volume 1
Capítulo 23: Se não pode cortar...
― Já que você não quer cortar o cabelo e se nós o prendêssemos? ― sugeriu Eliza, estreitando os olhos e observando com mais atenção a aparência do menino.
Tércio, que estava tendo uma conversa acalorada com Sophia, ao ouvir a proposta, parou e pensou um pouco sobre o assunto.
― Bem... Se for só prender, não tem problema ― balbuciou Tércio, assentindo com a cabeça.
― Então, assim faremos! ― Com um sorriso gentil, Eliza bateu as palmas das mãos, comemorando o fato de ter conseguido convencê-lo. ― So, você tem algum elástico ou uma presilha... não tão feminina, por aí?
Respondendo com um: “tenho!”; Sophia se atirou outra vez no amontoado de roupas.
No começo, Tércio pensava que ela andava aleatoriamente pela bagunça, até que enfim conseguisse encontrar o que estava procurando. Mas com o tempo, entendeu que Sophia sabia muito bem onde ficava cada uma de suas criações. E ele achou isso incrível. Afinal, ser capaz de andar por aquela “floresta” sem se perder era um feito e tanto.
Uma bagunceira arrumada, é isso que ela é!
Quando voltou, a pequena ofegante estava segurando uma fita vermelha em uma das mãos e um banquinho na outra.
Ela colocou o assento na frente de Tércio e falou:
― Sente-se! ― Apontando para o banquinho com o dedo indicador, So ordenou.
― Ahn? Eu passo? ― Tércio virou o rosto para o lado, demonstrando, de uma forma infantil, que não acataria as ordens dela. Mas Sophia o segurou pelo braço e o empurrou para baixo, forçando-o a ceder.
O garoto brigão, que tinha muitas marcas para provar sua valentia, tentou se levantar, mas a estilista agarrou os seus cabelos e, sem delicadeza nenhuma, começou a puxá-los para trás, para o alto e para os lados, quase arrancando sua cabeça do pescoço.
― O que você vai fazer, So? ― perguntou Eliza, curiosa.
― He! He! Você vai ver! ― respondeu, usando de um tom divertido. A verdade era que, desde o momento em que viu Tércio pela primeira vez, ela já tinha imaginado uma forma de arrumar a revolução armada sobre a cabeça do delinquente.
E foi apenas depois de muito puxar, esticar e enrolar, que Sophia terminou o trabalho que fez de forma tão inspirada.
― Oh! Ficou perfeito! ― exclamou Eliza, impressionada.
― Não ficou!? ― disse Sophia, orgulhosa de si mesma. ― Eu só não consegui prender muito bem essa parte. O cabelo aqui não cresceu direito. Por que será?
Imaginando o que ela tinha feito em sua cabeça, Tércio, que sentia a testa estranhamente esticada, passou as mãos sobre os fios puxados. E na parte de trás, próximo à nuca, ele sentiu um volume anormal.
― O que você fez? ― perguntou com estranheza.
― Ah, espera um pouco! Eu tenho algo aqui... ― lembrou-se a dona da lojinha perdida num bairro abandonado. E logo em seguida ela correu até o final do apertado corredor de roupas.
Quando voltou, segurava um espelho de forma oval cuja parte inferior estava quebrada e com várias rachaduras.
Sophia parou a pouco menos de um metro de distância de Tércio e com seus braços finos, levantou o objeto.
Os olhos de Tércio se iluminaram! Fazia tanto tempo que não via a própria imagem, que já tinha até mesmo começado a se esquecer de como era o próprio rosto. No entanto, a pessoa refletida naquele pedaço de vidro não era ele. Não tinha como ser ele.
O garoto Tércio do qual se lembrava era um pivete maltrapilho, de roupas ensanguentadas e cicatrizes tão profundas que mesmo sua alma exibia marcas. O garoto Tércio do qual se lembrava era um menino de boca suja, que odiava receber ordens e tinha como passatempo planejar fugas de prisões.
Mas aquela pessoa refletida no espelho era um jovem de aparência elegante e olhar sincero. Seu cabelo não era desgrenhado e nem sujo. E sim, um lindo, limpo e quase bem cuidado cabelo, preso em forma de coque, com uma fita esvoaçante de cor vermelha e mechas caídas do lado direito. O garoto refletido no espelho não estava usando roupas que de tão velhas desfazem-se em seus dedos, podres e devoradas por traças. Ele vestia vestimentas novas e belas, tão belas quanto às de um príncipe.
Tércio olhava para o espelho com olhos brilhantes. Ele deslizou os dedos pela túnica, que se estendia um pouco abaixo da cintura, até o novo penteado. Não havia dúvidas de que aquelas mãos calejadas eram as suas. Mas, ainda assim, era difícil de acreditar que aquela pessoa galante refletida era de fato ele próprio.
― O que minha mãe diria... meu pai...― sussurrou sem querer, de forma quase inaudível.
― Você disse alguma coisa? ― perguntou Sophia. Ela não conseguiu escutar com clareza o que havia sido dito. Apenas ouviu um leve murmúrio que soou como palavras emboladas. Mas Eliza, parada logo ao lado dele, o escutou perfeitamente.
― Falei que não ficou nada mal ― comentou Tércio, dando um leve pigarro e recobrando a compostura.
― Nada mal? Ficou foi perfeito! ― protestou Sophia, indignada. ― Eu sou uma gênio.
― A So tem razão. Você está muito bonito. ― Ali do lado, Eliza, com muita gentileza, colocou a mão sobre a cabeça do garoto que resgatou e o afagou.
― Ei! Não me trate como criança! ― grunhiu Tércio com rispidez, que logo em seguida afastou a duquesa, empurrando seu braço.
Mas ela não se importou com o ato grosseiro. Apenas continuou sorrindo de sua maneira gentil e acolhedora.
― Pois bem... Agora experimente estas aqui! ― Bastante animada, Sophia pegou outro conjunto de roupas para o cliente experimentar.
Ele não queria continuar com aquilo. Para Tércio, a túnica e a calça já estavam de bom tamanho. Mas So e Li continuaram lhe empurrando peças novas a todo o momento. E como ele não tinha a menor chance de vencer as duas em uma conversa, continuou vestindo tudo o que lhe era empurrado.
E assim o tempo passou...
Já era quase meio-dia quando enfim todos os artigos masculinos da loja foram testados. Ele agora estava de volta em seu uniforme preto e dourado da Equipe de Subjugação enquanto olhava para as roupas que havia experimentado, decidindo qual delas ele pediria para comprar.
E depois de muito pensar, decidiu ficar com a túnica de cor vinho mesmo. Todas as outras eram muito bonitas, mas a túnica foi a que mais o agradou. E foi ao perceber a própria decisão que ele notou o quão dispensável foi tudo aquilo. Poderiam ter economizado horas.
Sentindo-se um tanto chateado, ele se abaixou para pegar a túnica, que estava junta a enorme pilha, de conjuntos e peças separadas, trazida por Sophia. Mas antes que ele pudesse pegá-la, a voz de Eliza soou:
― Quanto vai custar? ― perguntou a duquesa para a amiga.
Tércio olhou para Eliza com estranheza. Ele ainda nem havia falado qual escolheria e ela já estava perguntando sobre o preço? Será que todas elas tinham o mesmo valor?
― O total é de... Deixe-me ver... ― Sophia olhou para o nada enquanto gesticulava com os dedos, como se estivesse usando um ábaco. E então, depois de um breve cálculo, falou. ― O total é de três Mágitas e oito Mágond!
Via-se a animação estampada no rosto de Sophia. Era como se nem mesmo ela acreditasse que, em uma única venda, havia lucrado tanto. Seu sorriso era tão grande que suas bochechas brilharam.
Por outro lado, Tércio, quando ouviu o preço, engoliu em seco.
No Reino de Aurora, há quatro tipos de moedas, seguindo em ordem de valor: a Mágita, a Mágond, a Mágala e a Mágalda.
Vinte Mágalda valem por uma única Mágala. Trinta Mágala podem ser trocadas por uma Mágond. E oitenta Mágond equivale a uma Mágita.
Tércio, em toda a sua vida, nunca, jamais viu uma Mágita sequer, conhecida como a moeda dos reis. Seu pai possuía uma Mágond, a qual ele tratava como um tesouro, uma pedra preciosa que guardava debaixo do travesseiro em sinal de boa sorte e esse foi o maior tesouro de sua vida.
Três moedas do rei só por uma túnica? Chamar isso de roubo era pouco. Com essa quantia de dinheiro seria possível até mesmo comprar a própria loja.
Tudo bem que Eliza tinha dito que iria lhe dar de presente, mas ele não poderia deixá-la gastar todo esse dinheiro.
― Ei! Isso é muito caro! A rainha passou a bunda aí por acaso? ― esbravejou Tércio, apontando o dedo para Sophia.
― Ahnn? Está chamando de ladra? Não temos uma rainha e esse preço é mais do que justo ― protestou Sophia, indignada com as acusações feitas. ― Não tente estragar meus negócios.
― Justo onde? Você está é querendo nos roub...
Antes que Tércio terminasse sua fala, ele foi pego de surpresa por uma ação de Eliza.
― Aqui estão! Três Mágitas e vinte e sete Mágond! ― De dentro de um saco de cânhamo, a duquesa tirou três cristais achatados, de formato redondo, com uma cor vermelha escura, feito sangue seco, e que possuía o desenho de um pássaro esnobe dotado de um longo pescoço. E vinte e sete cristais, com o mesmo formato, mas ao invés de vermelho era roxo e, no centro, havia um orgulhoso grifo, estufando seu peito. ― Eu também vou levar aquele vestido ― avisou, apontando para um vestido rosa.
Quando Eliza lhe entregou as moedas, as mãos de Sophia tremeram de tal maneira que quase as deixou cair. Seus olhos brilharam tanto quanto ouro. E então, antes que a amiga mudasse de ideia e tentasse negociar o preço ou percebesse que tinha entregado a mais, ela rapidamente escondeu o montante, jogando os braços para trás como se aquilo tornasse as pessoas incapazes de dizer o que estava escondido ali.
― Ei, Eliza! Não seja enganada. Isso é muito caro para uma única túnica ― alertou o ex-detento desconfiado.
― Mas, Tércio, o dinheiro não é apenas para a túnica, e sim para todas as roupas ― esclareceu Eliza, tentando tranquilizá-lo.
― To- todas? ― balbuciou ele, olhando para o amontoado no chão.
― Exato. Todas as roupas que você experimentou ― afirmou a Srta. Griffon, enquanto pegava o vestido rosa.
Por um momento, Tércio ficou sem fala. Mas essa falta de palavras não foi alegria ou surpresa por ter ganhado um presente tão luxuoso, e sim uma suspeita profunda que tomou conta de seu coração.
Não era de agora, mas toda essa gentileza de Eliza era muito suspeita para ele. Primeiro ela o tirou do Coliseu dos Condenados. E ele sabia que isso não tinha sido de graça. De modo algum o diretor o libertaria sem ganhar nada em troca. Posteriormente, durante a viagem de ida para a academia Elefthería, a duquesa cuidou de seus ferimentos, lhe ofereceu um emprego e o tratou como igual, mesmo ele tendo status tão abaixo do dela.
Sim, isso tudo podia ser simplesmente gentileza por parte da duquesa. Mas o seu lado desconfiado, acostumado a traições, não parava de sussurrar em seu ouvido.
E agora, sem sequer titubear, ela estava disposta a gastar uma generosa quantia de moedas com um presente para ele? Um camponês miserável que ela conheceu há apenas poucos dias?
Depois de ganhar tantos presentes, ele preferia acreditar que tudo isso era coisa de sua cabeça. Esta Eliza bondosa não era uma pessoa tão ruim de ter por perto e por isso desejava estar errado, desejava não conhecer um outro lado que fosse igual “àquelas” pessoas. Ele não se importaria com um pequeno segredo, porém um caráter podre seria difícil de ignorar. No final, não tinha outra escolha. Precisava saber.
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