volume 1
Capítulo 20: Cumprindo uma promessa
Após terminar o jantar, Tércio voltou para o quarto, mas não antes de Emily e Arthur lhe desejarem uma boa noite.
Quando alcançou o lugar no qual passaria a noite, ele fez algo que queria fazer desde que viu aquela cama gigante e fofinha pela primeira vez, mas se conteve por causa de Valérios.
Antes de mais nada, ele tirou os sapatos, o que não foi difícil já que estavam desamarrados, e da porta do quarto disparou em uma corrida animada. Quando se aproximou o suficiente da cama localizada a direita, pulou de braços abertos.
O garoto de estômago cheio quicou umas três vezes antes de seu corpo afundar no colchão, que liberou um cheiro de flores silvestres ainda mais marcantes do que o sabonete. Foi uma experiência divertida, embora seu sorriso tenha sido tão escasso.
Ainda deitado, ele tirou a camisa e a jogou sobre a mesa com livros, na qual a toalha ainda permanecia. E, sentindo-se mais à vontade, espreguiçou-se.
O dia tinha sido cansativo. Primeiro a viagem, que durou horas numa carruagem que não parava de chacoalhar, sem falar nos monstros atacando a todo instante. Mesmo que Kacio tenha sido o responsável por cuidar deles, ainda assim foi bastante exaustivo. Depois teve o banho ― bem, quanto a isso não havia nada para reclamar; ainda podia ver as bolhas flutuando e estourando quando fechava os olhos. E para completar, o jantar delicioso servido por Emily o deixou com a barriga pesada.
Sentindo cada fibra do corpo exausta, Tércio se esparramou no colchão e fechou os olhos...
No dia seguinte, quando acordou, ainda estava escuro, mas não demorou muito para os primeiros raios solares espantarem as trevas para longe. Tércio se sentou na beira da cama e se espreguiçou enquanto abria a boca em um forte bocejo.
Ainda sonolento, levantou-se e foi até a mesa em que estava sua camisa, da Equipe de Subjugação, e a vestiu.
À medida que abotoava a camisa preta e dourada, ele espiou através da janela, na parte em que a cortina bege não estava cobrindo, e se surpreendeu...
Era como Henry tinha falado na noite passada, havia mesmo um belo jardim do lado de fora.
Tércio foi até a abertura e escancarou a cortina, dando lugar a uma vidraça enorme e transparente que permitia enxergar o que estava além.
Do lado de fora do quarto, uma vista magnífica, de um jardim exuberante, enchia os olhos daquele garoto maltratado de beleza.
Próximo a parede, um canteiro de flores de todos os tipos exalava uma doce fragrância que sutilmente entrava pelas frestas da janela, perfumando o quarto e aromatizando os tecidos próximos. Tércio respirou fundo, sentindo aquela essência delicada, e se lembrou dos dias em que ajudava seu pai nos campos de plantações.
Mas as flores não eram tudo o que havia no jardim. Um tapete verdejante de grama se estendia até um fino córrego de águas cristalinas que separava o dormitório masculino do feminino.
Do quarto não se podia ver muito do riacho, mas Tércio podia jurar ter avistado um peixe azul saltar de dentro dele. Algo de fato bastante exótico.
O garoto ficou ali parado por alguns instantes, admirando a paisagem que o fazia lembrar dos dias pacíficos em que viveu com sua família no campo. Ele recordou que próximo a sua antiga casa existia um córrego como aquele, que era usado para regar as plantações e saciar a sede dos animais.
Desligando-se de suas recordações, pois era melhor assim, Tércio deixou o quarto e se dirigiu para o banheiro. No caminho para lá, percebeu que tinha se esquecido de colocar os sapatos.
Já fazia tanto tempo que não usava nada nos pés que agora que enfim ganhou um par de sapatos novos demoraria um pouco para se acostumar. Ontem mesmo, quando estava indo jantar, várias vezes pensou em tirá-los, pois eles estavam o incomodando muito.
O banheiro, que ficava na porta direita no final do corredor, era de uso coletivo, e nele havia diversas cabines separadas umas das outras por finas paredes de madeira.
Depois de usar o banheiro, Tércio pensou em passar no refeitório. Apesar de ter se empanturrado na noite passada, acordou morrendo de fome. Mas quando estava cruzando o corredor, avistou uma figura conhecida.
O professor Henry vinha em sua direção a passos largos, com a capa de cor carmim esvoaçando em suas costas. Quando percebeu o garoto, diminuiu a velocidade e com a mão direita acenou, tentando chamar sua atenção.
― Tércio, você está aí. Que bom que te encontrei. Passei no seu quarto, mas você não estava lá ― disse Henry, parecendo um tanto agitado. Ele estava ofegante, como se tivesse acabado de fugir de um Ogro das montanhas.
― O que foi?
― Não é nada demais, é só que... ― Henry respirou profundamente, tentando recuperar o ar perdido, e continuou: ― A Dir.ª Eliza me pediu para vir buscá-lo o quanto antes, e eu não queria deixá-la esperando. Então, vim correndo
― Devia relaxar um pouco. Aquela mulher não é isso tudo ― comentou Tércio, olhando-o com uma expressão pouco animada.
― Talvez você tenha razão. Ah! Ah! ― O professor exibiu um meio sorriso sem graça.
― A gente vai ou não vai? ― Embora desejasse ir direto para o refeitório, sentia que qualquer tentativa de ignorar Eliza apenas resultaria em mais dor de cabeça.
― Então vamos indo. Ah, é mesmo! Eu ainda não te dei bom dia, não é? ― Henry exibiu uma expressão agradável e acenou com a cabeça. ― Bom dia!
― Sim! ― respondeu o condenado de qualquer jeito.
Quando eles estavam se aproximando do saguão de entrada do dormitório masculino, Tércio se lembrou que ele ainda tinha que colocar os sapatos. Ele pediu para Valérios esperar e foi correndo para o quarto.
Chegando lá, enfiou os pés dentro dos calçados e, como não se deu ao trabalho de amarrá-los, saiu em seguida. Mas quando estava deixando o quarto, lembrou-se de algo relacionado ao uniforme branco.
Com essa lembrança em mente, ele saiu e, logo ao se juntar a Henry, perguntou:
― Porque ontem você não voltou pra buscar as roupa branca?
― Bem, à Dir. Eliza me disse que ela mesma lhe contaria a respeito disso e para deixar aquele uniforme com você por enquanto.
Tércio aparentava ter se conformado com a resposta, mas a verdade era que, lá no fundo, tinha uma pequena esperança de que aquele uniforme dado ao acaso não fosse um mero engano e que ele de fato fosse se tornar um novo aluno da academia.
O primeiro plebeu a entrar para a academia Elefthería e aprender Encantamentos Mágicos. Isso parecia muito legal.
Porém, isso não passava de uma falsa esperança, já que plebeus não podem estudar esse tipo de magia. Por esse motivo, ele suprimiu tais pensamentos o máximo que pôde, para que num futuro muito próximo não se decepcionasse.
Seguindo o mesmo trajeto da noite passada, os dois se dirigiram para a sala de Eliza, que ficava no último andar do edifício em que eram dadas as aulas. Quando chegaram, a diretora estava sentada atrás de uma imponente mesa, em uma poltrona que era mais alta do que ela.
O assento de madeira tinha um tom avermelhado e um estofado de cor púrpura. E a mesa, que também era feita de madeira maciça, possuía a mesma coloração avermelhada.
Na noite passada, como a conselheira Darcy apareceu de repente e foi logo dando um sermão, Tércio não teve a chance de olhar direito à sala de Eliza, mas agora que não havia ninguém gritando, ele finalmente pôde olhar com mais calma.
A sala era imensa, duas vezes maior, ou mais, do que o quarto em que passou a noite. Na parede, duas gigantescas janelas, que davam vistas para uma parte desconhecida da academia, irradiavam a luz do sol, o que tornava desnecessário o uso de Claritas durante o dia. E no fundo, atrás da mesa na qual Eliza se encontrava, entalhado na parede, havia um enorme desenho do brasão da família real.
― Bom dia! ― desejou Eliza em um tom carinhoso e empolgado.
No momento em que Tércio entrou na sala, ela se levantou em um salto e abriu um largo sorriso, o mesmo sorriso que sempre fazia quando conversava com o menino.
― Como é que tá? ― disse Tércio sem muita empolgação.
― Henry, agradeço por tê-lo trago. Você já pode ir agora. ― Eliza dispensou o professor que não tinha motivos para contestar.
― Ah, Tércio... Vejo que se livrou daqueles trapos e também tomou um banho. Já não aguentava aquela catinga. E esse uniforme não ficou nada mal, até que enfim está parecendo um humano ― comentou uma voz irritantemente familiar.
O ex-prisioneiro olhou na direção da voz e, ali, esparramado em um largo sofá marrom estava um homem de cabelo preto e vestes de mordomo. Kay sequer se deu ao trabalho de se sentar. Ele apenas inclinou a cabeça e lançou aquele seu típico sorriso travesso.
― Kay! ― repreendeu Eliza com um olhar severo. No entanto, o mordomo folgado apenas repousou sua cabeça numa almofada e fechou os olhos. ― Mas tenho que admitir, essas roupas combinam com você!
― Eu sei, tô lindão! Mas por que me chamou aqui? ― indagou Tércio, que não deu a mínima para o comentário de Kay.
― Você se esqueceu? Eu não lhe disse que quando nós chegássemos à academia, eu iria comprar roupas novas pra você?
― Eu me lembro, mas... Está mesmo tudo bem? Quero dizer, aquela mulher, a tal da conselheira, não vai ficar zangada se você sair de novo? ― Era óbvio que ele não tinha se esquecido, mas depois do sermão que a diretora recebeu na noite passada, pensou que ela não poderia cumprir sua promessa tão cedo.
― Não se preocupe com isso. Contanto que eu não deixe a academia, não vai haver problema nenhum. ― Enquanto falava, Eliza caminhou em direção ao rapaz de expressão indócil e quando se aproximou o suficiente, reparou em algo que não tinha notado até então. ― Porque os seus sapatos estão desamarrados? ― questionou ela, com estranheza, olhando para baixo.
― Bem, pra ser sincero, eu não sei fazer isso. ― disse ele, balançando os sapatos. ― Minha mãe falava que tem que dar um laço, mas não sei como.
― Entendo. Você não sabe como amarrá-los... Então, vamos comprar um que não precise de cadarços e outro para treinar. ― concluiu Eliza. ― E mais tarde eu irei ensiná-lo a dar um lindo laço, tudo bem? Venha, vamos indo. Quanto mais cedo formos, mais roupas poderemos comprar ― sorriu para Tércio. ― E Kay, se alguém vier me procurar, diga que estou no distrito comercial.
Tércio pensou em perguntar à duquesa quantas roupas ela pretendia adquirir. Mas depois mudou de ideia. Ele não queria correr o risco de fazê-la desistir de seja lá quais planos tenha feito.
E então, com a diretora guiando o caminho, os dois deixaram a sala. O destino era o distrito comercial.
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