volume 1
Capítulo 45: Rato na cozinha
Levou algum tempo até que o duque e Serena cumprimentassem as pessoas da festa.
O prestigiado senhor, considerado uma das figuras mais influentes do reino, conduziu toda a troca de cumprimentos com naturalidade. Afinal já estava acostumado com isso. Mas esse não foi o caso de Serena.
Ela sempre foi muito protegida por seu avô e passou a maior parte da vida acompanhada por sua mãe, por isso não participou de muitos eventos como esse. Para a jovem, a pressão de cumprimentar tantos nobres era grande demais, já que o menor erro afetaria sua imagem. E para alguém da nobreza isso era algo de extrema importância.
Serena manteve um sorriso forçado no rosto e com movimentos rígidos saudou um por um. Quando as pessoas começaram a voltar para suas respectivas mesas, indicando o fim das saudações, ela soltou um suspiro aliviado, mas que não durou por muito tempo, já que ainda havia algo a mais a se fazer.
Acompanhada por seu avô, Serena caminhou em direção a um pequeno palco, que era o local escolhido para acolher a bandeira contendo o brasão da família Griffon.
Enquanto caminhava rumo ao palco, ela passou pela mesa que estava reservada para seus familiares. E foi ao ver o rosto sorridente de sua mãe, acenando com extremo entusiasmo, que Serena se sentiu ainda mais aliviada. Mesmo sabendo que sua maior amiga estaria ali, foi reconfortante poder olhar para um rosto tão encorajador.
No entanto, a garota de quatorze anos ficou um tanto quanto confusa quando viu um rapaz ― um pouco mais velho do que ela própria ― degustando de alguns aperitivos e um homem de cabelo amarelo, que de tão nervoso parecia ser ele o centro das atenções, sentados junto a sua mãe e seu tio.
Serena demonstrou certa confusão ao ver aqueles dois desconhecidos. Sabia que nenhum deles eram amigos de sua mãe, pois sabia que teria sido avisada com antecedência se alguém estivesse vindo visitá-las.
Entretanto, apesar da estranheza inicial, não deu muita atenção ao ocorrido, pois precisava se concentrar em outra coisa. Mas, talvez, ela teria olhado com mais cuidado para aqueles rostos incomuns se tivesse reparado que seu avô possuía a mesma expressão de surpresa que esboçou um segundo atrás.
É claro que o Duque Griffon sabia muito bem quem eram aqueles dois, mas por que eles estavam ali era um mistério? E mais importante, onde estaria Tércio?
O duque olhou para o seu filho com uma expressão significativa, como quem estava pedindo esclarecimento. Contudo, em resposta ao olhar indagador de seu pai, Calebe apenas sorriu meio sem graça.
O Protetor de Aurora fitou Arthur e Enri mais uma vez com estranheza, porém decidiu ignorar o ocorrido e seguir em frente. Poderia esclarecer suas dúvidas quando terminasse o que tinha de fazer.
Ao mesmo tempo em que os dois anfitriões se aproximavam do palco, Aysha, que tinha um sorriso orgulhoso à medida que acompanhava sua filha, decidiu mudar o foco de sua atenção por um segundo.
― Tércio, o que achou da minha filha? Ela é linda, não é? ― Seu tom era de alguém que estava se gabando. E, da mesma forma, esperava receber reconhecimento.
No entanto, apesar de esperar alguma provocação por parte do rapaz, não houve nenhuma resposta. E isso fez Aysha desgrudar os olhos da filha e olhar para o lado, apenas para encontrar uma cadeira vazia.
― Cadê o Tércio? ― perguntou ela, olhando para Calebe.
― Não sei. Quando reparei, ele já tinha desaparecido ― respondeu ele, arqueando os ombros e balançando a cabeça. Apesar de estranhar o ocorrido, seu foco no momento era acompanhar a introdução de sua sobrinha.
― Ele foi por ali. ― Arthur, que estava sentado quase de frente para o filho do duque, estendeu a mão e apontou o dedo para uma porta na qual empregadas entravam e saiam com frequência.
― Aquele garoto ainda não comeu o suficiente? ― Assim que reconheceu o destino escolhido pelo integrante da Equipe de Subjugação, Calebe também percebeu sua motivação. ― Se ele queria mais, era só ter pedido.
― Por que ele não me chamou? ― lamentou Aysha, que diferente do cunhado, sentiu-se insatisfeita por ter sido deixada para trás.
Mas apesar de pensar que seria divertido acompanhar o garoto em uma de suas travessuras, ela logo parou de prestar atenção nisso e voltou a focar em sua filha.
No palco, sem poder se esconder na sombra de seu avô, Serena ficou ainda mais nervosa. Ela apertou e esfregou as mãos uma na outra para tentar se distrair, mas isso não funcionou. Então, abaixou a cabeça e tentou diminuir a presença. Porém, não demorou muito para perceber que estava fazendo algo inapropriado e logo voltou a erguer a cabeça e tentou passar o máximo de confiança. Já o duque, bastante acostumado a tais exposições, continuaou com um rosto rígido.
Serena tinha praticado algumas vezes o que ia dizer. Ao longo do dia, repetiu diversas vezes para si mesma as frases que havia escrito em uma folha. Mesmo assim, quando ficou diante daquela multidão de olhares, sentiu-se tão pressionada que naquele segundo esqueceu completamente de tudo o que havia ensaiado.
As pessoas a encaravam, aguardando pelo pronunciamento. Mas ela, por sua vez, voltou a abaixar a cabeça e esfregar as mãos suadas com mais força. Suas pernas enfraqueceram e seu estômago deu cambalhotas. O palco era muito mais assustador do que tinha imaginado, talvez até mais assustador do que um monstro.
Serena estava cada vez mais se afundando no desespero da timidez. Mesmo se esforçando ao máximo, ela não conseguiu sequer erguer a cabeça.
Mas apenas quando pareceu que ela poderia dar dois passos para trás e fugir, uma mão grossa e áspera, porém cheia de gentileza, tocou o seu ombro.
Serena levantou a cabeça e viu seu avô sorrindo para ela. Era um sorriso desengonçado, mas carinhoso, que ela conhecia muito bem. E graças a ele, seu nervosismo aos poucos diminuiu.
― Eu... É um prazer recebê-los nessa noite tão especial ― disse de maneira automática, lembrando-se do que tinha ensaiado. ― Eu, Serena Griffon, agradeço a todos que, apesar de muito ocupados, dispuseram um pouco de seu tempo para vir até aqui desejar-me boa sorte nessa jornada que se inicia amanhã. ― No começo, sua voz tremia tanto que quase não foi possível distinguir suas palavras, mas à medida que avançou, sentiu-se mais segura, até que seu medo e insegurança foram abandonados.
Terminando seu pequeno discurso, Serena soltou um suspiro aliviado. E logo em seguida o salão de festa foi preenchido por aplausos contidos e respeitosos.
E então, foi a vez do Duque Griffon dizer algumas palavras.
― Assim como minha querida neta, eu agradeço pela presença de todos. Mas a festa de hoje não é só para ela. Também devemos desejar toda a sorte para o neto do Conde Eurico, Isaac Eurico, e as filhas do Visconde Abner, Iris e Isis Abner. ― Aproveitando a introdução do duque, um garoto de aparência reservada e duas meninas com rostos idênticos se levantaram de suas respectivas mesas, e gesticularam para o público. ― Pois bem, divirtam-se! Comam e bebam à vontade.
Dizendo isso, neta e avô deixaram o palco. E as pessoas voltaram a conversar entre si.
Enquanto isso, alguns instantes antes do fim do discurso...
Aysha assistiu sua filha com extremo entusiasmo. Foi a que mais aplaudiu e incentivou, quebrando diversas etiquetas de comportamento. E quando Serena terminou de falar, ela e Enri foram as pessoas que aplaudiram mais alto.
Enri não conhecia a garota ― isso é óbvio ―, mas ele tinha um grande respeito e admiração por qualquer um que pertencesse à família Griffon. E isso foi o suficiente para fazê-lo se sentir emocionado com as palavras simples da menina.
Arthur, por outro lado, estava ficando cada vez mais entediado. Ele não era uma pessoa acostumada a festa e essa em particular estava mais parada do que havia imaginado. Ficar sentado por tanto tempo, apenas aguardando os anfitriões chegarem, foi desgastante.
No começo, ele pensou que esse seria um grande evento e uma comemoração muito divertida ― apesar de feita por nobres, conhecidos por não ser tão extravagantes em público ―, mas depois de alguns minutos tudo o que queria fazer era voltar para o seu quarto e dormir. Assim, o momento de voltar para a academia chegaria mais rápido.
Foi nesse ponto que o duque e Serena deixaram o palco, e caminharam em direção a mesa que deveria ser exclusiva para sua família.
Mas neste momento, antes que os dois chegassem, uma empregada se aproximou discretamente da mesa. Ela estava ofegante e seu rosto pálido como se tivesse visto um fantasma.
A mulher parou ao lado de Calebe e esganiçou com uma voz trêmula:
― Senhor Griffon, é terrível! Um jovem invadiu a cozinha e atacou as sobremesas! Até mesmo o favorito da senhorita Serena, o bolo, não foi poupado e quase completamente destruído! ― A empregada tinha urgência em sua voz enquanto denunciava o trágico ocorrido.
E quando ela terminou de falar, Calebe ficou boquiaberto! Jamais imaginou que alguém seria estúpido o suficiente para tentar destruir a festa da neta do duque. Afinal, quem seria o abusado que ousou destruir as sobremesas? Abusado?
Foi então que algo lhe ocorreu. E ele não foi o único a perceber isso, pois do outro lado da mesa, Arthur soltou um longo suspiro enquanto balançava a cabeça, lamentando o ocorrido.
― Que coisa terrível! ― disse Aysha, parecendo chocada. Ela colocou uma das mãos no rosto e murmurou com uma voz que parecia cheia de lamentação, mas que escondia traços de divertimento. – Porque ele não me chamou? Eu também adoro bolo!
― Quem seria o tolo que cometeria tais atos durante a festa da senhorita Serena? ― Enri estava horrorizado. Não podia acreditar que nesse reino existia alguém que teria coragem de provocar a fúria do duque. ― Senhor Calebe, por favor, deixe isso comigo. Prometo que encontrarei o culpado.
Em um sobressalto, Enri se levantou da cadeira e colocou a mão que não estava quebrada sobre o peito, como uma forma de juramento. Seus olhos brilharam intensamente com intenção de batalha. Estava pronto para trazer justiça ao culpado, mesmo que isso custasse à própria vida.
Mas antes que ele se empolgasse mais, Arthur o cutucou de maneira discreta e sussurrou:
― Ao invés de punir, acho melhor pensar nas desculpas.
E aquilo provocou estranheza por parte do Cavaleiro Real, que não compreendeu o motivo de precisar se desculpar.
― Eu agradeço por sua determinação, mas não há necessidade de se preocupar com isso ― disso Calebe, estendendo a mão e balançando a cabeça. ― Quanto ao culpado, eu mesmo o encontrarei.
Se de fato o responsável pela bagunça fosse quem ele estava pensando que era, então não pegaria muito pesado em sua punição. Mas com certeza lhe daria uma boa bronca.
― Quanto ao delinquente, não há a necessidade de procurar ― afirmou a empregada.
― Então você sabe onde ele está? – Questionou Calebe. E a mulher balançou a cabeça em afirmação. ― Ótimo! Leve-me até ele.
No entanto, antes que o segundo filho pudesse sair, uma voz pesada o parou:
― O que foi? Aconteceu alguma coisa? ― Percebendo a agitação, o duque, que enfim pôde se juntar ao resto de sua família, entendeu que tinha surgido algum problema.
― Não é nada com que o senhor deva se preocupar, pai. É só um rato que precisa aprender bons modos ― dizendo isso, Calebe se virou e saiu.
Na cozinha do salão de festa, em uma sala fechada por uma porta estreita de madeira.
O recinto em questão era duas vezes menor do que a cozinha. A temperatura geral também era diferente, pois ao contrário do cômodo anterior, que era extremamente quente devido aos fornos, aqui a sensação era a de estar desabrigado durante um inverno rigoroso. Não chegava a transformar água em gelo, mas ainda assim era muito frio.
No entanto, a parede dos fundos estava coberta por uma camada fina de gelo, que tinha sua principal concentração em volta de um desenho em forma de um cristal de gelo. Aquela era a parte mais gelada do lugar.
Mas o que mais chamava a atenção, não era a parede congelada e sim o balcão que estava no centro da sala.
Sobre o balcão se encontravam sobremesas e doces de todos os tipos ― tortas de creme e biscoito, pudins, bolos ― ali havia de tudo. Era uma verdadeira exibição adocicada.
O cheiro doce que invadia as narinas e a visão deliciosamente colorida, causava água na boca daqueles que entravam no lugar.
Resistir à tentação de dar uma mordiscada era algo difícil e nem todos conseguiam. A prova disso era que a maioria das sobremesas sobre o balcão estava faltando pedaços. Parecia até que uma tropa esfomeada de ratos havia passado por ali.
No entanto, a verdade era outra. Não foi uma tropa de cem ratinhos famintos que causou toda aquela destruição, mas uma única pessoa. Ou melhor dizendo, um único garoto.
Caído no chão, ao lado dos restos de um bolo despedaçado, que outrora tinha cinco andares, mas que agora não possuía mais do que um e meio, havia um garoto de cabelo longo e despenteado.
Seu rosto e mãos estavam lambuzados de um recheio amarelo intenso. Sua túnica de cor vinho, na região da barriga, podia se notar uma saliência de forma arredondada, forçando o pano a se esticar ao ponto de quase rasgar.
O garoto tinha comido tanto que acabou caindo em sono profundo. Seus roncos despreocupados ecoavam pela sala. E mesmo o frio daquele lugar não foi capaz de incomodar o jovem, que continuou dormindo como um bebê recém-nascido.
Parecia que nada nesse mundo poderia perturbá-lo.
Foi então, que nesse momento, com um estrondo furioso, a porta de madeira foi escancarada. E junto ao barulho, que fez as paredes tremerem, um homem de cabelo roxo e expressão feia entrou.
Calebe Griffon adentrou a sala e olhou em volta, à procura do rato comilão. Ele contornou o balcão, que estava cheio de provas incriminadoras, e viu um menino estirado no chão, com um sorriso abobalhado no rosto.
O garoto estava dormindo tão profunda e tranquilamente que mesmo aquele barulho estrondoso não foi capaz de acordá-lo.
Calebe olhou para o criminoso, que estava dormindo ao lado dos restos de um bolo devastado, e uma veia pulsante apareceu em sua testa. Ele forçou um sorriso, que não escondia em nada a sua raiva, e bufou:
― Seu maldito! Esse bolo é o favorito da minha sobrinha, e ele foi feito especialmente para o dia de hoje. Como você vai se responsabilizar por isso?
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