O Condenado Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


volume 1

Capítulo 26: Runas

Do seu lado da mesa enquanto “beliscava” a comida, Eliza lançou um olhar de descrença para Tércio. O garoto agia com muita indiferença apesar de ter recebido apelidos maldosos por causa de sua habilidade.

Sem saber como reagir a isso, ela apenas balançou a cabeça.

Após a breve discussão sobre Atrozes, os dois voltaram a se concentrar na refeição. O tempo foi passando e Tércio se esbaldando. Ele teve que admitir: a duquesa tinha um bom gosto para comida.

Logo após a carne assada, que a propósito era uma delícia, a garçonete voltou trazendo uma generosa fatia de uma sobremesa local, a especialidade da casa: bolo de amoras azuis com recheio de creme de caramelo salgado.

A sobremesa estava uma delícia, mas Tércio ainda se decepcionou. Por se tratar de um lugar tão “chique”, esperava encontrar qualquer coisa relacionada a uma iguaria divina, um tal de “chocolate”. Porém, não tinha nada disso por ali.

Sua mãe sempre fez bolos incríveis; era uma cozinheira de mão cheia. No entanto, eles eram feitos com os ingredientes colhidos nos campos de plantações da vila na qual morava. Por isso nunca havia comido o famoso bolo de chocolate, servido na festa pós-coração do rei e no casamento do filho mais velho do duque Griffon.

O bolo de amora estava delicioso, tanto que por um segundo ele trocou o pudim como sua sobremesa favorita. Mas ainda existia uma grande curiosidade de sua parte em saber qual é o sabor da comida provada por nobres e o próprio rei.

Após o almoço, Tércio e Eliza deixaram o Restaurante da Lebre Crescente, e rumaram em direção ao próximo destino, que era a loja: Equipamentos do Saul; o lugar onde Tércio compraria um sapato novo.

Quando chegaram ao local, o garoto das cicatrizes percebeu logo de imediato que o estabelecimento era muito diferente da espelunca habitada por Sophia.

Ao contrário da Casa da So, que era feita de madeira torta, a loja de Equipamentos do Saul possuía uma construção sólida de pedras encaixadas umas nas outras que parecia inabalável. Na fachada, pendurada no alto, havia uma placa de madeira esculpida em forma de uma armadura e no centro dela ficava o nome da loja.

Quando entrou no estabelecimento, o garoto foi logo fazendo uma cara de bobo enquanto olhava o arredor, deslumbrado. O lado de dentro era enorme e muito organizado. Existiam dezenas de estantes de madeira com diversos tipos de sapatos e sapatilhas. Mas isso não era tudo. Ali também tinha armaduras, elmos, máscaras, manoplas, luvas de couro e algumas outras coisas. Era o tipo de lugar que, se você for um soldado ou coisa do tipo, precisa visitar.

O contraste entre os dois comércios escolhidos pela duquesa era algo realmente indiscutível. Pois a loja de Equipamentos do Saul não só estava mais organizada, como também havia diversos clientes e funcionários, que se esforçavam para agradá-los.

No instante em que os dois entraram na loja, muitas pessoas torceram o pescoço para dar uma espiada. É claro, estavam interessados srta. Griffon.

No momento em que a bela jovem de cabelo roxo foi vista, um funcionário, que estava atrás do balcão principal recebendo os pagamentos, correu a passos largos para dentro de uma salinha. E logo em seguida voltou acompanhado por um homem gordinho de meia-idade.

O homem que apareceu não aparentava ser muito mais alto do que Tércio, mas já era possível ver tons de grisalhos e tufos faltando no topo de sua cabeça. Ele vestia roupas simples e tinha um rosto comum, mas redondo, e uma barba felpuda.

Ele olhou para Eliza e soltou um largo sorriso enquanto caminhava na direção dela e de Tércio.

― Diretora! ― esganiçou bastante animado quando se aproximou. ― Eu soube que a senhorita estava fora. Fico feliz que tenha voltado em segurança.

― Obrigado pela preocupação, Saul. ― A duquesa meneou a cabeça com simplicidade.

― A senhorita veio fazer mais uma encomenda? ― Saul não escondia a nota cobiçosa em sua voz.

― Não. Hoje eu vim comprar um par de sapatos novos para ele. ― Eliza apontou para Tércio.

Oh, e quem seria este jovem rapaz? ― Saul manteve o sorriso amigável no rosto.

― Deixe-me apresentá-los ― voluntariou-se Eliza, ficando de lado. ― Saul, este é Tércio, meu irmãozinho. E o mais novo membro da Equipe de Subjugação. E Tércio, este é Saul. Ele fornece a maioria dos equipamentos da Equipe de Subjugação.

― De novo com essa merda? ― grunhiu Tércio.

Oh, então você é o irmãozinho da Dir.ª Eliza. Parabéns por entrar para a Equipe de Subjugação. Notável! ― Exclamou o vendedor enquanto batia de leve as mãos. ― É um prazer conhecê-lo.

Talvez tenha sido seu instinto de comerciante, mas preferiu não estender a mão para oficializar o cumprimento.

― Já que vocês se deram ao trabalho de vir até aqui, eu mesmo os atenderei. ― Disse Saul com orgulho. ― O jovem rapaz já tem algo em mente? Armaduras? Manoplas? Eu tenho um capacete que pode resistir a pisada de uma besta gigante.

― Eu não sei amarrar os cadarços ― Tércio foi direto ―, então eu quero um sapato que não precise disso.

― Entendo. Um sapato sem cadarços... ― Saul parou por um momento e olhou para baixo pensativamente, como se estivesse avaliando em pensamentos a melhor escolha que tinha dentro de sua loja. E após uma longa pausa, ele falou. ― Eu já sei de alguns perfeitos para você. Siga-me.

Dizendo isso, ele guiou Tércio e Eliza até um comprido banco de madeira, que estava em um canto e os disse para esperar ali. E logo em seguida correu para as estantes, na qual os sapatos estavam.

Algum tempo depois, o vendedor baixinho voltou carregando uma pilha de sapatos com seis pares, um diferente do outro.

Tércio, que já estava cansado de experimentar coisas, pegou o par que mais lhe saltou aos olhos e decidiu que seria aquele e nenhum outro.

O escolhido era muito parecido com os que estavam em seus pés no momento. Era preto e com poucos detalhes. Mas ao contrário dos sapatos de Tércio, esses eram feitos de couro de algum animal ou monstro e, como foi pedido, não havia cadarços, apenas um buraco no topo por onde deveria se enfiar o pé, igual uma bota comum.

Sem perder tempo, o garoto foi logo experimentando o novo calçado. O par parecia ser meio grande, mas isso não o fez desejar experimentar outro. Uma folga pequena não representaria um problema.

E quando colocou ambos nos pés, foi como tinha previsto; eles eram grandes demais, maiores até do que tinha pensado. Essa sensação de folga o incomodou um pouco, de maneira que começou a remexer os pés. Não queria ter de ficar experimentando sapatos após sapatos, mas não havia outra maneira...

Mas então, de repente algo aconteceu...

Os calçados começaram a emitir um brilho fraco que envolveu as pernas de do menino e no mesmo instante os itens começaram a diminuir de tamanho, de forma que podia ser acompanhado pelos olhos.

Tércio conhecia bem esse estranho fenômeno. Pois foi o mesmo que aconteceu na noite passada com as botas que veio junto ao uniforme.

Por isso, sabendo o que estava prestes a acontecer, ele logo convocou suas chamas e se preparou para incinerar o couro que estava pouco a pouco apertando seus pés.

Porém, antes que pudesse queimá-los, Eliza segurou o seu braço, evitando o fogo e o impedindo de atacar.

― Acalme-se! Está tudo bem. Isso é normal. ― Existia certo divertimento em seu tom, como se a ignorância do garoto fosse um atrativo.

Ouvindo o pedido da duquesa, o esquentado acalmou suas chamas. E no momento em que fez isso, o brilho que vinha dos sapatos se dissipou de repente.

Agora eles não estavam mais folgados nos pés de Tércio. Era um par de sapatos perfeitos, feitos na medida para seu tamanho.

Aquilo o intrigou e ele olhou para Eliza com estranheza, e perguntou:

― Que luz foi aquela? O que aconteceu? ― O garoto estava assombrado. Não só o brilho foi o mesmo da noite passada, como também, quando a luz sumiu, os sapatos, que outrora estavam folgados, cabiam com perfeição em seus pés. Isso era um fenômeno que nunca tinha visto ou ouvido falar, a não ser pela noite passada.

― Aquela luz foi a Runa de Ajustamento se ativando para fazer os sapatos ficarem do tamanho dos seus pés ― explicou Saul em um tom calmo.

― Você já ouviu falar em runas? ― perguntou Eliza.

― Mas é claro! A prisão era cercada por elas. ― respondeu Tércio com uma sinceridade tão grande que fez Saul estranhar a comparação. Existia outros exemplos melhores. ― Só não ouvi falar dessa aí.

Era natural para ele conhecer a existência de runas, afinal isso não era nenhum segredo real. No entanto, elas eram raras de ser obtidas por plebeus, e mais raro ainda seria achar um plebeu que pudesse usá-las.

― A Runa de Ajustamento é como o próprio nome diz. Ela é usada para ajustar o tamanho de objetos. ― Saul se propôs a explicar.  Esse tipo é normalmente usado em roupas, sapatos e alguns outros equipamentos.

Oh, Impressionante! ― exclamou Tércio estupefato.

― A Sophia também usa em suas roupas ― informou Eliza. ― Você não reparou?

Ao ouvir isso, Tércio lembrou que quando estava experimentando as roupas, muitas delas pareciam pequenas ou grandes demais para ele. Mas no momento em que as vestia, ficavam perfeitas.

Porém, o que de fato o impressionou não foi as roupas de Sophia conter runas, e sim perceber que a mesma era capaz de ativá-las. Apesar de ele não fazer a menor ideia de como usá-las, sabia que não era uma tarefa simples.

― Como se parece uma runa? ― Tércio estava cheio de curiosidade para com esse assunto, por isso foi logo fazendo perguntas.

― Dê uma olhada na parte interna do punho de sua camisa ― instruiu a duquesa com muita gentileza.

Tércio não perdeu tempo e logo dobrou a borda do punho direito de sua camisa. Gravado no tecido havia desenhos de dois pássaros, um pequeno e o outro grande. Tratava-se de um desenho simples, sem muito apelo; um bordado feito utilizando uma língua escura, que quase não dava para reparar.

― É igual ao da bota ― comentou ele através de um sussurro.

― A runa na camisa foi feita pela Sophia. Ela quem fez as roupas da Equipe de Subjugação. E a da bota, foi feita por Saul ― explicou Eliza.

― Quando se trata de runas, eu não sou tão talentoso quanto a Srta. Sophia ― admitiu Saul envergonhado enquanto passava a mão rechonchuda na cabeça. ― As minhas, ainda são muito chamativas.

Tércio estava impressionado com tudo o que aprendeu, especialmente sobre Sophia.

No entanto, o mais impressionante para ele era estar usando uma roupa com runas. Para um camponês, esse poderia ser considerado um grande tesouro de valor inestimável.

 


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