volume 1
Capítulo 11: Um lugar sem cor
A despeito dos últimos eventos que marcaram aquela noite e das novas descobertas que deixaram sua mente perto do delírio, Tércio gozou de um sono tranquilo e imperturbável, livre de pesadelos e vontade incontrolável de ir ao banheiro.
Na manhã seguinte, quando acordou, o único que estava no quarto era Kacio, cujo rosto rendia uma visão pouco agradável ao garoto.
― Ah! Você enfim acordou. A Srta. Eliza está te esperando para tomar o café da manhã ― informou o sujeito brigão ao notar que o companheiro indesejável de viagem tinha acordado. O cavaleiro não agia tão grosseiro quanto na noite anterior, mas ainda notava-se severidade no tom de sua voz.
Depois de falar da esperada da duquesa, Kacio também explicou a Tércio como fazia para chegar ao local em que serviam o café da manhã, afinal todo o resto da hospedaria estava fechada e seria fácil para uma pessoa desatenta se perder nos numerosos corredores abandonados.
O maltrapilho ainda estava sonolento quando se levantou e sentiu que não seria uma ideia ruim se deitar e voltar a dormir, porém o estômago vazio e reclamão era mais forte do que os bocejos e os olhos lacrimejantes.
Assim sendo, ele, que não possuía vestimentas reservas para se trocar, saiu do quarto e desceu rumo ao lugar indicado que ficava próximo da recepção. E logo ao alcançar o primeiro andar, avistou Kay e Eliza, sentados juntos em silêncio.
Sobre a mesa ocupada pelos dois havia algumas poucas frutas e pães frescos de farinha de trigo, além de uma jarra de água e outra de suco ― isso era tudo. Nada espetacular para o café da manhã de uma duquesa.
― Bom dia! ― Eliza recebeu o jovem com um sorriso simpático.
Mas ele não respondeu. Apenas se sentou e começou a comer uma maçã. Sem pedir permissão ou agradecer pela refeição.
― Você deve estar com muita fome ― comentou Eliza, tentando iniciar uma conversa. Mas como era de se esperar, foi ignorada.
― Assim que o senhor terminar o seu desjejum, ficarei feliz em acompanhá-lo durante a compra de roupas novas! ― disse Kay, apresentando um estranho tom cordial.
― Ah! É mesmo! Vocês vão sair juntos para fazer compras – lembrou-se Eliza, parecendo animada. Em seu rosto, um genuíno sorriso de empolgação se abriu, mas que veio acompanhado por traços de inveja, pois não participaria da divertida atividade.
Tércio também tinha se esquecido desse detalhe. Depois de tudo o que aconteceu na noite passada, a última coisa passando por sua cabeça eram roupas novas. Sem mencionar que, não queria de forma alguma ficar sozinho com Kay. Sentia algo estranho cercando o mordomo, era uma sensação bizarra, fora do lugar, desconexa. E essa sensação o incomodava.
Mas, por outro lado, essa era a chance perfeita de fazê-lo falar sobre a tal organização, citada pelo cavaleiro.
― Eu queria ir com vocês, mas Kacio e eu precisamos falar para o chefe da vila sobre os Ogros e conseguir suprimentos para a viagem ― lembrou Eliza, desanimada.
Ela parecia chateada de não poder acompanhá-los, mas para Tércio isso era melhor, pois, apesar do incômodo que sentia próximo do mordomo, se eles estivessem sozinhos, as chances de conseguir alguma informação seriam maiores.
Após acabar o café da manhã, Eliza disse para eles comprarem roupas bem bonitas e não se importarem com o preço, pois pagaria tudo. E logo em seguida ela saiu para se encontrar com Kacio, deixando os dois sozinhos.
Não demorou muito para Tércio também terminar o desjejum. E assim que comeu o último pedaço de pão e bebeu a última caneca de suco, Kay olhou para ele e brincou:
― Então, iremos comprar sapatos ou meias primeiro? ― perguntou, balançando um saco de cânhamo, que retinia com o barulho de cristais se chocando.
***
Do lado de fora da hospedagem.
― E aí, pra que lado a gente vai? ― questionou Tércio com rispidez. Não tinha a menor intenção de iniciar um diálogo amigável.
Mas o mordomo não deu muita importância para o modo pouco polido de falar do garoto. Apenas olhou de um lado para o outro, estudando as ruas que ficavam de frente para a hospedagem, e após algum tempo ponderando, concluiu:
― Por aqui! ― falou, apontando para uma rua que cruzava à esquerda.
E após traçar um caminho, os dois seguiram em silêncio pela direção indicada, com Tércio sempre ficando um passo atrás. Eles andaram por breves minutos, virando aqui e ali em algumas passagens, até que a paisagem mudou, afundando numa melancolia ainda mais marcante, e os dois se viram em um lugar deserto.
O caminho indicado pelo mordomo acabou levando-os para uma área desabitada.
Diversas moradias preenchiam o lugar, indo das mais simples até as mais ostensivas, com seus dois andares e portas robustas e decoradas por arabescos entalhados na madeira. Porém não existia um único ser habitando a região, o que trazia uma peculiar e desconfortável sensação de exílio.
Algumas das residências estavam caindo aos pedaços e outras envolvidas por grossas camada de poeira. Mas também era possível encontrar aquelas que se apresentavam em perfeitas condições; exterior polido e limpo, escadarias frontais intactas, livres de cupins e telhados conservados. A impressão deixada era a de que uma imigração em massa havia acontecido, começando pelos mais carentes e contagiando todo o resto no decorrer de anos.
― Ei, que lugar é esse? ― perguntou Tércio, olhando em volta.
― Ora, parece que nos perdemos ― respondeu Kay, bastante despreocupado. O fato de ter errado o caminho para as grandes lojas não o incomodava nem um pouco.
― Você pelo menos sabe pra onde a gente tá indo? ― balbuciou, impaciente.
― Não faço ideia. ― Deu de ombros. ― Eu pensei que seria mais divertido descobrirmos juntos ― exprimiu um sorriso contraditório.
Tal resposta descompromissada apenas serviu para arrancar um suspiro enraivecido de Tércio, que foi acompanhado de um olhar severo e julgador. Desde o momento em que foi atribuído a Kay a tarefa de lhe ajudar a comprar roupas, ele experimentou de um péssimo pressentimento. A ambiguidade velada pelas expressões duvidosas do mordomo o deixava incomodado e em constante estado de alerta.
― Não fique tão impaciente. Pelo menos agora temos a chance de nos conhecermos melhor ― propôs o sujeito duvidoso, reparando no nada discreto olhar do garoto.
― Não quero te conhecer melhor. ― exasperou.
― Por que você não me fala um pouco mais de seus pais? ― sugeriu o mordomo, ignorando o tom ranzinza da outra parte.
― Por que você não fala mais da organização que os matou? ― retrucou, bastante astuto.
Essa era a chance que estava esperando. Agora, tudo o que precisava fazer era pressionar o mordomo até ele dizer tudo o que sabia.
― Ora! Parece que você e o Kacio conversaram um pouco mais depois de eu os deixar sozinhos ― insinuou, apertando os olhos e exprimindo uma voz ardilosa.
Quando Tércio citou a tal “organização” desconhecida, por um instante, tão breve que quase se tornou imperceptível, pôde ser visto um brilho perigoso percorrer os olhos de Kay.
― O fortinho lá só me falou que a tatuagem é a marca usada por um grupo.
― Entendo... ― sibilou, deixando escapar uma nota áspera. E após um momento de silêncio, que pouco parecia uma reflexão profunda e sim uma tentativa esdrúxula de deixar tudo mais dramático, voltou a falar. ― Lamento dizer, mas não há muito que eu possa contar. ― E como na noite anterior, Kay deu as costas e começou a ir para outra direção.
― Não preciso de você me dizendo nada ― retrucou Tércio, parado no mesmo lugar e numa postura desafiadora. ― Essas pessoas, seja lá são, é conhecidas o suficiente pra fazer você e o fortinho ficarem se borrando ― provocou, exibindo um meio sorriso desdenhoso. ― Por isso, tenho certeza que existe mais alguém por aí que sabe sobre eles.
Nesse momento, o mordomo parou e, ainda de costas, sibilou, usando de um timbre perigoso:
― He! He! He! Primeiro: eu não “me borro” para nada! Segundo... ― Kay se virou e foi nesse segundo que Tércio percebeu ter cometido um grande erro ao tentar provocá-lo.
Seu rosto se encontrava distorcido em um sorriso tão medonho e repugnante que nem mesmo o horror despertado pelas criaturas mais abomináveis e profanas poderiam se comparar. A pele cobrindo sua face deixava uma sensação anormal de bestialidade, feito um manto encobrindo o lado mais nauseabundo de uma existência diabólica.
Quando viu aquela coisa se virar, Tércio sentiu suas pernas vacilarem enquanto um calafrio atravessava seu corpo, despertando medos e apreensões arcaicas, que sequer imaginava poderiam ser possíveis.
Diferente de Kacio que impunha uma presença esmagadora, a provocada pelo mordomo era a de algo frio, horrendo e inescrupuloso. Mesmo o falso sorriso estampado em seu rosto distorcido não servia para torná-lo mais humano.
― Se você fosse atrás deles agora, não seria nada divertido! ― O abominável serviçal acrescentou.
Tércio sentiu o medo aos poucos corromper seu coração. Ele sabia que se não fizesse nada logo, seria tomado pelo terror que aquela coisa representava.
― O que isso quer dizer?! ― trovejou, tentando superar a presença horripilante. Gotas de suor, frias e mórbidas, escorriam de sua testa. Embora não demonstrasse ou tentasse não demonstrar, estava apavorado. Tratava-se de um medo nunca sentido antes, um receio hediondo e profano.
― Você é uma ponta solta, um trabalho incompleto que uma hora ou outra eles precisarão completar. ― Mais um vez, sua personalidade se alterou, deixando o abominável de lado e assumindo um aspecto melodramático. ― Ou seja ― continuou ―, mesmo que não vá atrás deles, eles virão até você! ― proferiu Kay, exprimindo um tom teatral enquanto balançava os braços em um gesto dramático e espalhafato.
Foi ao ouvir a conclusão que, por um segundo, Tércio abandonou o medo e pavor que o ser sinistro em sua frente despertava e focou os pensamentos em outro ponto. O mordomo estava certo. Mesmo se tentasse juntar alguma informação referente a tal organização misteriosa, não existia qualquer garantia de que no final conseguiria encontrá-los. Porém se agisse como isca e conseguisse atraí-los, o seu trabalho seria muito mais fácil.
Mas só havia um problema...
― Se esse é o caso, então porque ninguém veio atrás de mim até hoje?
― E quem garante que não foram? ― falou Kay, voltando ao seu tom habitual, embora fosse possível notar certos traços distintos em sua voz.
Para esse comentário, Tércio esboçou uma cara estranha. Seria possível alguém ter mandado matá-lo? De fato muitas pessoas já tentaram contra sua vida, mas todas eram prisioneiros.
Se alguém além de seus companheiros de celas já tiveram o objetivo de tirar sua vida, ele não sabia.
― Fazer eu de isca parece ser um bom jeito de conseguir umas informação ― comentou, dando indícios de que concordava com a proposta. ― Só tem uma coisa que tá me incomodando. Por que você tá tão interessado neles?
― Não se preocupe com pequenos detalhes. Vamos, nós temos roupas para comprar. ― recusando-se a se alongar mais no assunto, Kay se virou e voltou a caminhar pelos arredores da vila.
Vendo-o se afastar, Tércio não pôde deixar de estranhar aquele homem. Desde o instante em que o viu, achou que havia alguma coisa de errado com o mordomo.
Depois de passar algum tempo viajando junto do grupo, a impressão de que existia alguma coisa de muito errada com aquele sujeito se tornava mais evidente.
Em alguns momentos ele agia com elegância, em outros, era um completo folgado que não obedecia nenhuma das ordens de Eliza. Sua personalidade ficava assim, flutuando de tempos em tempos.
Mas agora, depois de experimentar todo horror de um segundo atrás, Tércio finalmente entendeu o motivo por trás desse comportamento inconstante. Aquele não era o seu verdadeiro “eu”.
Assistindo o mordomo se afastar, o jovem chateado por não ter obtido respostas satisfatórias suspirou e resmungou:
― Um dia desses eu te mato!
― He! He! Seria divertido! ― respondeu o mordomo, exibindo um sorriso travesso.
Mirando as costas do sujeito em sua frente, Tércio não conseguia deixar de pensar em qual era o problema daquelas pessoas.
Primeiro havia Kacio, um poderoso Cavaleiro de Palavras Encantadas que não hesitaria em matá-lo. Depois era Kay, um sujeito que o lembrava dos monstros aprisionados na prisão. A única pessoa que aparentava ser razoável era Eliza.
Ele suspirou algumas vezes, imaginando em que tipo de situação havia se metido, mas no fim decidiu voltar a procurar por roupas novas. E assim, os dois vaguearam pelas ruas da Vila Cinzenta por algum tempo.
Eles percorreram toda a periferia da vila, mas não encontraram vendas de tipo algum. Na verdade, até mesmo pessoas era uma visão rara por aquelas ruas desérticas. O povoado estava abandonado em sua maior parte. Era como transitar por uma cidade fantasma.
Apenas vez ou outra um senhor de idade, já no fim da vida, aparecia, sentado na varanda e olhando para o nada. Entretanto, em contrapartida, não era possível encontrar mulheres ou crianças em canto algum.
Como a Vila Cinzenta era considerada um grande povoado, com capacidade para mais de cinco mil pessoas, aquela cena era de fato um tanto perturbadora.
― Pra onde foi as pessoas desse lugar? ― questionou Tércio, com estranheza.
― Como você esteve na prisão, não me surpreende que não saiba. Mas nos últimos anos muitas pessoas deixaram o reino em um êxodo em massa ― informou Kay.
― Por quê?
― Bem... digamos que temos enfrentado tempos difíceis... E um rei idiota ― murmurou a última frase com uma voz baixa, de forma que mesmo o garoto ao seu lado teve dificuldades para ouvir.
― Hm... Então o que vamos fazer agora? ― Tércio não se importava nem um pouco com o que acontecia no reino, já que isso era problema dos nobres. Ele estava interessado em outra coisa.
― Já está mais do que claro que não encontraremos nada aqui. Então o que acha de irmos para a área central da vila? Talvez tenhamos mais sorte ― sugeriu o mordomo.
E assim, mais uma vez eles saíram à procura de uma loja ou um armazém velho, caindo aos pedaços e que ainda estivesse funcionando. Porém, quase nada mudou a não ser pela paisagem.
Como Tércio e os outros chegaram à noite na Vila, eles não viram muita coisa. Mas agora que o sol brilhava por essas terras, a visão que se tinha era desoladora.
Na área central do povoado, viam-se diversos armazéns, ferrarias, tabernas, entre outros tipos de comércios, mas estavam todos a portas fechadas.
As pessoas que passavam pelas ruas, todas carregavam a mesma expressão de cansaço marcado no rosto e desalento. Mesmo as crianças, que deveriam estar correndo à solta, dando trabalho aos seus pais, não demonstravam vida.
Não havia alegria, diversão ou entusiasmo. Aquela era uma vila sem cor...
Após andar por toda a região habitável à procura de um lugar para comprar roupas, os dois terminaram não encontrando nada e se viram obrigados a desistir do objetivo.
Tércio estava um pouco desapontado. Ele já tinha até imaginado alguns modelos de vestimentas que desejava comprar, mas agora teria de continuar com seus velhos trapos surrados e ensanguentados.
Desapontados, os dois voltaram para a hospedaria.
E quando chegaram em frente ao que um dia foi um luxuoso ponto de referência para os visitantes, avistaram Kacio, que estava parado no meio da rua nada movimentada, junto da carruagem púrpura.
No momento em que o cavaleiro os viu chegar, foi logo perguntando:
― Aonde vocês foram? A Srta. Eliza estava começando a se preocupar. ― disse em tom de repreensão enquanto exprimia um semblante severo.
De fato, Kay e Tércio demoraram muito em sua busca fracassada. No começo, o planejado era para fazerem tudo dentro de uma hora, porém fazia mais de três horas desde que partiram da hospedagem e isso tudo graças ao mordomo, que ficou dando voltas ao redor da vila.
E Kay já estava pronto para responder, quando Eliza saiu da hospedaria.
― Tércio! ― proferiu, demonstrando certa surpresa ao vê-lo. ― E as suas roupas novas? ― questionou ao se aproximar.
― A gente não encontrou nada, estava tudo fechado. ― respondeu ele, com sinceridade.
― Entendo... Nós também tivemos muita dificuldade em conseguir os suprimentos para a viagem ― confessou Eliza, deixando um olhar distante e entristecido tomar conta de seu rosto.
― Tá tudo bem? ― perguntou Tércio, notando a expressão melancólica da duquesa. Ele não se importava, mas mesmo assim perguntou.
― Não é nada demais, é só que... esta vila já foi considerada uma das mais prósperas dessa região e vê-la assim é meio... triste.
Tércio não compartilhava de tais sentimentos, afinal essa era sua primeira vez nesse lugar. Mas ele entendia o que ela queria dizer. Ver uma vila que outrora fora grande e próspera à beira da extinção era estranho e vazio.
― Bem, já estamos com tudo pronto para a viagem, é melhor partimos logo – sugeriu Kacio.
― Você tem razão. ― concordou Eliza.
E dessa forma, sem outros assuntos para resolver naquela região, o grupo subiu na carruagem e partiu rumo à Academia de Encantamentos Mágicos de Aurora.
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