O Condenado Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


volume 1

Capítulo 44: Espontâneo

― Senhora Aysha!? ― exclamou Enri em tom de espanto ao descobrir o nome da mulher dividindo a mesa com o herdeiro dos Griffon.

― Quem é essa Serena? ― Por outro lado, a identidade da pessoa ao seu lado não chamou tanto assim a atenção de Tércio. ― Isso é um nome?

― É ela que nós viemos buscar ― informou Arthur que também se manteve indiferente à informação. ― Bem, uma das pessoas que viemos buscar.

― Meu marido pensou que com esse nome, nossa filha seria calma e comportada. ― Aysha mantinha um sorriso simpático à medida que falava. ― Mas eu acho que não deu muito certo ― brincou.

― Ah! É a tal neta do duque ― comentou Tércio, sentindo-se momentaneamente curioso. Por causa de sua promessa, estava um tanto interessado em conhecer o rosto daquela que protegeria.

― Sim. Você vai gostar dela. É uma garota muito bonita ― disse a jovem mãe com um tom sugestivo.

― Fiquei ainda mais ansioso para vê-la. ― Tércio decidiu participar da brincadeira.

― Não fique tão empolgado. ― Embora não apresentasse uma expressão tão severa quanto antes, a voz de Calebe continha um notável tom rígido. ― Jamais deixarei minha sobrinha se aproximar de alguém que sequer pede licença antes de ocupar um assento ocupado.

― E também não vou pedir licença para chegar perto da sua sobrinha ― provocou Tércio, que curvou os lábios em um meio sorriso travesso.

Apesar da postura inicial rigorosa do filho do duque, o ex-prisioneiro não o considerou uma pessoa autoritária, como o pai. Não sabia ao certo o motivo, mas sentia que o sujeito escondia certa brandura.

E isso foi confirmado com uma reação divertida à provocação do garoto.

― Mas que fedelho abusado! Ah! Ah! Ah! ― Calebe estava surpreso, mas não conseguiu segurar a gargalhada que surgiu de repente.

― Meu nome é Tércio. ― Apesar da apresentação tardia, existia orgulho em sua forma de falar.

― Fedelho está mais do que bom para você ― respondeu Calebe.

― Você é mesmo tão interessante quanto pensei ― confessou Aysha com um brilho distinto nos olhos.

― Verdade ― Concordou Arthur, que tinha uma expressão curiosa conforme encarava o colega. ― No começo, pensei que fosse do tipo calado que se faz de durão. Mas agora percebo que só estava precisando se soltar.

Enri se sentiu da mesma forma que o líder de um dos grupos da Equipe de Subjugação. Embora estivesse nervoso demais para se expressar, a cada dia ficava mais evidente a crescente espontaneidade por parte do novato.

― Era só pose ― debochou Calebe, que não perdeu a chance de retribuir a provocação anterior.

― Do que você está falando, eu sou durão! ― gabou-se Tércio, enchendo os pulmões de ar e batendo no peito.

Enquanto assistia o novo membro de seu grupo brincar e conversar com nobres como se não fosse grande coisa, Arthur ficou cada vez mais impressionado e até um pouco admirado.

Normalmente, quando plebeus se encontram com pessoas da alta nobreza, eles sempre tentam agir da forma mais respeitosa e submissa o possível, por não querer correr o risco de ofender a outra parte.

Mas com Tércio esse não era o caso. No momento em que chegou ao castelo do Duque, o rapaz de cabelo mastigado e postura simplória não ficou intimidado diante o poder massivo de um nobre e até mesmo desafiou o próprio Protetor de Aurora, uma das pessoas mais importantes do reino.

E agora esse rapaz, que ainda era um desconhecido para Arthur, estava conversando com o atual herdeiro da família Griffon e a mãe da neta do duque. Alguém capaz de ser tão natural em frente a tais figuras importantes só poderia ser descrito com nervos de aço... Ou, meramente, alguém que não se importa.

Enquanto tentava entender se Tércio era um corajoso ou abusado, Arthur se lembrou do que Eliza lhe disse um pouco antes de deixar a academia. Algo dito em particular:

“Aquele garoto é muito fechado, então se puder se aproximar um pouco dele durante a viagem, eu ficarei agradecida!”

Lembrando dessas palavras, o jovem que sempre carregava um par de adagas não pôde evitar suspirar e pensar no quanto a diretora estava enganada.

― O que ela diria se estivesse aqui? ― murmurou Arthur de forma inaudível. O “irmão” caçula da diretora não era nada fechado. Muito pelo contrário.

A conversa entre Tércio e os parentes de Eliza seguia animada. O abusado e Calebe continuaram trocando farpas amigáveis por algum tempo. E Aysha se intrometia fazendo comentários brincalhões, mas sempre com um sorriso simpático no rosto.

Aquela mesa era a mais animada de todo o salão. Tanto é que pescoços curiosos se esticavam a todo o momento para tentar espiar o que estava acontecendo.

Ninguém conhecia aquele garoto, que conversava de forma tão natural com o herdeiro dos Griffon, o que atiçou ainda mais suas curiosidades. Todos eles queriam saber, quem é o menino corajoso?

Mas Tércio, que momentaneamente virou o centro das atenções, não se importou com nada disso e continuou a devorar como um animal selvagem a comida que as empregadas traziam.

Assim que terminava um prato, ele logo pedia outro. Para quem via, parecia que o estômago do garoto era um abismo incapaz de ser saciado.

― Você come bastante, não é? – Comentou Aysha, olhando para os cinco pratos de comida na frente do responsável por fazer a segurança de sua filha. ― Está gostoso?

Shim! – Respondeu Tércio de boca cheia. ― Nunca comi algo tão gosto assim! Quero dizer... a comida da minha mãe era muito melhor. ― Logo tratou de se corrigir.

― Eu fico feliz que tenha gostado da nossa comida, mas será que não daria para você fazer menos barulho enquanto come? ― questionou Calebe com um olhar de desaprovação. O menino nem mesmo estava usando os talheres apropriados.

― Tércio, veja seus modos. ― Criticou Enri, preocupado em manter a aparência. Não sabia se a falta de educação do companheiro era um problema, mas achou melhor se prevenir.

― Você realmente precisa aprender a relaxar ― disse Tércio, desconsiderando o aviso. ― Você sabe quantos anos eu passei comendo restos? Agora que eu posso, vou comer tudo o que colocarem na minha frente.

A fala sobre “restos” do garoto deixou tanto o Cavaleiro Real, quanto Arthur curioso. Eles não faziam ideia do verdadeiro significado daquilo, mas era difícil considerar o comentário como uma mera brincadeira.

O novato, que trazia no corpo diversas cicatrizes, era alguém que Eliza trouxe após um repentino desaparecimento e os dois não sabiam nada sobre ele. Por isso, essa fala simples, despertou os seus espíritos investigativos, pois ali poderia conter pistas de sua origem.

― Bem, se esse é o caso, então não se contenha e coma o que quiser e o quanto aguentar ― disse Aysha, que para demonstrar que não se incomodava com os modos do garoto, entregou um prato contendo um generoso pedaço de carne para o novo “guarda-costas” de sua filha.

Como Tércio estava tão concentrado na comida, os olhares curiosos de seus companheiros de mesa passaram despercebidos. Mas para ele, o fato de Arthur e Enri desejarem saber sobre sua origem não era importante.

A festa continuou e um som calmo de piano tomou conta do salão. O tempo passou e nada do Duque Griffon ou Serena aparecer. Os anfitriões permaneciam ausentes.

Depois de vinte minutos comendo sem parar, Tércio já estava empanturrado, mas mesmo assim, vez ou outra, beliscava um aperitivo que passava por perto.

Os convidados não se importaram com a gulodice do jovem e preferiram preservar uma conversa amigável que aos poucos também foi adotada por Enri, o mais reservado de todos os presentes na mesa. Mas depois de alguns minutos sentadas, Aysha começou a ficar inquieta e de tempos em tempos olhava para a entrada do salão de festa.

― Eles estão demorando muito ― murmurou impaciente.

― Está tudo bem! Todos os convidados já chegaram. Então eles devem aparecer em breve ― disse Calebe, tentando acalmá-la.

E foi como ele disse! Depois de muita espera, uma voz que acabou com a monotonia no salão de festa soou, anunciando a chegada dos mais aguardados:

― Duque Griffon, décimo Mago Supremo, subjugador das Ruínas da Perdição e Protetor de Aurora. E sua neta, Serena Griffon! ― anunciou uma voz que reboou por todo o salão.

Nesse momento, todo o salão se calou. As pessoas param de conversar e o piano parou de tocar, apenas para que as duas figuras fizessem sua entrada.

Essa não foi a primeira vez que um nome foi anunciado. De vez em quando, aquela voz que se sobressaia perante todas as outras soava e, com ela, alguém de nariz empinado aparecia.

No entanto, essa foi a única vez que todos os presentes se calaram e prestaram atenção na entrada do salão.

Mesmo Tércio não foi uma exceção. Até agora ele ignorou toda vez que alguém era anunciado, pois não se importava em conhecer o rosto do nobre que fazia sua entrada triunfante. Mas o nome do duque o fez interromper suas atividades enquanto se virava para encarar a entrada.

Assim que terminou o anúncio, um homem de postura imponente, vestindo um manto roxo, fez sua entrada. Seu rosto era rígido, mas estava acompanhado por um sorriso acolhedor. Ao seu lado se encontrava uma linda garota de pele delicada e longo cabelo púrpura.

Ao lado do gigante Duque Griffon, a menina parecia miúda e frágil, tão indefesa quanto uma lagarta passando pelo processo de transformação, imóvel, em seu casulo. Ela vestia um vestido rosa claro, que quase parecia transparente na altura do joelho para baixo. Seus olhos eram azuis-claros e em seu rosto um rubor fazia-se visível, denunciando seu nervosismo e vergonha.

O duque caminhou em frente a passos lentos e um ar digno rodeou todo o seu ser. A neta tentou manter a compostura, mas suas mãos apertavam o vestido conforme os olhares curiosos a pressionavam.

Tércio esticou o pescoço e tentou espiar Serena, aquela que protegeria durante a volta para a academia. Mas ele não conseguiu vê-la com clareza, pois a mesa em que estava ficava um pouco longe da entrada do salão de festa.

No entanto, o pouco que viu foi o suficiente para confirmar que Aysha não estava mentindo. Serena parecia ser de fato uma menina muito bem-apessoada.

― Eles enfim chegaram! ― exclamou a mãe cheia de alegria, que se levantou e começou a aplaudir.

Enquanto andavam, muitas pessoas se levantaram de suas mesas para cumprimentar o duque e sua neta, o que tornou difícil seguir em frente.

Contudo, mesmo se o caminho estivesse livre, eles não iriam diretamente para onde Tércio e os outros acampavam, pois eram os anfitriões e como tal tinham o dever de receber os convidados. Sem falar que, Serena, que era o motivo dessa festa estar acontecendo, precisava fazer um pequeno discurso.

Aysha estava bastante frustrada, já que queria se juntar logo a sua filha. Tércio, no entanto, manteve-se calmo.

Sem se importar muito com o duque ou sua neta ― afinal teria o resto da noite para encontrá-los ―, o jovem resgatado por Eliza se virou e começou a estudar os arredores. Ele já tinha comido um pouco de tudo, mas ainda havia algo faltando. E esse “algo” era o que mais queria experimentar.

Aproveitando que a maior comoção estava concentrada no duque, Tércio se levantou, subiu na cadeira e olhou para as empregadas, que passavam carregando bandejas. Algumas estavam vazias e outras continham comidas de aparência deliciosa.

Mas o que ele procurava não era o que estava sendo transportado. Desejava saber o trajeto percorrido pelas funcionárias, para onde iam e de onde vinham.

Tércio olhou para uma mulher carregando uma bandeja vazia e a seguiu com os olhos, sem sequer parar para piscar. E então, enfim a viu passando por uma porta que ficava em um canto do salão de festa.

― Se eles tiverem feito “aquilo”, com certeza vai estar lá ― concluiu. Logo em seguida, ele saltou da cadeira e andou em direção a porta escondida em um canto com a expectativa ao máximo.

Aysha e os outros estavam tão focados no duque que não repararam quando Tércio saiu. Arthur foi o único que reparou no comportamento suspeito do companheiro. Ainda assim, não tentou impedi-lo, apenas o assistiu enquanto se afastava.

Por estarem muito ocupadas, as mulheres encarregadas de servir as mesas não prestaram atenção no garoto de túnica cor de vinho que se aproximou da cozinha. Elas tinham muito o que fazer e não podiam se dar ao luxo de perder tempo com uma única pessoa.

Que grande erro cometeram!

Tomando cuidado para não ser notado, Tércio entrou na cozinha cheio de atitude, fingindo da melhor maneira possível que não existia problema algum em estar ali. Mas sua postura confiante foi abalada quando viu a grande variedade de coisas que estava sendo mantida dentro do recinto.

No centro da sala havia um enorme balcão e sobre ele refeições de todos os tipos exalavam um cheiro irresistível. Seis cozinheiros trabalhavam loucamente, gritando para os colegas e correndo de um lado para o outro. O trepidar das chamas era abafado pelas numerosas pessoas que zanzavam de um lado para o outro, carregando bandejas de prata, lavando vasilhas sujas e cortando legumes frescos.

Tércio passou por um grupo de assistentes que estavam amaciando carnes com martelos e não se importou ao ser confrontado por olhares confusos ― afinal todos se achavam muito ocupados para perguntar qualquer coisa.

Enquanto passava por trás dos cozinheiros e cozinheiras, ele, sem vergonha nenhuma, beliscava alguma comida que lhe saltava aos olhos.

No entanto, mesmo com todos aqueles pratos deliciosos, o que procurava não estava ali!

Tércio examinou cada canto, abriu alguns armários, mas nada. Foi então que viu uma porta estreita de madeira em um canto da cozinha.

Ao contrário do resto do recinto, que estava quente como um forno, próximo a porta estreita de madeira a sensação era refrescante e até um pouco gelada.

Sem se preocupar em ser discreto, Tércio abriu a porta e um vento gelado soprou contra o seu corpo. Ele sentiu seus músculos se estremecerem e seus pelos arrepiarem.

Por um momento, a mudança súbita de temperatura fez com ele sentisse calafrios, mas quando se recompôs, seus olhos brilharam.

― Achei! ― exclamou empolgado...

 


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