O Condenado Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


volume 1

Capítulo 47: Pés inchados

Sentindo o estômago pesar e com as pálpebras começando a fechar, Tércio perdeu completamente o interesse em Serena. Ele abaixou a cabeça e, sem demoras, entregou-se a um sono plácido que não podia ser perturbado apesar da festa que acontecia ao redor.

E ao perceber aquilo, a preciosa filha do duque ficou boquiaberta, pois quem começou a discussão era o garoto ao seu lado que agora estava dormindo. E isso era de uma tremenda falta de educação. Ao menos, assim pensava. Talvez, se fosse uma pessoa mais impulsiva, teria dito algumas palavras desaforadas. Mas ela se controlou e decidiu retribuir o gesto da mesma maneira: ignorando-o.

Contudo, apesar disso, a frustração de ter sido provocada e não ter tido a oportunidade de retrucar se tornou algo notável devido ao seu semblante aborrecido, com os lábios franzidos, a testa enrugada, os olhos apertados e a respiração pesada.

Aysha olhou para sua filha com uma expressão divertida. No final, a interação entre os dois terminou sendo exatamente como havia imaginado. Afinal, não eram o mesmo tipo de pessoa.

Ela conhecia bem a sua filha e sabia que a garota podia ser mais orgulhosa do que o avô e mais teimosa do que a mãe. E a despeito de não conhecer Tércio a tanto tempo assim, bastava olhar para ele por um segundo para perceber que se tratava de um garoto espontâneo e até um pouco brincalhão. Por isso, comparar os dois com água e fogo, não seria errado.

Seja como for, mesmo que Serena estivesse disposta a comprar uma briga, o ex-condenado havia sido consumido pelo cansaço de seu ataque furtivo. Não demorou mais do que dois minutos para ele começar a roncar tão alto que as pessoas ao seu redor precisaram elevar o tom de voz.

No entanto, seu cochilo não durou tanto quanto era de se esperar. Bastou parte de o bolo ser digerido que ele, com a cara amassada e baba seca grudada no canto da boca, voltou a abrir os olhos.

Mesmo tendo sido por um breve período, foi o suficiente para Tércio se sentir bem melhor. Seu corpo já não estava tão pesado quanto antes e seu estômago se sentia satisfeito, ao contrário do mal-estar de mais cedo.

Se sentindo meio que “renovado”, o pequeno rato esticou os braços e espichou o corpo, soltando um longo suspiro de alívio. A sensação de perceber que a barriga não revirava e resmungava como antes era maravilhosa.

Depois de se espreguiçar e soltar um longo suspiro prazeroso, ele olhou ao seu redor e reparou que a festa estava bastante diferente de antes.

As pessoas não se encontravam mais sentadas em suas mesas, degustando pratos e conversando através de cochichos. Elas agora estavam de pé, espalhadas pelo salão, trocando familiaridades.

Os mais jovens haviam se reunido em um canto para aproveitar de uma conversa animada e desinibida. E os adultos, inspirados pela melodia harmoniosa, foram dançar ao ritmo calmo do piano.

Na mesa ocupada por Tércio, Enri já não mais se encontrava, assim como Calebe. Os únicos que permaneceram ali foram Arthur, Aysha e Serena, que estavam aproveitando de um diálogo divertido, levando em consideração as risadas quase escandalosas da mãe e da filha.

Quando viu Tércio acordar, Aysha sorriu e disse:

― Ah! Até que enfim abriu os olhos. Seu amigo estava aqui nos contando da vez em que um Goblin roubou um baralho para tentar aprender a jogar xadrez.

― Isso parece mentira! ― resmungou Tércio que gastou alguns instantes esfregando os olhos.

― Eu sei! ― concordou Aysha. ― Mas também parece muito divertido. E você, está se sentindo melhor?

A essa altura, o cabelo de Tércio estava tão bagunçado que era como se nunca tivesse o arrumado em toda a vida. Sua roupa se achava em um estado miserável, amarrotada e úmida. Mas sua expressão aparentava estar muito melhor do que quando voltou de seu roubo na cozinha.

― Estou pronto para beliscar alguma coisa ― respondeu ele à medida em que exibia um sorriso divertido.

― Comendo desse jeito, vai virar o “Porcalhão” que encontrei certa vez ― comentou Arthur que estava segurando uma uva. ― O bicho parecia uma leitoa grávida, pronta para dar à luz. Tinha uma barriga redonda e rosa, cheia de pelos do tamanho do rabo de um cachorro saindo do umbigo.

― Parece outra mentira ― comentou Tércio, olhando de lado para o companheiro.

Mas apesar da desconfiança do rapaz, não tirou o mérito da história que fez Serena sorrir.

― Fico feliz que se sinta melhor ― disse Aysha. ― Mas quando for fazer isso de novo, trate de me chamar. É muito egoísta de sua parte guardar toda a diversão só para você.

O comentário brincalhão da duquesa fez o ex-condenado se divertir, arrancando um sorriso singelo de seu rosto. Ele logo tratou de afirmar que da próxima vez, a primeira coisa que fará será convidá-la.

Nos instantes seguintes, o grupo se divertiu falando do rosto amassado e da baba seca no canto da boca do dorminhoco que, por sua vez, não demonstrou nenhum sinal de constrangimento. Arthur também aproveitou para fazer algumas piadas e contar histórias questionáveis. Mas o clima amigável não durou muito tempo e logo o bando passou a prestar atenção na festa acontecendo ao redor.

No entanto, aquilo não foi capaz de prender a atenção de Tércio por muito tempo. Pois apesar da dança requintada, na qual os casais evitavam certos tipos de contato corporal conforme balançavam de uma maneira ritmada, o tédio em seus movimentos e falta de inspiração serviram de tranquilizante para o garoto.

― Que festa chata! ― resmungou ele, revirando os olhos e soltando um bocejo.

― Não é, não! ― afirmou Serena, que ao ouvir aquilo se sentiu atacada. ― Você só fala isso porque não consegue perceber a beleza dos dançarinos e das dançarinas, e não sabe apreciar uma música de qualidade.

― Olha só, princesinha. Uma festa que não tem nenhum bêbado causando problemas ou música alta incomodando os vizinhos, não é uma festa. Comparado a isso, o festival da vila onde eu nasci era muito mais divertido.

― Bêbados? Música alta? Pois esse festival me parece algo um tanto vulgar ― disse Serena com um ar de superioridade e um tom ríspido.

― Mas é aí que está a graça, princesinha. ― Tércio logo tratou de retrucar.

 ― Serena! Meu nome é Serena Griffon. Não se esqueça disso. E, por favor, não tente comparar o baile de hoje a uma festa de bárbaros. ― Ela sabia que estava passando do ponto, mas a maneira daquele convidado inoportuno a tratar fazia seu sangue ferver.

Entretanto, para aumentar ainda mais a insatisfação da anfitriã, Aysha resolveu dar sua opinião sobre o assunto.

― Isso não é verdade, querida. Festivais de camponeses são bastante divertidos. Ah! Eu me lembro da primeira vez em que seu pai me levou para um. Foi tão divertido!

Tomada pelas lembranças do passado, Aysha exibiu uma expressão nostálgica à medida que soltava suspiros delirantes. Ela fechou os olhos e sorriu alegremente enquanto as recordações invadiam sua mente. Percebia-se que a nora do duque havia entrado em um mundo paralelo, perdido no passado.

― Você e o papai iam nesses festivais. ― Entretanto, a despeito do rosto nostálgico de sua mãe, Serena não conseguiu esconder a surpresa.

― Isso mesmo! Nós sempre fugíamos juntos para ir aos festivais das vilas próximas de nossas casas ― respondeu Aysha com alegria.

Serena ainda estava um pouco pasma, mas quando pensava na personalidade de sua mãe, isso não era assim tão inesperado.

Ah, já sei! Tércio, porque não dançamos um pouco? Tenho certeza que vai ser divertido ― propôs Aysha com entusiasmo. Seus olhos brilharam à medida que aguardou ansiosa pela resposta.

― Eu não acho que isso seja uma boa ideia. ― No entanto, a decisão do garoto não foi nada positiva.

― Por quê? Ah, entendo! Você prefere dançar com a Serena, não é? ― Fingindo estar decepcionada, Aysha balançou a cabeça e soltou um leve suspiro. E, logo em seguida, olhou para sua filha com um olhar cheio de significados, que só as duas entendiam.

― Mãe! ― grunhiu Serena parecendo chocada. Em segundos sua bochecha ganhou um tom rosado conforme o constrangimento se manifestava.

― Não há com o que se envergonhar, querida. Vocês dois são jovens. Precisam se divertir.

― Mãe, por favor! ― implorou Serena com olhos suplicantes. A vergonha estava crescendo cada vez mais.

E Aysha, percebendo a expressão acanhada de sua amada filha, exibiu um sorriso divertido, contente em ver a inocência da garota.

― E então, Tércio, o que me diz? Vamos dançar? ― Embora pudesse prolongar essa brincadeira, não desejava causar maiores constrangimento à filha. Assim sendo, voltou a focar no rapaz coberto por cicatrizes, cujo rosto se destacava devido a alguns cortes na bochecha, queixo e testa, e pediu outra vez.

― Mas eu não sei dançar ― justificou-se Tércio com sinceridade.

― Está tudo bem! Eu te ensino! ― Aysha se levantou, pegou o rapaz pelo braço e, antes que ele tivesse a chance de concordar ou discordar, saiu o arrastando em direção a pista de dança.

Tércio, por sua vez, não lutou para se libertar. Apenas a seguiu. Mesmo assim, viu a necessidade de reforçar o que tinha dito antes através de uma brincadeira.

― Parece que você não gosta muito do seu pé!

No centro da pista de dança, a dupla inusitada chamou logo a atenção daqueles ao redor, que lançaram olhares discretos sobre os ombros, para poder ver melhor o que estava acontecendo.

Tércio, além de ser um garoto desconhecido, era também ligeiramente mais baixo e mais novo do que Aysha. Sem falar que, com aquele cabelo bagunçado e a roupa amarrotada, ele sequer parecia ser um nobre. De fato, as cicatrizes que não podiam ser escondidas pelas vestimentas o deixava semelhante a um bárbaro.

Por outro lado, Aysha era uma pessoa bastante conhecida e renomada naquele círculo tão limitado. Uma verdadeira nobre de status elevado, que tinha o respeito de todos ali presente.

Sua postura era sofisticada, seus sorrisos elegantes. Uma dama bela e atraente em cada um dos aspectos que se pode imaginar.

A nobre e o plebeu. Um par que chamou a atenção de muitos, mas não por sua harmonia, e sim por não combinarem em nada.

*Que garoto ousado por dançar com a senhorita Aysha!”

“Aposto que ele a convidou, e por pena, ela aceitou!”

Pensamentos como esses passaram pela mente dos dançarinos que se tornaram plateia. Mas é claro, ninguém ousou dizer uma única palavra em voz alta.

No entanto, apesar de terem reparado no comportamento indiscreto dos demais convidados, os dois não deram atenção e começaram a dançar.

Como Aysha já era mais experiente, e mais alta, ela instruiu Tércio devidamente.

― Coloque sua mão aqui... E a outro deixe desse jeito. ― A nora do duque colocou a mão direita do garoto em sua cintura e, a mão esquerda, ela segurou junto a sua própria. – Assim mesmo! Agora, para frente e para o lado...

Seguindo as instruções, Tércio balançou de um lado para o outro, com movimentos rígidos e hesitantes. Seus olhos, voltados para baixo, atentaram-se para os movimentos da parceira, tentando da melhor maneira possível imitá-la.

Mesmo que nunca tivesse dançado esse ou qualquer outro estilo de dança, ele não demorou muito para se acostumar e pegar o ritmo da coisa. Ou ao menos foi o que pensou.

Contudo, como logo descobriu, ser capaz de mexer as pernas sem tropeçar nos próprios tornozelos não o tornava um grande dançarino.

Os movimentos duros de Tércio logo o fez pisar no vestido de Aysha que era arrastado pelo chão. E não muito tempo depois, foi a vez do pé da mulher sofrer.

Mas Aysha não ficou brava ou coisa do tipo. Ela apenas soltava um “ai” ocasional quando isso acontecia, e então sorria, exibindo uma grande gentileza, e continuava a ensinar os passos corretos.

Os dois continuaram dançando e algumas músicas depois, Tércio enfim começou a pegar o jeito da coisa. Seus erros diminuíram e seus movimentos se tornaram mais naturais.

Seus olhos ainda miravam os pés, para ter certeza de que não cometeria nenhuma grosseria. Mas em certos momentos, ele se permitia levantar a cabeça para encarar a parceira, que continuava graciosa como sempre.

― Você já está se saindo muito melhor ― elogiou Aysha com sinceridade.

– Isso é mais complicado do que pensei. Mas depois que você pega o jeito, fica fácil! ― disse o garoto com confiança, quase se exibindo.

Depois que os movimentos ficaram repetitivos, ficou mais fácil de se acostumar. E para ser sincero, o único motivo de estar conseguindo acompanhar era por fingir que se encontrava no meio de uma batalha e precisava de “gingado” para conseguir vencer.

Aysha e Tércio continuaram dançando por algum tempo, mas quando se sentiram cansados, eles voltaram para a mesa.

Lá, Serena tinha uma expressão emburrada. Ela não conseguia e nem queria, aprovar o comportamento do jovem que possuía a sua idade e que demonstrava um comportamento totalmente diferente de seus companheiros vindos da academia. Mas, ainda assim, sua mãe parecia estar se divertindo bastante e isso tornava a companhia daquela pessoa mais sustentável.

Ofegante, com gotas de suor começando a brotar em sua testa e exibindo um sorriso satisfeito, Aysha voltou a se sentar ao lado da filha que se encontrava entre ela e Tércio. Apesar de seus pés estarem doloridos, tinha se divertido bastante.

Já Tércio aparentava um pouco mais confortável e se sentia pronto para outra. Ainda mais agora que estava começando a pegar o jeito.

No entanto, apesar de músicas mais animadas estarem sendo tocadas no piano, a bela e jovem mãe não tinha planos de voltar para a pista de dança.

― Serena, porque você não leva o Tércio para conhecer o Isaac e as gêmeas? ― sugeriu, depois de controlar a respiração. Mas isso fez logo o rosto da filha se contorcer em descontentamento. ― Já que vocês vão viajar juntos, seria melhor estarem familiarizados um com o outro.

― Quem são? ― perguntou o mais novo integrante da Equipe de Subjugação, curioso.

― São os outros que iremos escoltar ― informou Arthur, que passou toda a noite sentado, apenas observando o que acontecia ao seu redor.

― Isaac é o neto do Conde Eurico e tem a sua idade ― informou Aysha. ― Além dele, também têm as irmãs Iris e Isis, que são filhas do visconde Abner.

Hm... Então eles são os outros que nós vamos escoltar. Bem, eu não estou fazendo nada mesmo ― murmurou Tércio que já foi se levantando.

Ele não tinha muito interesse em conhecer esses nobres que escoltaria até a academia Elefthería, mas a festa estava tão parada que se continuasse ali sentado, acabaria adormecendo de novo.

Tudo bem que dançar foi divertido, mas agora que acabou, já não havia muito o que fazer. E por causa disso, o tédio só aumentava. Ainda mais levando em consideração que a pessoa que mais conhecia ― se é que é possível afirmar isso ― não parecia estar motivado ou ter a mínima intenção de participar das festividades.

Dessa forma, antes mesmo de Serena concordar, ele se levantou e se preparou para ir ao encontro dos outros novatos.

― Já que você também quer conhecê-los, Serena irá fazer o favor de apresentá-los ― Aysha voltou a falar, insistindo no comprometimento da filha.

― Porque eu? ― Entretanto, a garota de cabelo púrpura não estava muito disposta a servir de guia.

― Não seja assim. Você é uma dama e uma anfitriã, não é? Então é natural ajudar alguém que esteja precisando. ― Aysha conhecia bem a sua filha e sabia exatamente o que dizer para convencê-la a fazer algo que não queria.

― Tudo bem! ― E como era de se esperar, apesar de relutante, Serena não foi capaz de negar o pedido da mãe. Ela se levantou com rispidez, deixando evidente sua insatisfação. Em seguida, se aproximou do rapaz mal-educado e falou: ― Vamos! ― Assim que terminou de dizer isso, saiu andando.

Tércio se preparou para segui-la. Mas antes de acompanhá-la, virou-se para Arthur e perguntou:

― Não quer vir junto? ― O companheiro estava muito parado, apesar de sua personalidade não ser das mais acanhadas.

Entretanto, apesar do convite feito com boas intenções, Arthur ainda assim recusou:

― Vou ficar aqui e fazer companhia para a duquesa ― disse ele, exibindo um meio sorriso.

E a partir desse momento, Tércio não insistiu mais

 


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