar? Em quem deveria usar o Núcleo de Cristal de Monstro?

Essa incerteza fez seu medo aumentar. E assim, sem saber o que fazer, sem saber qual dos dois era pior, ela fechou os olhos e apontou a pedra vermelha para frente e berrou a plenos pulmões:

― Ativar!

Vendo o cristal apontado em sua direção, O Canibal fez uma careta e praguejou em voz baixa. Mesmo Katrina, a Dama de Rosa, que se encontrava logo atrás, mudou de expressão. Ela não sabia de que tipo monstro aquele cristal havia vindo, por isso, teria que ser cautelosa.

Após o comando da jovem, o Núcleo de Mágico começou a emitir um brilho vermelho, que foi ficando mais e mais forte, até que se tornou uma pequena estrela sangrenta.

Quando viu a luz vermelho sangue ganhar força à medida que mergulhava a área ao redor em carmesim, O Canibal segurou seu machado em frente ao peito e exprimiu uma cara séria. Mesmo Néfi parou onde estava enquanto seus olhos se tornavam afiados.

E então, de repente, um raio denso de cor vermelha disparou. O feixe era da grossura do tronco de uma árvore bem desenvolvida, capaz de envolver o tronco de um homem adulto. Seu brilho cintilou pelos escombros das casas, espantando qualquer vestígio de escuridão, mas incapaz de criar uma clareza absoluta. Era como se um mar de sangue tivesse envolvido todo o lugar.

O Canibal, no momento em que viu a luz indo em sua direção, sem pensar duas vezes, se jogou no chão. Ele percebeu, quase tarde demais, que somente um louco tentaria parar aquilo ― e apesar das aparências, ele não era um.

O feixe passou por cima da cabeça do hediondo sujeito encolhido e continuou seguindo em frente, destruindo tudo em seu caminho. Demonstrando sua ferocidade, atravessou diversas paredes, dando a impressão de que eram feitas de papéis. Em meio à destruição, algumas casas foram derrubadas, mas, mesmo assim, a luz não deu sinal de que iria parar.

Com um poder implacável, o raio de sangue cortou a vila e se dirigiu à floresta. De longe pôde sentir o tremor das árvores sendo derrubadas em sequência e mesmo os grunhidos miseráveis de alguns monstros sendo abatidos ecoou em meio ao caos.

E, depois de cruzar o pareceu ser centenas de metros, o feixe enfim começou a perder força e seu brilho foi esvaecendo, até que desapareceu por completo.

Durou apenas um segundo e foi um único disparo, mas a devastação foi tão grande que todos ficaram perplexos, fazendo o silêncio reinar tiranicamente onde antes era um palco de batalha. Mesmo os cavaleiros e os bandidos, que estavam lutando em outro lugar, pararam por um instante para admirar a luz vermelha que mergulhou a vila em um sangue.

O Canibal, encolhido no chão, ficou pálido e começou a suar quando pensou no que poderia ter lhe acontecido se tivesse sido atingido. Ele então olhou para o rastro de destruição deixado para trás, depois para a mão de Serena e em choque murmurou:

― De que diabos de monstro veio aquele núcleo?

Podia-se ver o assombro no rosto de todos. Ninguém esperava que uma pedra tão pequena possuísse tanto poder.

Percebendo a calmaria que estava, Serena lentamente abriu os olhos. Não sabia o que esperar, mas torcia para ter tido sucesso.

Porém, o que viu foi uma linha de devastação que se estendia até a floresta, junto de uma nuvem de poeira que havia sido erguida. Ela tinha ouvido o barulho, só não imaginou que tivesse provocado tamanho estrago. Contudo, o seu alvo se encontrava deitado no chão, sem um único ferimento.

Ela falhou.

Por um instante, Serena ficou surpresa por ter falhado, pois acreditava de verdade que seria capaz de derrotar ao menos um dos inimigos. Mas quando reparou no Canibal a encarando, mirando-a com uma fúria crescente de raiva e indignação, ela entrou em desespero e outra vez apontou o Núcleo Mágico para ele.

― Ativar! ― gritou o mais forte que podia. Mas nada aconteceu. ― Ativar! Ativar! Ativar! ― Serena continuou gritando sem parar, porém o Núcleo de Cristal de Monstro se recusava a obedecer a sua ordem. Não importava o quanto berrasse, nada acontecia.

― Essas coisas só podem ser usadas uma vez, duquesa. Seu vovô não te ensinou isso, não? ― desdenhou o bandido abominável com um sorriso sórdido. E logo em seguida começou a se levantar.

Ouvindo aquilo, Serena se lembrou das coisas que seu avô lhe ensinou sobre o artefato que carregava. Durante o desespero, seus pensamentos pararam de funcionar de forma adequada, mas quando se sentiu ainda mais encurralada e as lembranças começaram a voltar, enfim percebeu o erro que cometeu. E então, sabendo o que iria encontrar, ela olhou para a mão que estava segurando o núcleo.

A pedra, que antes parecia um cristal translúcido com um tom avermelhado, agora estava opaca e se tornava cada vez mais sombria. Seu brilho foi se esvaindo e sua cor sumindo. Até que, por fim, o Núcleo de Cristal de Monstro, se tornou tão preto quanto carvão.

Vendo a pedra preta na mão de Serena, parecia que Néfi havia despertado de um sonho. Se lhe perguntasse, negaria, mas o seu coração foi tomado por hesitação. Aquele raio de luz vermelha era poderoso o bastante para eliminar um homem como ele.

Porém, como foi dito pelo Canibal, aquele núcleo só podia ser usado uma vez. E agora que já foi gasto, não haveria mais nada o que temer. Assim sendo, ele apertou o punho de sua espada e avançou.

 


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