O Condenado Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


volume 1

Capítulo 3: Repulsa

O espetáculo continuou. Agora na arena, dois homens portando pesadas espadas se enfrentavam em uma batalha sangrenta.

Entretanto, isso não importava para Eliza, que tinha o seu próprio objetivo. Ela e Kay, após contornarem o corredor, encontravam-se em frente à sala mais elevada do Coliseu.

Eles estavam prestes a avançar em direção a um pequeno lance de degraus, que dava de frente para uma porta fechada, quando uma mulher de cabelo marrom os interceptou.

― Desculpe-me, mas esta área é somente para o diretor Nabal e seus convidados. ― disse ela em um tom cordial.

― E você, quem é? ― perguntou Eliza usando de um tom grosseiro.

― Eu sou a assistente pessoal do diretor Nabal, Kira ― informou, fazendo uma pequena reverência em forma de cumprimento.

― Entendo... Neste caso, avise ao Sr. Nabal que Eliza Griffon está aqui e gostaria de tratar de alguns negócios com ele.

No momento em que a outra parte se identificou, a assistente Kira, que sorria graciosa de uma maneira despreocupada, assustou-se. Sua expressão tornou-se alarmada e logo tratou responder com toda a cortesia que tinha.

― Farei isso imediatamente, Srta. Griffon!

Após fazer uma graciosa reverência, Kira saiu a passos largos rumo à entrada da sala e não demorou muito para voltar, trazendo no rosto um sorriso elegante, marcado pelas boas maneiras adquiridas ao longo de anos de serviço, atendendo aristocratas e entidades da mais alta sociedade.

― Srta. Griffon, por aqui, por favor ― disse ela, apontando para um lugar diferente, localizado mais à frente do local em que estavam.

Guiados pela assistente, Eliza e Kay foram levados para uma câmara suntuosa que ficava ainda mais funda no Coliseu, localizada atrás da arena, depois de descer um singelo lance de degraus.

― Por favor, fique à vontade, Srta. Griffon. O diretor Nabal logo estará aqui. ― informou Kira, antes de sair do recinto e fechar a porta, deixando os dois sozinhos.

Como todo o resto do Coliseu, o aposento era iluminado por Claritas.

Na sala em que eles foram deixados existia um luxuoso sofá marrom, feito de algum tipo de couro lustroso, reluzente à luz amarelada proveniente dos cristais. De frente para ele estava uma imponente mesa de carvalho e acima dela, pregado na parede, um deslumbrante e suntuoso quadro do homem que finalizou o espetáculo entre o garoto e O Gigante roubava a atenção.

Eliza se adiantou até o sofá e se sentou no centro, de frente para a mesa de carvalho. Seguindo seu exemplo, Kay desabou em uma das pontas, largando o corpo de um modo bastante folgado para um serviçal, com as pernas estiradas e os braços largados.

― Sabe... como meu mordomo, é seu trabalho me aguardar enquanto resolvo um assunto delicado... de pé! ― bufou, mirando o sujeito atrevido.

― Mas, Srta. Eliza, se eu ficar de pé por muito tempo meus pés irão doer ― retrucou Kay, com uma expressão de piedade no rosto.

Diante do apelo, Eliza suspirou depressiva enquanto balançava a cabeça. Embora estivesse acostumada com o comportamento folgado do mordomo, esperava o mínimo de decoro, tendo em vista a importância do que estava para acontecer.

Os minutos se passaram e nada do diretor Nabal chegar. Depois de algum tempo, impaciente, Eliza ― de pernas e braços cruzados ― começou a balançar o pé. Kay, por outro lado, já estava quase deitado, com as pernas abertas e a cabeça apoiada no braço do sofá, bem próximo de fazer um contorcionismo impossível.

Apenas quando a impaciência da Srta. Griffon estava atingindo o auge que a porta da sala foi escancarada e um homem vestindo um casaco pomposo entrou.

Ele usava um sobretudo preto apoiado sobre os ombros e uma camisa azul por baixo. Em seu rosto havia uma cicatriz profunda que ia da bochecha até o queixo, cortando a barba minuciosamente desenhada. Sua postura, cabeça erguida, peito estufado e olhar vaidoso, carregava um ar notório de arrogância e um traço evidente de uma vida privilegiada.

No momento em que o diretor entrou na sala, Kay logo levantou-se em um sobressalto e o recebeu com uma graciosa reverência.

E tal ato arrancou de Eliza uma expressão descontente que foi acompanhada por um arquejo de incredulidade. Ela não podia deixar de pensar que aquele era o mesmo mordomo que estava deitado sobre o sofá, quase a chutando para o chão, há alguns instantes atrás.

― Desculpe-me por fazê-la esperar, Srta. Griffon. Eu tive alguns assuntos urgentes para resolver ― disse o diretor, ignorando Kay.

― Nabal, eu solicitei uma reunião com você, pois há algo que eu gostaria de requisitar ― informou ela exprimindo uma voz ríspida, que apesar civilizada à princípio, continha certo desgosto implícito.

― Direto ao ponto. Não gostaria de tomar uma taça de vinho antes? ― propôs o diretor, caminhando até a mesa e pegando uma garrafa fechada.

― Meu tempo é limitado ― rufou Eliza.

― Entendo... Sendo assim, o que eu poderia fazer pela “ilustre” Eliza Griffon? ― Sibilou Nabal, exprimindo certo deboche ao enfatizar a palavra “ilustre”. O seu tom de voz, antes respeitoso, de repente mudou. Ele olhou para a visita com um olhar provocativo e se sentou na poltrona aveludada, situada atrás da mesa de carvalho, e aguardou pela resposta.

Os olhos de Eliza se estreitaram. Tal insinuação fazia seu sangue ferver e o asco que sentia por aquele sujeito testava seus limites. Entretanto, a importância da tarefa que tinha para cumprir se sobrepunha a qualquer repulsa.

― Eu gostaria de comprar o garoto que lutou na primeira luta... Tércio, se não me engano ― falou, sem esconder as intenções.

― Eu achei que você não gostasse de ter escravos ― comentou Nabal, curioso.

― E não gosto. Mas ele é um garoto interessante, tenho certeza de que me será útil de alguma forma. Estou precisando de ajuda, entende? ― argumentou Eliza, forçando um meio sorriso. ― O número de monstros cresceu nos últimos anos e muitos estão aparecendo ao redor da academia e ele é um bom lutador.

O diretor estudou a mulher em sua frente por um segundo, tentando decifrar seus pensamentos, sondando suas feições forçadas e enganosas. E então, depois de uma breve reflexão, abriu um largo sorriso vitorioso.

― A piedosa Eliza! Como sempre, tão misericordiosa! ― grunhiu, desdenhando abertamente. ― Teve pena do garoto só por ele ter quatorze anos? Mas fique sabendo que aquele menino é tão desumano quanto qualquer um dos prisioneiros que eu tenho aqui... não... ele pode ser ainda mais cruel...

― Eu estou ciente. ― Ela o interrompeu, severa em cada palavra.

― Entendo. Você o quer de qualquer maneira, não é? Mas veja, isso seria um problema para mim. Afinal não temos muitos que saibam usar magia por aqui. E o fato de ele ser um Atroz o torna ainda mais precioso. Afinal, quem não gostaria de ver um monstrinho lutando? ― O diretor Nabal aguardou ansioso pela resposta. Na verdade, ele não se importava com o destino de Tércio, só não o entregaria para ela.

Mas Eliza já esperava por isso. Assim sendo, esticou a mão, gesticulando para Kay, o qual no mesmo instante entendeu o que estava sendo pedido.

O mordomo se adiantou, tirou um pesado saco de cânhamo do bolso e colocou sobre a mesa, em frente a Nabal.

Antes de abri-lo, o diretor analisou o exterior, confabulando consigo mesmo o que poderia existir no interior. E então, após alguns instantes franzindo a testa, resolveu ir em frente e checar o conteúdo.

Quando desatou o cordão costurado na boca do saco de cânhamo, vários cristais dotados de formatos circulares e achatados escorregaram de dentro da bolsa, esparramando-se sobre a mesa.

Os cristais eram idênticos uns aos outros; tinham sido lapidados na mais pura e fiel perfeição. Eles mesclavam dois tons de vermelho, um escuro e o outro claro, feito uma gota de sangue prestes a secar, cujas bordas se esgotam mais rápido, vítimas da exposição prematura. E no centro do item, gravado em seu corpo em altos relevos, notava-se a presença de um belíssimo desenho de um pássaro, detentor de um longo e garboso pescoço, levemente curvado para baixo, em cuja cauda se abria num exuberante leque.

― Cem moedas de Mágitas! ― informou Eliza.

Mágita, a moeda mais valiosa do reino e havia cem delas. O diretor Nabal se sentiu tentado a aceitar essa oferta, quase de imediato. A cobiça ávida em seus olhos denunciavam sua luxúria pela pequena fortuna. Era de fato um valor desejável. Porém, ele não conseguia parar de pensar no que aquele garoto tinha de tão especial para valer tanto, quando o mesmo foi comprado por tão pouco.

― É uma oferta tentadora, mas acho que terei de recusar. Como falei, não temos muitos magos por aqui. ― Por fim, respondeu o diretor depois de uma longa reflexão. ― Além do mais, eu posso fazer o dobro com ele.

E assim que essas palavras saíram, Kay tirou um segundo saco de cânhamo e jogou ao lado do primeiro.

― O dobro! ― disse Eliza, fria, áspera e ameaçadora. ― E recomendo que aceite. Pois, de um jeito ou de outro, sairei daqui com aquele garoto.

O diretor Nabal deixou seus olhos escorregarem para Kay, que sorriu docemente, como se fosse inofensivo. Em seguida, voltou a encarar a mulher cuja face trazia uma autoridade implacável. Ele não teve pressa em responder, mas a expressão desgostosa em seu rosto, acentuada pela grotesca cicatriz, deixava claro que entendia a própria posição. Por fim, depois de se demorar tempo o bastante, falou:

 ― Eu me pergunto o que esse garoto tem de tão especial para você estar disposta a pagar uma quantia tão alta.

Eliza permaneceu em silêncio. Não tinha motivo algum para se justificar e nem o faria. Sua falta de palavras foi perpetuada pelo diretor, que ficou a encarando sem a menor intenção de esconder o descontentamento. Sua respiração, embora contida, era pesada e repleta de insatisfação.

― Muito bem. ― Sem opções e sabendo que a discussão tinha acabado, ele decidiu colocar um fim definitivo ao encontro. ― Aceitarei sua oferta. Kira! ― chamou em voz alta. E no mesmo instante a assistente entrou pela porta.

― Sim, diretor? ― questionou ela, mantendo a cortesia de costume.

― Leve-os até a cela do garoto que lutou na primeira partida ― ordenou Nabal, fazendo um gesto com a mão, como se estivesse espantando uma mosca.

― Como desejar. ― assentiu Kira, curvando a cabeça. ― Por favor, acompanhem-me.

E como desejava sair daquele lugar o quanto antes, Eliza não hesitou ao se levantar e acompanhar a assistente para fora do recinto. Kay, no entanto, antes de sair, esboçou um sorriso inocente, curvou a cabeça em um gesto de respeito e se despediu com a máxima cordialidade.

Após deixar o aposento do diretor do Coliseu dos Condenados, eles foram levados para uma escada em cujo fim não podia ser visto, localizada a poucos metros de distância da suntuosa sala subterrânea e que parecia levar rumo a profundidades infernais. Quanto mais o grupo descia, mais a iluminação ficava precária.

A sensação que se tinha dentro do Coliseu até então era a de estar no interior de um quarto sem janela, no qual o sol não pode alcançar, mas, ainda assim, muito bem iluminado e fresco.

Contudo, agora que eles estavam indo para o lugar em que ficavam os prisioneiros, a sensação que se experimentava era a de estar em uma mina quase abandonada, com apenas algumas Claritas aqui e ali para indicar o caminho. Até mesmo respirar ficou difícil; era como se o ar estivesse faltando.

A descida levou algum tempo, uma jornada mais prolongada do que uma pessoa sensata julgaria ser prudente, e quando chegaram ao fim, a visão que se abriu para os visitantes foi horrenda, para não dizer, abominável. Nas celas era possível ver homens mutilados presos em correntes, sem nenhum tratamento. Seus gemidos moribundos escapavam por suas gargantas, criando ecos guturais que reverberavam pelas paredes lodosas em uma cacofonia diabólica.

Pelos chãos, inúmeros ratos e baratas transitavam despreocupados, sem nenhum medo de serem exterminados. Aquela era a casa que haviam escolhido para habitar e como tal, comiam o que bem entendiam e cagavam onde queriam.

Mas não era só a vista que incomodava. Um cheiro insuportável, de uma fossa que não era limpa há anos, invadia as narinas, causando repulsa e nojo. Era sufocante de tal forma que fazia a garganta queimar e os olhos lacrimejarem.

Eliza não resistiu e foi obrigada a levantar a mão direita e cobrir a boca e o nariz. Para ela, aquele cheiro era algo intragável.

A área dos prisioneiros... Um lugar infernal.

Kira demonstrava estar acostumada, pois continuou andando de cabeça erguida, sem se importar com o cheiro ou a visão, nem mesmo os gemidos funestos perturbavam seus ouvidos. Ela guiou Eliza e Kay por um lugar que mais parecia um labirinto. Havia tantas celas e corredores naquela parte do Coliseu que se perder era algo fácil, mas a assistente exibia um impressionante senso de direção, virando e contornando entradas enganosas.

Depois de passar por várias celas e virar em diversos corredores, eles enfim chegaram naquela em que Tércio estava sendo mantido.

 Quando Kira parou de repente e disse: ― chegamos ―, apontando para uma cela à direita, Eliza subitamente mudou de postura e cerrou os punhos, conforme deixava escapar uma fúria abrasadora.

― O que significa isso? ― inquiriu, exprimindo um semblante aterrorizante.

Seu rosto se tornou soturno e toda sua cólera se manifestou através de um olhar severo, capaz de fazer até mesmo o maior dos homens se encolherem amedrontados. Ela apertava os punhos com tamanha força, segurando-se para não matar a assistente ali mesmo, que naquele instante, sangue começou a escorrer de suas mãos.

― D-desculpe? ― gaguejou Kira, confusa, dando um passo para trás. Suor frio começou a escorrer por sua testa, suas pernas perderam a força e os joelhos tremeram, ameaçando ceder.

― Eu o presenciei ganhar a luta sem nenhum problema, então... o que significa isso? ― repetiu Eliza, furiosa.

Na cela indicada pela assistente havia um garoto suspenso no ar, com suas mãos presas em pesadas correntes. Sua camisa velha achava-se coberta de sangue, marcada por cortes em toda parte superior do corpo.

Ele estava imóvel, com a cabeça pesando sobre os ombros, como se a vida o tivesse abandonado. Um porco abatido, apenas esperando o sangue terminar de ser drenado.

― Ele... ele de fato ganhou, mas... ― hesitou. ― Mas como se recusou a executar o oponente, o diretor Nabal ordenou que fosse castigado. Contudo, não se preocupe, o garoto ainda está vivo ― garantiu Kira em um tom apressado, trêmulo.

Eliza estava enfurecida e não via motivos para se controlar. Deu um passo em frente, rumo a assistente, quando de repente o som de correntes se mexendo soou...

 ― Então é você... “à visita”?

 


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