volume 1
Capítulo 41: Só Tércio
Após decidir que não ficaria pensando muito sobre o encontro que teve com o duque, ainda mais levando em consideração que sua cabeça estava começando a doer, Tércio passou a aproveitar todo o conforto que seu colchão gigantesco tinha para oferecer. Ele se esticou todo e rolou de um lado para o outro, sentindo o toque delicado do lençol.
A sensação que tinha era a de que poderia fazer aquilo por longas horas à medida que extraia todo o luxo do lugar. Contudo, o som de alguém batendo à porta o fez levantar a cabeça, pausando momentaneamente sua diversão.
― Quem é? ― perguntou ele ainda deitado.
― Senhor Tércio, eu vim trazer o seu jantar ― respondeu uma voz feminina vinda do outro lado da porta.
A palavra “jantar” reviveu o ânimo do garoto que, no mesmo instante, saiu da cama com um pulo e sem demoras abriu a porta. A curta trajetória foi marcada por suposições do quão deliciosa seria a comida feita na casa de um duque. Com toda a certeza esse pessoal conhecia diversos alimentos estranhos e tantos outros que pessoas de origem comum apenas tinham ouvido falar.
Seja como for, ele abriu a porta do recinto com grandes expectativas. E do lado de fora se encontrava uma mulher em trajes de empregada cujos fios da cabeça possuíam um peculiar tom prateado e que trazia nos braços uma bandeja de prata fechada.
― Desculpe-me pelo atraso, senhor Tércio. Eu irei arrumar a mesa de jantar agora mesmo ― disse a empregada enquanto fazia um leve gesto de reverência ao convidado.
― É Tércio, não senhor ― corrigiu o garoto que apesar de se sentir incomodado com tanta formalidade, falhou em demonstrar isso através de sua expressão, já que estava encarando a bandeja de prata.
― Como desejar. ― A jovem que possuía cabelo curto, da altura do ombro, e olhos verde-claros, não tentou se opor ao pedido. Ao invés disso, entrou no quarto e foi direto até uma mesinha que se achava em um canto, com espaço para duas pessoas.
Naquele instante, um aroma rico e perfumado invadiu o lugar, deixando o garoto ainda mais ansioso para descobrir o que comeria naquela noite. E isso o fez seguir a empregada de perto enquanto ela terminava os preparativos.
Assim que terminou de esticar o pano sobre a mesa, organizar os talheres de posicionar a bandeja, a jovem, que colocou as mãos em frente a cintura de uma maneira comportada, recuou um passo e falou:
― Se houver algo que deseje, basta me dizer. ― Seu tom era de uma pessoa extremamente educada. E mesmo quando foi dispensada pelo rapaz faminto sem sequer receber um: “muito obrigada!”; ela manteve a compostura e anunciou sua partida com a máxima cordialidade.
Assim que ficou sozinho, Tércio não perdeu tempo e foi logo destampando a bandeja. E como havia previsto, o que encontrou foi uma rica variedade de alimentos muito coloridos, tipo abobrinha assada, tomate picado em rodelas, cenoura roxa, cogumelos estranhos, um bife suculento e outras coisas que nunca tinha ouvido falar.
Embora desconhecesse algumas das coisas em seu prato, ele experimentou tudo, inclusive um molho estranho que borbulhava apesar de estar frio. E, talvez, por não ser uma pessoa muito seletiva, adorou cada um dos sabores exóticos.
Depois de terminar de jantar, Tércio mais uma vez se atirou na cama. Ele não estava tão satisfeito quanto gostaria, mas se sentia bastante cansado e precisava descansar.
A longa viagem já seria o bastante para deixar qualquer um, mesmo uma criança cheia de energia, perto da exaustão. Mas ele ainda havia explorado boa parte do castelo e discutido com o duque, o que fez sua cabeça pesar.
Tudo isso acumulado levou Tércio à exaustão e foi por isso que não demorou muito para ele cair no sono.
No dia seguinte, quando acordou, o sol já havia surgido e trazido com ele uma agradável manhã.
De olhos abertos e rosto inchado, Tércio se esticou e rolou de um lado para o outro, espreguiçando-se. Ele estava se sentindo bastante à vontade, muito diferente dos primeiros dias que passou ao lado de Eliza.
No entanto, enquanto ele executava seu ritual de acordar, uma voz conhecida, e desmotivada o chamou.
― Ei, Tércio! Já está acordado? ― disse Arthur do lado de fora do quarto conforme dava leve batidas na porta.
― O que você quer? ― resmungou o rapaz que não estava nem um pouco motivado a deixar o colchão macio. ― Vai embora!
― Anda logo! ― insistiu Arthur. ― A gente tem compromisso.
Pouco convencido, Tércio não teve pressa ao se levantar da cama e se arrastar até a saída do quarto. Então, como em um ato de protesto, ele abriu a porta em um solavanco e bufou:
― O que é?!
― Desculpe-me por acordá-lo tão cedo, mas é que o Duque Griffon requisitou nossa presença ― explicou outra voz familiar.
― O Duque? ― Aquilo o deixou intrigado.
Ele levantou a cabeça e viu que Enri possuía um olhar que misturava ansiedade e empolgação. Diferente dos demais, o Cavaleiro Real cujo um dos braços se encontrava quebrado demonstrava grandes expectativas.
Ao lado de Enri se achava um homem que não era um completo desconhecido para os três. Aquele era o mordomo que os levou até os quartos que o grupo ocupava atualmente.
― Aqui estão! ― Émile se adiantou e entregou a Tércio e Arthur uma carta que estava lacrada com cera púrpura.
― O que é isso? ― Os dois jovens resolveram perguntar.
― Como a jovem senhorita partirá amanhã, o meu senhor, dará uma festa hoje à noite. E os senhores foram convidados ― explicou Émile.
A informação fez os olhos do ex-prisioneiro brilharem. Uma festa parecia algo muito divertido e algo que não poderia perder de maneira nenhuma.
Arthur, por outro lado, decidiu esmagar a carta com a mão direita. E nesse momento uma expressão sombria tomou conta de seu rosto. Não parecia nem um pouco satisfeito.
― Você me acordou só para me entregar um convite? ― sibilou um dos líderes da Equipe de Subjugação com um olhar furioso para Enri. ― Não poderia ter só me avisado mais tarde?
― Do que você está falando? Esse é um convite do próprio Duque. É muito mais importante do que o seu sono! ― retorquiu o Cavaleiro Real.
A fidelidade e exemplar dedicação de Enri arrancou um suspiro de pura insatisfação por parte de Arthur, que revirou os olhos e resmungou:
― Eu vou voltar para a cama. ― E dizendo aquilo, ele se virou e partiu.
Tércio seguiu seu exemplo, pois sem ao menos se despedir, fechou a porta do quarto, deixando o mordomo e dedicado combatente sozinhos.
Sozinho de novo, o garoto de quatorze anos nem ao menos se deu ao trabalho de abrir a carta e ler o conteúdo, antes de descartá-lo sem qualquer cuidado. A festa aconteceria à noite e isso era tudo o que precisava saber. Ainda era de manhã e não precisava ter pressa para se organizar.
Pelo menos foi isso que acreditou no começo.
No entanto, quando pensava que dentro de algumas horas participaria de uma festa organizada pela nobreza, seu coração não conseguia se acalmar. Embora não fosse uma pessoa tímida e muito menos do tipo que se preocupa em agradar os outros, uma inquietação sem fim tomou conta de sua pessoa.
Tércio participou de muitos banquetes quando morava na sua antiga vila. Toda vez em que havia uma colheita abundante, os aldeões organizavam um grande festival para comemorar a fartura. E eles eram sempre muito divertidos, acompanhados de música e comida.
E foi com base nesses eventos passados que sua expectativa atingiu o auge. Já que, se era uma festa organizada pela nobreza, deve ser ainda mais divertida ― sem falar que a comida provavelmente é dez vezes melhor.
“Talvez tenha até mesmo bolo de chocolate...”; pensava Tércio enquanto suas esperanças subiam ainda mais.
Incapaz de se acalmar, ele começou, ainda cedo, a se preparar. A primeira coisa que fez foi escolher a roupa.
Das várias vestimentas que Eliza comprou, ele havia preparado poucas para a viagem. E entre todas, sua favorita era aquela que experimentou primeiro quando estava fazendo compras na loja da Sophia; uma túnica de cor vinho com uma faixa cinza na parte da frente e uma calça em tons acinzentados.
Escolher a roupa não foi um problema, foi algo quase instantâneo. Os sapatos também não seriam de nenhuma dificuldade, afinal só tinha um.
O verdadeiro empecilho foi arrumar o cabelo.
O cabelo de Tércio, ao contrário da maioria dos garotos, era longo. Mas a principal dificuldade se dava ao fato de que os fios estavam em tamanhos desiguais. A maior parte alcançava seus ombros, porém algumas mechas eram ainda maiores e outras menores.
Para ele isso não era um incômodo, pois não era uma pessoa muito preocupada com a aparência. Mas por algum motivo, para a festa que aconteceria dentro de algumas horas, desejava se arrumar. E quando pensava nisso, se lembrava do que Sophia havia feito naquele dia.
Contudo, Tércio não sabia como prender o cabelo. Ele se lembrava da forma que ficou após o trabalho da colega de Eliza, mas repetir aquilo não era tão fácil.
Por isso ele se sentou em frente ao espelho, pegou uma fita vermelha, e começou uma série de tentativas e erros.
Puxou, esticou e enrolou o cabelo, mas sempre acabava do mesmo jeito ― uma bagunça total. Depois de inúmeras tentativas, sua cabeça doía tanto que até mesmo encostar em um fio o fazia gemer de dor.
― Droga, isso é muito difícil! ― praguejou, sentindo-se um tanto frustrado. Mas não desistiria tão fácil, pois assim como a duquesa havia dito, aquele jeito de prender o cabelo ficou muito bem nele.
Tércio estava prestes a tentar mais uma vez, quando a voz de Arthur soou do outro lado da porta.
― Você está aí?
― Estou! Pode entrar ― respondeu.
Logo em seguida, o jovem de bermuda que se colocava na posição de líder e sempre carregava duas adagas na cintura entrou no quarto com uma expressão preguiçosa, de quem havia acabado de acordar.
Ele olhou para Tércio, que estava sentado em frente ao espelho, e perguntou um pouco intrigado:
― O que você está fazendo? ― disse, olhando para o rosto frustrado do companheiro.
― Tentando prender.
― Hm... Deve ser complicado ― comentou Arthur sem muito interesse. Nunca precisou se preocupar com esse tipo de coisa. ― Por que você não corta?
― Gosto dele assim ― disse Tércio com sinceridade.
― Então pede alguém para te ajudar. Tenho certeza que se você pedir para aquele mordomo, ele encontrará até um cabeleireiro profissional ― brincou.
― Ah, essa é uma boa ideia. ― A sugestão renovou a esperança de Tércio que estava começando a acreditar que precisaria desistir. Dessa forma, ansioso para sair em sua busca, ele se levantou da cadeira que ficava em frente ao espelho e se preparou para ir procurar por Émile, quando se deu conta: ― Você quer algo?
― Nada importante. É que no convite estava escrito que se não tivermos roupas adequadas para ir à festa, nós podemos pegar algumas emprestadas. Enri já foi para lá, mas pensei em te chamar antes de ir também.
― Eu vou usar as que eu trouxe ― disse Tércio. Não sabia se as que trouxe eram adequadas para uma festa de nobres. Mas de qualquer forma, não se importava com isso.
― Você também acha isso um saco? ― comentou Arthur, marcado por uma expressão desanimada. – Se eu tivesse trazido alguma coisa que não fosse o uniforme da academia, também não iria me dar ao trabalho de pegar uma emprestada.
Depois disso, os dois decidiram sair juntos, apesar de terem objetivos diferentes. E dessa forma foram procurar pelo mordomo.
Arthur iria pedir uma roupa para usar na festa de hoje à noite. E Tércio queria alguém para ajudá-lo a arrumar o cabelo.
Depois de andar por algum tempo e questionar alguns serviçais, os dois enfim encontraram Émile que estava andando de um lado para o outro com muita pressa. Ao que parece ele precisava terminar os preparativos para a festa e não tinha muito tempo para fazer isso.
Mas mesmo estando ocupado, o mordomo agiu de maneira educada ao ser solicitado pelos garotos e logo encontrou alguém para guiar Arthur até o lugar em que poderia encontrar roupas novas.
E quanto a Tércio, Émile disse a ele para voltar ao quarto, pois em breve enviaria alguém para ajudá-lo.
Sem questionar ou reclamar, o rapaz de cabelo longo e olhos escuros voltou para o seu aposento. Enquanto voltava, viu dezenas de homens e mulheres correndo de um lado para o outro, alguns carregando cadeiras e pratos e outras coordenando a ação.
Além dos funcionários, também notou um número crescente de pessoas trajadas em vestes elegantes, pessoas essas que não tinha visto até então.
De volta ao quarto, Tércio sentou na cama e aguardou. Tirando o seu cabelo, não havia mais o que fazer para se preparar para a festa. Mas esse foi um pensamento ingênuo.
Daquele ponto em diante, não demorou muito para que alguém enfim se apresentasse para o trabalho. Batidas na porta, seguida de uma voz delicada, anunciou a chegada daquela responsável por ajudá-lo.
― Com licença, Tércio. ― A porta se abriu e uma mulher jovem entrou. ― Eu estou aqui para ajudá-lo a se arrumar para a festa.
A empregada enviada por Émile possuía por volta dos vinte anos de idade e um rosto não tão incomum assim para o membro da Equipe de Subjugação. Seus olhos eram verde-claros, translúcidos como cristais. E seu cabelo curto era de uma cor peculiar e bastante chamativo; um cinza claro, porém tão bem cuidado e brilhante que chegava a reluzir igual prata.
Aquela era a mesma mulher que havia trazido seu jantar na noite passada.
― Uau! Você é bonita! ― elogiou Tércio sem nenhuma vergonha.
O comentário pegou a garota de surpresa. Estranhando a atitude, ela franziu o cenho e encarou o menino por um instante com uma expressão curiosa.
Obrigada, “senhor Tércio”. ― O tom que usou era quase como se estivesse provocando o rapaz.
Era uma insinuação sutil, tão sutil que o outro não entendeu.
― Só Tércio, sem senhor ― disse ele repetindo algumas falas.
― Como desejar! ― Ela soltou um suspiro divertido que veio acompanhado de um leve sorriso.
― A propósito, é... ― Tércio estava prestes a fazer seu pedido, mas antes de terminar de falar, percebeu que não fazia ideia de qual era o nome dela.
― Mia! Meu nome é Mia! ― E ela, por sua vez, entendeu da hesitação do garoto.
― Até o nome é bonitinho. ― Tércio abriu um sorriso brincalhão.
E apesar de isso soar como provocação, Mia não se ofendeu e ao invés disso, resolveu participar da brincadeira.
― Mas que garotinho adorável. Dá até vontade de apertar suas bochechas. E então, o que você quer que eu faça?
Tércio percebeu que estava sendo provocado. Mas não ficou incomodado. Pelo contrário, sentiu-se ainda mais à vontade perto da estranha.
― Acha que consegue prender meu cabelo?
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