O Condenado Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


volume 1

Capítulo 46: Trufado

Após Calebe Griffon entrar no local em que as sobremesas eram armazenadas, algumas empregadas e cozinheiros se amontoaram na entrada da sala para ver mais de perto o que aconteceria.

Alguns estavam curiosos para saber o que iria acontecer com o rato furtivo e outros receosos, já que o ladrão de doces era só um garoto.

Calebe tinha uma expressão irritada no rosto enquanto olhava para Tércio que continuava dormindo com a paz de um homem santo de barriga cheia. E aquilo provocou ainda mais a fúria do herdeiro que, sem querer, revelou um tique no olho esquerdo que começou a tremer.

― Seu maldito! Esse é o bolo favorito da minha sobrinha e ele foi feito especialmente para o dia de hoje! Como você vai se responsabilizar por isso? ― berrou com tanta força que sua voz saiu falha no final.

Mas, apesar de seu esforço furioso, Tércio, que com um som de “mhm”, “mhm” se virou para o lado, continuou imperturbável. Ele abriu a boca e do fundo da garganta um ronco abafado e serrilhado surgiu.

― Maldito! ― praguejou Calebe, sentindo-se um tanto frustrado. Era como se o menino estivesse o provocando mesmo no sonho. ― Como se atreve a continuar dormindo com essa cara desavergonhada, depois de ter arruinado o bolo da minha sobrinha, seu folgado?!

Sua voz soou como um trovão e, naquela sala pequena, repercutiu de tal maneira que fez os tímpanos dos curiosos doerem.

Mesmo Tércio, que já havia há muito entrado no mundo onírico ― algo que se notava pelo sorrisinho bobo ocasional ―, não pôde evitar de se curvar, dobrando o corpo feito uma concha, e tapar os ouvidos.

Meio sonolento, ele entreabriu os olhos e com muito esforço tentou olhar para o escandaloso. Mas tudo o que conseguiu ver foi um borrão.

― Até que enfim acordou ― resmungou o Cavaleiro de Palavras Encantadas com um olhar de insatisfação. Ele cruzou os braços conforme franzia a testa ao ponto de suas sobrancelhas quase se tocarem.

A voz rígida provocou uma nova reação em Tércio que balançou a cabeça e esfregou os olhos de uma maneira preguiçosa. Ele se esforçou para olhar para o barulho chato, mas estava com tanto sono que desistiu e voltou a olhar para baixo conforme se preparava para se deitar.

Ei! Ei! Eu estou falando com você! ― Calebe estalou os dedos, tentando chamar a atenção do folgado. Mas tudo o que conseguiu foi provocar sua indignação.

― Aqui... ― Tércio empurrou o tabuleiro no qual os restos do bolo estavam na direção do escandaloso e falou: ― Se você calar a boca e fingir que não viu nada, eu te dou um pedaço.

― Você entende o que está tentando fazer? ― A impaciência do homem de cabelo roxo estava aumentando de tal maneira que começou a coçar o rosto com nervosismo.

― O quê? Você não quer? Então... ― o ex-prisioneiro enfiou a mão suja na sobremesa, arrancou um pedaço coberto por glacê, e lambeu a cobertura. Estava tão cheio que, apesar da vontade, quase não conseguiu engolir. ― Eu amo bolo de chocolate! ― declarou, depois de uma breve pausa para soluçar.

― Isso não é bolo de chocolate ― informou Calebe com uma voz ríspida.

― O quê? Não é?! ― A surpresa do jovem foi tão notável que, por um instante, ele abriu os olhos completamente. ― Mas é tão bom! ― lambeu os dedos para recordar o gosto.

― O recheio é amarelo. É de maracujá trufado.

Tércio teria ficado chocado se tivesse prestado atenção até o final no que foi dito. Mas ele parecia um tanto atordoado, já que seus olhos miravam o chão sem nenhuma firmeza, encarando o vazio como se tivesse alguma reflexão para fazer. Então, o barrido soluçou algumas vezes, colocou a mão na boca e, após um momento de silêncio, falou:

― Estou muito cheio. Talvez se eu dormir um pouco...

Murmurando tais palavras, ele fechou os olhos e, mais uma vez, se preparou para voltar a dormir.

― Pirralho atrevido! ― Calebe se aproximou do esfomeado e, usando as duas mãos, agarrou sua túnica suja de glacê, semente triturada de maracujá e farelo de bolo, e berrou a plenos pulmões enquanto o sacudia: ― Acorda!

A cabeça de Tércio balançou de um lado para o outro, como se fosse um boneco de pano sem vida ou esqueleto. E então, quando o herdeiro dos Griffon enfim parou, o menino abriu os olhos com uma expressão mal-humorada, revelando alguma emoção pela primeira vez.

― Desgraçado! Se fizer isso de novo, eu vou te queimar ― resmungou aborrecido à medida que franzia a testa, apertando os olhos. Tércio continuou encarando o sujeito à sua frente com um semblante azedo. Foi quando percebeu. ― Ah, é você, Calebe? Quer um pedaço de bolo? ― Apontou para os destroços do que já fora uma magnífica sobremesa digna de alguém da nobreza.

A ação fez o segundo filho do duque encarar o menino com certa descrença. Era difícil acreditar que o garoto estava lhe oferecendo os vestígios porcos do crime de maneira tão descarada.

E embora ele tivesse grandes motivos para ficar irado, a ação provocou um suspiro de quem buscava paciência e controle.

― Esse bolo foi preparado para ser servido durante a festa. Você entende o que fez? ― questionou com uma expressão séria, mas mantendo um tom controlado.

― Sim. Eu fui mais rápido ― vangloriou-se Tércio, sentindo-se orgulhoso. ― Mas eu entendo... entendo.

― Entende? ― Calebe demonstrou certa surpresa. Pensou que não receberia nenhuma atenção, mas ao que tudo indicava o garoto ainda tinha alguma consciência.

― Sim. Eu entendo... ― Tércio parou de falar de repente e com um gesto brusco levou a mão à boca.

Ele arregalou os olhos e curvou a cabeça para frente. A sala foi preenchida pelo som de seu estômago revirando conforme seu corpo convulsionava, lutando contra algo que desejava sair.

O jovem lutou bravamente para impedir que tudo o que comeu fugisse antes da hora. Por algum tempo, ele ficou olhando para o vazio, atordoado. E quando enfim conseguiu voltar a “respirar”, sentou-se de pernas cruzadas e coçou a cabeça que, a essa altura, já não possuía mais o penteado.

― Droga! ― resmungou ele. ― Eu comi muito rápido ― lamentou-se com murmúrios.

― Essa é a sua punição por ter sido ganancioso ― Calebe não perdeu a chance de dar uma bronca. ― Francamente! Eu nunca vi ninguém tão esfomeado. Por que esse desespero todo por comida?

― Porque comer é bom. Você deveria comer também. Todo mundo devia.

― Todo mundo se alimenta. Senão acabariam mortos ― afirmou o filho do duque, dizendo o óbvio. ― Anda, levante-se! Vá lavar seu rosto e volte para a fresta. Não vou deixá-lo ficar aqui.

― Não. Eu não quero andar. Estou cheio de mais ― protestou Tércio que se sentia cheio demais para mexer as pernas. ― Eu vou dormir aqui.

E ao dizer isso, ele rolou para o lado e fechou os olhos.

Ei! Abra os olhos! ― Mas o Cavaleiro de cabelo roxo estava determinado a mantê-lo acordado. ― Encontre outro lugar para dormir. ― Calebe agarrou o braço do menino e o puxou.

― Que saco! ― reclamou o ex-prisioneiro, que se levantou com o corpo meio mole.

Até mesmo ficar de pé estava sendo difícil no momento. Sua barriga volumosa tornou seu corpo pesado e cada movimento fazia seu estômago revisar, provocando um forte refluxo.

― Você! ― Calebe apontou para uma mulher parada do lado de fora da sala. ― Ajude-o a se limpar e depois o leve de volta para a festa ― ordenou. Em seguida, virou-se para o guloso e acrescentou: ― Eu vou voltar agora, mas se você não aparecer em dez minutos, venho te buscar.

A expressão do filho do duque era de quem estava dando um ávio sério e que não toleraria ser ignorado dessa vez.

Em resposta, Tércio apenas resmungou alguma coisa, que não deu para entender, e depois saiu acompanhado pela empregada.

***

Alguns minutos mais tarde, com o rosto e as mãos já limpas, o guloso foi “guiado” para fora da cozinha. E agora, mais do que antes, ficava evidente que o penteado feito por Mia tinha sido totalmente desfeito.

Sem nenhum ânimo, ele vagou entre as mesas, esbarrando aqui e ali, mas nunca pedindo desculpa. Seu corpo estava tão pesado que até mesmo andar se tornou um exercício desmotivador.

Com um olhar meio morto, ele andou de forma automática, buscando voltar para o lugar de antes. A música melodiosa do piano tocava ao fundo e os sussurros das conversas se espalhavam pelo salão.

Sem prestar muita atenção no caminho que estava fazendo, Tércio vagou. De tempos em tempos, parava e soltava suspiros desanimados ― Ah! Como desejava se jogar no chão e ficar por ali mesmo.

E então, finalmente, com muito esforço, chegou a uma mesa. Com a cabeça baixa, ele puxou uma cadeira e desabou. Logo em seguida, apoiou o rosto sobre o tampo e fechou os olhos.

Tudo o que queria fazer agora era dormir.

Contudo, isso era mais difícil do que parecia.

A superfície da mesa era gelada, mas isso não o incomodou. Pelo contrário, ele se sentiu ainda mais relaxado. As vozes das pessoas ao redor foram se tornando sussurros distantes e sua consciência aos poucos se afundando na escuridão.

No entanto, apenas quando estava para entrar em um sono profundo, uma voz suave soou do seu lado direito:

― Desculpe incomodá-lo, mas acho que o senhor se sentou no lugar errado. ― A dona da voz cutucou Tércio no ombro de maneira discreta, como se não desejasse ser inconveniente.

― Não é senhor, é Tércio! ― balbuciou, ainda com os olhos fechados.

Ele levantou a cabeça e olhou ao redor. E então notou Arthur sentado ao seu lado esquerdo, assim como Enri, Calebe e Aysha ocupando outros lugares. E com isso, teve certeza de que não tinha cometido um engano.

Depois de confirmar que estava no lugar certo, o jovem desgrenhado e com as roupas ligeiramente molhadas voltou seu olhar preguiçoso para a dona da voz.

Ao seu lado se achava uma garota de cabelos púrpuros e delicados, que caiam sobre seus ombros como uma cascata de águas calmas. Ela usava um vestido delicado, feito de algum tecido leve. E seus olhos puros e expressivos, que logo atraiu a atenção do Atroz, eram azuis como o céu em um dia sem nuvens.

A menina olhou para estranho com curiosidade e um certo divertimento, já que por sua desatenção, ele se sentou no lugar errado cheio de confiança.

Ao mesmo tempo, o ex-prisioneiro continuou encarando a outra com intensidade.

Foi só quando Aysha interveio que ele enfim esboçou alguma reação:

― Serena, esse é Tércio. Ele está junto de Arthur e Enri ― informou a nora do duque. ― Tércio também é da Equipe de Subjugação e vai protegê-la durante a viagem. Na verdade, ele prometeu proteger especialmente você, não é?

Como sempre, Aysha tinha um sorriso simpático e uma voz calma e doce. Sua pergunta foi acompanhada por um olhar cheio de divertimento e significados. E, apesar de ainda estar um tanto desorientado, o rapaz pôde jurar ter visto uma piscadela.

Ah, sério? Perdoe-me pelo meu erro. Eu não quis ser rude ― desculpou-se Serena com sinceridade, que apesar disso não conseguiu esconder a surpresa em seus olhos.

Quando foi apresentada aos outros enviados pela academia, ficou da mesma forma. Mas foi por ter ouvido muitos boatos sobre os alunos que eram da Equipe de Subjugação. E de acordo com tais rumores, eles eram pessoas formidáveis, de força inigualável.

Porém, quando conheceu Arthur, ela não viu nada de formidável ou inigualável nele e o mesmo se repetiu com Tércio.

Em contrapartida, após o pedido de desculpas, o guloso não falou nada. Continuou olhando para ela de uma maneira expressiva. Foi então que, depois de um tempo, ele abriu a boca:

― Você realmente é bonita! ― Embora estivesse fazendo um elogio, sua expressão ainda era de alguém que precisava descansar.

― O- o que você... ― A declaração repentina fez Serena travar. Ela tentou falar algo, mas tudo o que conseguiu fazer foi gaguejar. Suas bochechas coraram, ficando quase no tom do vestido, e, constrangida, desviou o rosto.

Talvez sua vergonha não tivesse sido tão extrema se tivesse esperado pelo comentário. Mas fato é que perdeu completamente a compostura.

― Não é? Eu te disse que ela era bonita. ― Aysha, por outro lado, exibia um sorriso largo. ― Veja só esses olhos. Parecem duas joias. Puxou a mim! ― gabou-se.

― Mamãe! ― Com um tom esganiçado, Serena tentou se impor e interromper a indiscrição da mãe. Mas sua voz saiu sem força.

― Eu pensei que era exagero seu, mas ela é bonita de verdade ― comentou Tércio, exibindo um sorriso brincalhão.

― Ah! Você precisa ver como ela fica quando...

― Para com isso, mãe! ― Antes que algo vergonhoso fosse dito, Serena sentiu a necessidade de intervir. Mas ela sabia que isso não era o bastante para interromper as travessuras da mãe, por isso decidiu mudar de assunto o quanto antes. ― Seu nome é Tércio, certo? Eu agradeço pelo elogio, mas falar tais coisas para uma dama que acabou de conhecer é um tanto quanto rude. Sem falar que também é inapropriado.

― É isso aí, minha sobrinha! Mostre para esse desavergonhado um pouco de modos. ― Calebe louvou a postura da garota e em sequência lançou um olhar de censura para o rapaz, que foi ignorado.

O incentivo do tio ajudou Serena a se recompor e assumir uma postura mais firme. A vergonha diminuiu ao passo que a confiança aumentou.

― Eu só falei o que vi. Se não gostou, não é problema meu. ― Mas Tércio não era uma pessoa muito ponderada e deu atenção para a bronca que recebeu.

― Isso foi... um pouco rude. ― Serena ficou espantada com o comportamento vulgar do rapaz. ― Por um acaso ninguém...

Mas antes que ela pudesse terminar, Tércio a interrompeu...

 ― Se você quiser brigar comigo, deixe pra depois. Porque agora, eu vou dormir. ― Assim que terminou de dizer essas palavras, ele abaixou a cabeça e fechou os olhos.

 


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