O Condenado Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


volume 1

Capítulo 2: Um garoto virtuoso

 

Após o guarda do casebre conferir a autorização de Eliza e Kay, ele saiu do caminho e os deixou passar.

Do lado de dentro, uma escada em forma de espiral com paredes escavadas diretamente no barro, sem nenhum tipo de revestimento para cobri-las, levava rumo ao subterrâneo.

Pregado nas paredes, existiam dezenas de Claritas ― pequenos cristais moldados em forma de domo que irradiavam uma luz amarelada ― clareando a passagem. Portanto, descer a escadaria, mesmo ela levando em direção às profundezas de terras úmidas e frias, não foi um problema.

A jornada rumo às entranhas da vila não durou mais do que breves segundos, no entanto o que se escondia debaixo da terra pegou ambos de surpresa.

No fim da escadaria ficava um amplo e luxuoso salão em cujas paredes e o teto se encontravam adornados por enfeites majestosos que construíam todo um ambiente apropriado para o acolhimento dos nobres visitantes.

Encarrapitado no teto, um lustre dourado com diversas Claritas, parecendo joias luminosas, irradiava pelo lugar, lançando uma luz áurea que cobria os arredores feito um manto de ouro. A sensação era a de que em algum canto do recinto habitavam tesouros imensuráveis, responsáveis por cintilar tal soberba riqueza para o deslumbre de olhares refinados.

Dezenas de mesas luxuosas preenchiam o salão. Sobre elas pendiam toalhas de mesa feitas de fios de seda com bordas folheadas a ouro e talheres de prata acompanhados por taças de cristais. Nas paredes, afrescos saltavam aos olhos, com desenhos mitológicos de um povo ancestral, criaturas bestiais e figuras divinas.

De que lugar exatamente vinha, não se sabia, mas uma brisa suave e agradável soprava pelo recinto, dando uma peculiar e anormal sensação de frescor natural, como o que se tem em um bosque durante o fim da tarde, no qual o perfume de flores silvestres se mistura ao doce néctar da seiva das árvores.

Era ali que os convidados aguardavam o começo do grande evento, gozando de requintadas refeições, músicas sofisticadas e conversas apuradas.

Mas agora, as únicas pessoas dentro do salão eram os serviçais encarregados da limpeza.

Sem perder tempo, Eliza seguiu a passos largos em direção a um umbral em forma de arco que ficava do outro lado.

Após o portal existia um enorme corredor. Do lado esquerdo, não tinha nada mais do que uma parede moldada no barro, sem charme ou detalhes suntuosos. Porém, à direita, ficava uma enorme arquibancada com centenas de assentos, os quais já estavam quase todos ocupados. E na parte mais baixa se achava uma arena circular cujo chão era de terra seca batida e poeirenta.

Eliza estava cruzando o corredor que circundava toda a arena, quando uma voz reboou pelo lugar:

― Senhoras e senhores! ― Um tom masculino e pesado se espalhou pelo subsolo. ― Em breve daremos início a mais uma batalha entre condenados e como sempre, selecionamos os melhores lutadores para lhes entreter. Sendo assim, espero que se divirtam.

O homem que pronunciou tais palavras estava de pé numa sala fechada, localizada na parte mais alta da arquibancada, de frente para o portal pelo qual Eliza havia entrado.

A única visão que se tinha do aposento era uma enorme janela que dava de frente para a arena.

Aquela, sem sombra de dúvida, era a área reservada para indivíduos de grande prestígio e influência, poderes que se sobressaiam a nobres ordinários e comerciantes medianos.

Logo após o homem terminar de falar, outro sujeito que estava em uma espécie de micro palco próximo da arena começou a narrar:

― Boa noite, senhoras e senhores! Como o nosso estimado diretor disse, esperamos que divirtam-se nesta noite festiva! É por isso que sem mais delongas, daremos início às batalhas de hoje!

Entusiasmada, a plateia aplaudiu. Eles mal podiam esperar pelo começo do espetáculo sangrento.

― Do lado direito está ele, o favorito para essa batalha, O Gigante!

Um homem de porte avantajado e carregando um machado entrou na arena.

― Do outro lado, fazendo sua estreia, o garoto Tércio de quatorze anos...

Nesse momento, o rosto de Eliza endureceu.

― Chegamos tarde demais! ― murmurou ela, repreendendo a si mesma.

Kay voltou seu olhar para a arena e disse:

Ah, então é por ele que veio até aqui. Eu não acho que a senhorita tenha com o que se preocupar. Ele ganhará facilmente ― afirmou o mordomo, balançando a cabeça e expressando confiança na declaração. Mas antes que Eliza pudesse responder, Kay voltou a falar. ― Porém... eu não acho que ele será um bom marido para a senhorita, quero dizer... é um sujeito grande demais. Não combina muito.

― Eu não vim aqui procurar um marido! E não viemos atrás daquele homem, mas sim do garoto ― vociferou Eliza, exprimindo um olhar de repreensão.

― Mesmo sendo a senhorita, eu ainda acho que isso seria um crime ― comentou Kay, dando um meio sorriso debochado, mas ainda com uma expressão séria, como se estivesse humildemente tentando alertar a outra parte.

O rosto de Eliza se contorceu de raiva e uma veia pulsante brotou em seu pescoço. Ela parecia querer estrangular o mordomo. O sujeito, em certos momentos, apresentava um humor nada engraçado e que não apreciava nem um pouco.

Sentindo um arrepio hostil percorrer sua nuca, Kay, com uma mão apoiando o peito e a cabeça curvada, tentou se justificar:

― Por favor, Srta. Eliza, não se zangue. Como seu mordomo, eu me preocupo com o futuro da senhorita... E... não é como se você estivesse ficando mais jovem... vamos ser honestos, logo os homens não a notarão mais ― proferiu ele, segurando um sorriso brincalhão que brotava no canto da boca.

― Seu maldito! ― praguejou ela. ― Quantas vezes terei de ordenar que pare de fazer essas suas piadas incoerentes?

Eliza fechou os punhos e formou uma carranca desagradável, furiosa pelo comentário do mordomo que continuava sorrindo como se não tivesse falado nada demais. Foi quando algo chamou sua atenção, fazendo-a se esquecer da bronca que pensava em dar ou do desdém irritante proferido pelo servo.

A plateia inteira vibrou, num misto de euforia, repulsa e julgamento.

Sentindo algo que parecia urgência brotando da sola de seus pés e cortando através de seus ossos, revirando suas entranhas e abalando sua lucidez, Eliza voltou seu olhar para a arena.

Ela prestou tanta atenção nas provocações de Kay que por um segundo acabou se esquecendo do real motivo pelo qual havia vindo até esse lugar: Tércio. Depois de percorrer todo esse caminho para encontrá-lo, não poderia deixar que ele morresse nas mãos de um brutamontes inescrupuloso.

E para ela, não existia nenhuma maneira do garoto vencer essa batalha, afinal seu oponente era um homem que detinha um enorme poder físico.

Foi por isso que no momento em que a plateia vibrou, num gesto de pura urgência de alguém que sente um perigo iminente, ela apoiou a mão sobre uma pequena adaga a qual estava escondida em sua cintura e se preparou para invadir a arena.

Mas quando se virou, foi surpreendida...

Não era Tércio que estava caído e sim seu adversário, Connor.

Eliza não entendeu o que tinha acontecido. Para ela não havia nenhuma maneira daquele minúsculo garoto vencer tal brutamonte avantajado.

Mas lá estava Connor, ajoelhado, com uma expressão de medo, enquanto Tércio o mirava sob um olhar frio, pouco expressivo.

Com um semblante interesseiro, Kay se adiantou e sibilou:

― Parece que o garoto tem um talento interessante.

A srta. Griffon não compreendeu o que ele queria dizer, mas não deu muita importância para isso. Seu mordomo era esse tipo de pessoa, que tenta parecer misterioso dizendo coisas aleatórias.

Connor se levantou e a luta continuou. Mas não demorou muito para o gigante receber outro golpe...

― Magia Individual! ― murmurou Eliza, surpresa. ― Então é verdade...

― Sim. E uma bem poderosa ― concordou Kay, esboçando um discreto, mas malicioso sorriso.

Não passou dois minutos sequer e O Gigante caiu outra vez. Ele estava prestes a se reerguer, quando, sem piedade alguma, Tércio o atingiu com um poderoso ataque de fogo que cobriu quase todo seu corpo, mergulhando-o numa prisão abrasadora.

A luta tinha acabado.

Não importava o quão forte fosse o corpo de Connor, ele não seria capaz de se recuperar desse ataque.

E o narrador pensou a mesma coisa, pois no momento em que O Gigante caiu de cara no piso da arena, cantou a vitória do jovem:

― Com uma virada inesperada, o vencedor é Tércio!

A plateia vibrou emocionada. Aqui e ali era possível ouvir alguém gritando o nome do garoto pouco expressivo. Aqueles que antes o chamavam de monstro, agora torciam por ele.

― Impressionante! ― disse Eliza, cujos olhos refletiam um brilho distinto. Sua expressão de surpresa logo mudou e seu rosto assumiu um tom contemplativo que foi acompanhado por sua mania de infância de roer as unhas.

Hm... parece que a senhorita pensou em algo divertido ― comentou o mordomo.

― Você não precisa saber por enquanto. Vamos, temos negócios a tratar.

Dizendo isso, Eliza tirou o polegar da boca e secou a ponta molhada na própria roupa, antes de voltar a percorrer o largo corredor em direção a sala mais elevada da arena. Quando, de repente...

― Morte! Morte! Morte!

Os nobres e comerciantes que ocupavam a plateia gritavam eufóricos. Para eles, a luta ainda não tinha acabado, não enquanto Connor permanecesse vivo.

Tércio, que ouvia as pessoas clamando pela execução de seu oponente, olhou em volta do Coliseu, estudando seus admiradores.

Durante sua luta, o garoto não demonstrou emoção alguma. Sua expressão era fria, distante e impassível. Contudo, agora, ouvindo essas pessoas lhe dizendo para matar o homem caído de cara no chão, seu rosto se revirou em uma mescla de raiva e nojo.

O campeão condenado encarava os espectadores com uma expressão enojada no olhar e um nariz torcido de puro asco.

― Lixos! ― praguejou Eliza.

― Você acha? ― indagou Kay, sem acrescentar muito.

― E agora, o que ele vai fazer? ― murmurou a senhorita em um tom que parecia questionar a si mesma. Ela estava curiosa para saber como o garoto agiria. Essa era uma boa oportunidade para ter um vislumbre do tipo de pessoa que ele é.

― Não sei. Mas não é como se existisse muita escolha ― comentou Kay, que mantinha um sorriso divertido ao olhar para a arena.

Eliza estava preocupada com a ação que o jovem tomaria diante dessa situação. Sabia que para seu próprio bem, ele deveria matar o oponente ― executá-lo sem apresentar remorso ou hesitação ―, mas, ainda assim, isso era algo que a desagradava de muitas formas e, acima de tudo, tinha um enorme potencial de estragar seus objetivos.

Tércio ficou parado por alguns segundos em frente à Connor. Parecia estar pensando em algo. E então, sem dar importância para o pedido dos espectadores, ele deu as costas ao gigante caído e caminhou em direção ao portal pelo qual havia entrado na arena.

Irritadas com a atitude do garoto, as pessoas que estavam assistindo a luta, sentindo-se menosprezadas e esnobadas, começaram a vaiá-lo.

Mas Tércio não se importou com isso e continuou seu caminho.

Foi nesse momento que, quando estava prestes a cruzar o portal, O Gigante se ergueu mais uma vez. Ele mal conseguia se manter em pé, mas era evidente o profundo ódio expressado em seu rosto.

Reunindo suas últimas forças, Connor disparou contra o adversário, rugindo feito uma besta ensandecida...

De repente, um brilho cortou a arena e sangue jorrou pelo ar.

O brutal assassino, que tinha como passatempo marcar no corpo as vidas tiradas, debandou de lado e caiu em vão no chão, com os olhos ainda abertos e os braços estirados. Em seu peito surgiu um enorme buraco, atravessando todo o dorso, por onde vertia um líquido espesso e viscoso, o qual se misturou ao piso empoeirado da arena.

Foi um ataque tão rápido que quase ninguém foi capaz de entender o que tinha acabado de acontecer, incluindo os espectadores, que olhavam um para o outro, confusos e atordoados.

Tércio, que estava para deixar a arena, virou-se imediatamente para a direção da qual veio o ataque e se preparou para a batalha. Não sabia muito bem o que tinha acontecido, mas precisava estar pronto para qualquer eventualidade.

Os únicos que pareciam ter algum conhecimento do real motivo da fatalidade súbita do gigante gladiador eram Eliza e Kay, que olhavam para uma sala fechada, localizada no alto do Coliseu.

Na sala reservada para as pessoas importantes, o homem responsável por abrir o espetáculo estava de pé com o braço direito apontando para a arena enquanto mirava sob uma expressão tenebrosa o já sem vida Connor. O assim chamado “Diretor”, correu os olhos de encontro à Tércio e o fitou de maneira ameaçadora, esboçando um semblante colérico ao encará-lo.

O burburinho se espalhou pelo Coliseu. Os demais ainda estavam tentando entender o que tinha acabado de acontecer, quando uma voz reverberou.

― Por favor, acalmem-se! Não há motivos para alarde. Parece que além de grandalhão, ele também é desastrado ― sorriu, arrancando algumas gargalhadas da plateia. ― Mas esse tipo de comportamento precisa de punição... Sem carne de rato por essa noite ― declarou, conseguindo mais alguns risos.

Apesar das piadas estranhas que proferiu e da tentativa de amenizar a apreensão do público, quando olhou para o homem da sala, Tércio notou que ele o mantinha sob um olhar severo. Mas aquilo pouco lhe importava, então, ignorando o semblante azedo do diretor, virou-se e deixou a arena.

― Eu peço perdão pelo inconveniente. Mas, por favor, não deixem que algo tão pequeno estrague a diversão ― pediu, continuando seu discurso.

Após tais palavras tranquilizadoras, o clima de tensão desapareceu e o Coliseu voltou a ficar animado. O público mal podia esperar pelo combate seguinte.

Na primeira luta, um minúsculo garoto derrotou um gigante usando magia. Como será a próxima?

 


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