O Condenado Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


volume 1

Capítulo 10: Recordação

No quarto destinado aos homens, reservado por Eliza na Hospedagem do Descanso Tranquilo, a sensação era sufocante. De um lado, um Cavaleiro de Palavras Encantadas, do outro, um garoto teimoso, que não recuaria mesmo se isso lhe custasse a vida.

Kacio apontou sua espada para a garganta de Tércio firme, resoluto e marcado por uma postura intimidante. No começo, pretendia escutar a história dele e só depois de decidir se o garoto era uma ameaça ou não, agiria.

Mas dada as circunstâncias, ele não tinha opção a não ser acabar com isso o quanto antes. Mesmo o outro lado sendo apenas um menino, não podia permitir a um assassino ficar perto de sua senhorita. Kacio não tolerava arriscar a segurança de Eliza, deixando-a passar seu tempo próxima de alguém tão suspeito.

Chamas crepitavam nas mãos de Tércio, lançando faíscas que reluziam perigosamente pelo quarto mal iluminado. Sabia que não podia vencer esse oponente monstruoso, afinal suas condições não eram das melhores e ainda não havia recuperado as forças, mas não seria por isso que recuaria.

Talvez tudo se resolvesse caso decidisse contar sua história, contudo ele não tinha obrigação de se abrir para um estranho que acabou de conhecer, em especial um que ameaçava sua vida. Além do mais, quem poderia garantir que após falar de seu passado, Kacio recuaria?

Os dois estavam se encarando com uma ferocidade abrasadora. Um esperando o outro fazer o primeiro movimento.

Tércio sabia que se atacasse primeiro, seria morto instantaneamente, sentia isso na pele, nos arrepios que se espalhavam por todo o seu corpo. E Kacio procurava por um motivo para não precisar matar uma criança. Mas então, após alguns instantes de difícil ponderação, o cavaleiro chegou a uma decisão...

Já não havia porquê recuar. Se desistisse ou hesitasse agora, sua decisão poderia gerar consequências graves no futuro das quais não estava disposto a se arriscar.

Kacio apertou o cabo da espada e, com uma velocidade explosiva, em um instante cobriu a distância separando os dois. Sua lâmina estava ao alcance do pescoço de Tércio...

Porém, antes que ele pudesse completar o golpe, uma voz o interrompeu:

― Eu saio por um instante para preparar o meu chá e vocês tentam se matar? ― Kay apareceu de repente na porta do quarto, carregando uma xícara de chá. ― Poderiam ter me chamado ― brincou, esboçando um sorriso traiçoeiro.

No momento exato em que Kacio avançou contra Tércio, decidido a arrancar-lhe a cabeça, o mordomo o interrompeu numa abordagem nada restritiva.

A lâmina de sangue parou a centímetros do pescoço do alvo, detendo-se antes de cumprir seu objetivo e degolar o inimigo.

― Pretende me impedir? ― perguntou o Cavaleiro de Palavras Encantadas enquanto mantinha sua espada erguida e pronta para completar o assalto.

― Mesmo se eu quisesse, não teria como... ― respondeu Kay arqueando os ombros, de forma impotente.

E embora o ataque tenha sido interrompido devido a chegada de um terceiro sujeito, Tércio ainda assim manteve o olhar fixo em seu inimigo, perfurando-o com olhos, quase como se fosse uma afronta. Ele sabia que não podia ser descuidado nesse momento crítico.

― E mesmo que eu pudesse ― continuou o mordomo, exprimindo um semblante ardiloso ―, não haveria necessidade.

Com as sobrancelhas arqueadas, o cavaleiro tentou desvendar as palavras de Kay, pois sentiu certa insinuação em sua alegação. Ele correu os olhos ao redor do garoto e reparou em algo que não tinha notado até então.

No pescoço de Tércio, no exato local em que a espada mirava, um fio azulado bruxuleava com tamanha timidez que aparentava estar a um passo de se apagar. O traço azul era fino, quase tão estreito quanto um fio de cabelo dançante.

― O que é isso? ― questionou Kacio com estranheza.

A chama misteriosa, que se manifestou sem chamar atenção ou sequer emitir um ruído denunciador, era diferente daquela brilhando nas mãos do menino e isso deixou o cavaleiro intrigado e cauteloso. Isto era algo que não havia cogitado até o momento, mas ao pensar que o jovem não recuou apesar de ter testemunhado sua demonstração contra os Ogros, ficava evidente que a outra parte possuía seus truques.

― Vai saber! ― Tércio deu de ombros. ― Porque você não tenta descobrir? ― provocou, exibindo um sorriso malicioso.

Sentindo-se afrontado, os olhos de Kacio emitiram um brilho intenso conforme seus dedos apertaram ainda mais intensamente o punho da espada. O Cavaleiro de Palavras Encantadas pareceu, por um segundo, tentado a descobrir do que essa chama misteriosa era capaz.

A tensão mais uma vez cresceu à medida que os dois se encaravam, indispostos a recuar e sem mostrar o mínimo de hesitação.

Quando Kay chegou, os ânimos se acalmaram por um momento. Mas após o comentário provocativo de Tércio, eles mais uma vez se mostraram prontos para se atracarem em uma luta ferrenha, igual a homens incivilizados, incapazes de resolver os problemas através de diálogos.

Vendo aquilo, o mordomo balançou a cabeça em negativa, decepcionado. Em seguida, colocou o chá sobre a mesa e disse:

― Tércio, eu entendo que você não queira falar sobre o seu passado; deve ser um assunto doloroso, mas vale a pena morrer por isso?

nem aí de falar do passado, só não gosto dos outros me dando ordem! ― ralhou em resposta, mantendo um semblante desafiador em direção ao cavaleiro. ― Tá achando que é quem?

O garoto de cabelo mascado de fato não se importava em falar a respeito do que ficou perdido no tempo. Para ele, passado é passado. Mas Kacio o pressionou ao ponto de soar como uma ameaça e aquilo o irritou.

― Sendo assim, porque não nos conta sua história? ― propôs Kay, com seu sorriso habitual.

Tércio pensou por um momento. Não queria ter de se render dessa forma, mas essa era a melhor opção. Afinal ele finalmente tinha saído da prisão e até mesmo conseguiu um emprego e um lugar para ficar. Desperdiçar tudo isso por teimosia seria estupidez.

O ex-prisioneiro refletiu por um tempo. Mas é claro, em momento algum desgrudou os olhos de seu inimigo. E quando por fim decidiu se submeter e contar sua história, soltou um suspiro descontente, antes de começar.

― Bem... tanto faz. ― murmurou, relutante.

Tércio baixou os braços e suas chamas desapareceram. Kay sentou-se em uma cadeira e cruzou as pernas. Assim poderia ouvir a história enquanto apreciava seu chá. E Kacio, por sua vez, recolheu a espada e se afastou alguns passos, sinalizando uma trégua temporária.

― Quando eu tinha dez anos... ― E assim começou a história responsável por mudar a vida de um garoto antes inocente, ou ao menos, parte dela.

O que ele falou foi o seguinte...

Até os dez anos, Tércio morava com seus pais e um irmão mais velho.

A casa deles ficava um pouco afastada do vilarejo no qual moravam, pois era dever de seu pai monitorar os campos de plantação que alimentavam toda a população para evitar que animais selvagens os destruíssem.

Certo dia, sua mãe o pediu que fosse até a vila para entregar algo que havia preparado para uma amiga ― um acontecimento rotineiro. E obedecendo as ordens, ele logo saiu de casa.

O vilarejo não ficava tão longe de onde sua residência se localizava ― apenas alguns minutos de distância ―, no entanto, toda vez que Tércio o visitava, ele fazia uma parada na volta e brincava com os amigos que tinha por lá, e por isso sempre se atrasava na hora de ir embora.

E naquele dia não foi diferente...

Quando por fim voltou para casa depois de se divertir e atualizar os colegas de como estava o trabalho no campo, deparou-se com uma cena que rouba-lhe o sono até mesmo nos dias de hoje.

O piso da casa estava coberto de sangue. Os corpos do seu pai, irmão, e da sua mãe, encontravam-se caídos em partes diferentes da casa.

Em choque e sem saber o que tinha acontecido, ele tentou em vão acordar o pai, que estava caído próximo a porta de entrada, e foi quando um homem coberto de sangue apareceu.

O homem até tentou capturar Tércio ou pior, mas na época ele já havia despertado uma parte de sua habilidade. Então, quando o sujeito tentou lhe agarrar, tomado pelo desespero o atacou com suas chamas e fugiu...

― Depois disso, eu fiquei alguns dias no bosque que ficava perto de onde eu morava. Quando voltei para o vilarejo, os cavaleiros me prenderam e me acusaram de assassinar a minha e outras quatro famílias. ― Por fim, concluiu a história.

Em momento algum, ele abordou questões mais pessoais, como, por exemplo, o tipo de relação que tinha com sua família, o que aconteceu depois de ser preso ou de que maneira foi encontrado pelos cavaleiros, mas o que narrou foi o bastante para passar uma impressão de como tudo começou.

Quando Tércio terminou de falar, o quarto entrou em um silêncio profundo.

Kay, que tinha terminado o seu chá, possuía um olhar distante no rosto, como se estivesse desvendando os segredos de um enigma. Kacio, por outro lado, repassava a história em sua mente, tentando descobrir o que era mentira e o que não era.

E foi apenas depois de uma longa reflexão que o homem de confiança de Eliza começou a falar:

― Se sua história é legítima, porque não contou aos cavaleiros o que aconteceu?

― Eles não estavam interessados ― respondeu Tércio, com indiferença.

― O homem do qual você falou... como era mesmo? ― perguntou Kay. Seus olhos exibiam o brilho de alguém que procurava por algo.

― Não deu para ver muita coisa, mas... ― olhou para cima, buscando a imagem em suas memórias. ― Ele estava usando um manto e uma máscara rasgada preta, e... eu me lembro também que o desgraçado tinha uma tatuagem na mão direita ― disse Tércio em tom que passava longe de alguém atormentado por fantasmas.

A imagem de seus pais mortos e a figura daquele sujeito ainda permaneciam frescas em sua mente, mas não existia nada em sua postura que indicasse dor ou um desejo ominoso.

― Como era essa tatuagem? ― perguntou Kacio, exprimindo um repentino timbre agitado. Algo na informação perturbou sua mente e isso ficou claro pela mudança súbita em seu olhar, que passou de imponência para apreensão.

Assim como Kay, ele tinha começado a entender algo.

― Era uma tatuagem de uma cobra preta, que começava no pulso e depois se entrelaçava nos dedos, feito uma corrente... ― respondeu Tércio sem ter que se esforçar para lembrar.

He! He! He! As coisas serão muito interessantes daqui para frente. ― Kay não conseguiu se controlar. No momento em que suas suspeitas foram confirmadas, seu sorriso normalmente amigável e duvidoso, transformou-se em algo sórdido e contorcido. Não parecia em nada com o sorriso de um homem decente e muito menos carregava traços de humanidade. Existia algo de profano revelado pelas marcas hediondas em seu rosto, uma evidência abominável de uma coisa perigosa.

― Você sabe quem é aquele homem? ― perguntou Tércio, percebendo o comportamento estranho do mordomo.

― Lamento, mas não ― disse Kay, que continuava marcado por um sorriso distorcido. ― Pois bem, se me dão licença, preciso preparar mais chá. ― Ele se levantou e começou a deixar o quarto.

Mas Tércio não o deixaria ir assim, não quando estava claro que o maldito sabia alguma coisa sobre o assassino de seus pais.

Num ato de pura pressa, pulou sobre as camas que estavam entre ele e a porta do quarto, ultrapassando os obstáculos para cortar caminho, e disparou em direção ao mordomo.

― Espere! ― grasnou, tentando alcançá-lo.

Mas o mordomo, sem se importar com o pedido, deixou o quarto, mas não antes de exibir um sorriso provocativo para seu perseguidor.

Tércio correu em direção à porta...

― Desista garoto. Quando aquele lunático fica assim, é impossível ter qualquer diálogo ― informou Kacio. Seu tom de voz não mais soava ríspido.

― Mas ele sabe quem foi que matou minha família! ― bufou, enraivecido.

Tércio estava decidido a arrancar de Kay tudo o que sabia, mesmo que para isso precisasse usar de força bruta.

― Não... ― suspirou. ― Ele não sabe! ― garantiu o cavaleiro. Não havia sequer um traço de dúvida em sua voz. Embora não tivesse grandes considerações por ele, tinha certeza de que o mordomo não sabia quem era o homem responsável pelo infortúnio na vida do garoto.

Ahn? Do que você está falando, maldito? Você também viu como ele reagiu quando falei da tatuagem! ― proferiu Tércio, exaltado, apontando um dedo para a porta fechada.

― Aquela tatuagem é a marca de uma... organização. O homem que matou sua família pode ser qualquer um dos membros desse grupo. ― Kacio possuía uma expressão solene no rosto que por pouco não era confundida com receio.

― Organização? Qual organização? ― perguntou Tércio de imediato.

― Descubra você mesmo. Por hora, deixarei as coisas como estão. ― Desistindo de qualquer tentativa, o cavaleiro abaixou a guarda e se preparou para se afastar... ― Mas só para deixar claro, eu ainda não confio em você, até porque, pelo o que eu sei, você pode muito bem ter inventado toda essa história.

Dizendo isso, ele colocou a espada na cintura e rumou em direção à porta do quarto. Mas quando chegou a saída, fez uma pausa momentânea, suspirou fundo e falou:

― Garoto, se o que diz for verdade, então eu recomendo que esqueça a vingança. Você só conseguirá se matar ― alertou através de um tom profundo. Sua voz, aparentemente controlada, escondia um temor conhecido.

― Eu não estou interessado em vingança. Já desisti disso há muito tempo, mas algumas dívidas precisam ser cobradas. ― Tércio possuía um olhar resoluto, que pouco poderia ser relacionado a uma raiva profunda. O semblante em seu rosto era mais próximo do esperado ao de alguém disposto a cumprir um objetivo.

― Bom. Talvez assim, você sobreviva um pouco mais. ― Terminando de falar o que precisava, Kacio saiu do quarto.

Tércio sentia o seu corpo tremer. Ele queria ir atrás de Kay, mas aquele mordomo não parecia ser o tipo de pessoa que se abriria. E quanto ao cavaleiro, se tentasse pressioná-lo, poderia acabar começando outra briga e isso era algo a ser evitado, pelo menos, por enquanto.

Percebendo que não tinha muita escolha, o ex-prisioneiro decidiu que, por hora, o melhor seria se acalmar ― não que isso fosse possível no momento. Ele ainda desejava ir atrás do mordomo,  arrumar uma briga com Kacio também não parecia tão ruim assim. Mas apesar da impulsividade que sentia às vezes, sabia que o melhor e o mais seguro para ele era se acalmar e deixar a questão para ser abordada numa ocasião mais oportuna.

Ele estava muito agitado e andava de um lado ao outro do quarto. Chegou a encostar na maçaneta da porta algumas vezes, preparando-se para sair, mas desistiu. Foi somente depois de resmungar muito para si mesmo, bufar e chutar as coisas que enfim tomou a decisão de voltar para cama e refletir.

Depois de quatro anos, longos e tortuosos anos, pela primeira vez Tércio conseguiu uma pista do responsável por matar sua família e isso era algo que não podia ignorar.

Para ser honesto, já fazia bastante tempo que tinha desistido de buscar vingança. Embora fosse apenas um jovem muitas vezes impulsivo, ele estava bem esclarecido quanto a essa questão. Mas é claro, se um dia encontrasse a pessoa responsável por assassinar seus entes queridos o massacraria.

Porém, descobrir que tinha sido uma organização responsável por tirar as pessoas que amava e não um único maldito miserável, deixava tudo mais complicado.

Não é necessário dizer o óbvio, mas ainda assim direi: ele não tinha nenhum medo de enfrentar uma organização. Mas o verdadeiro problema estava no motivo dessas pessoas terem feito isso.

Por que um grupo misterioso se daria ao trabalho de ir atrás de sua família?

Seu pai e sua mãe eram simples camponeses. Não havia nada de espetacular em suas vidas. Ambos nasceram no campo e morreram por lá. e pelo que se recordava, os dois eram pessoas direitas. Sua mãe suava frio só de imaginar fazer algo errado. Então porque uma organização, conhecida por poucos e temida, foi atrás deles?

Seria por pura diversão? Um de seus familiares viu algo que não devia? Ou quem sabe seu pai encontrou um tesouro secreto durante uma de suas rondas pelos campos de milho?

Seja qual for o caso, isso era algo que Tércio teria de investigar a fundo. No entanto, a despeito da agitação e a mente borbulhante, o cansaço da longa viagem e de dias presos numa prisão subterrânea se fazia mais forte.

Enquanto ainda estava planejando suas ações futuras, seus olhos aos poucos foram ficando pesados, apesar de suas tentativas de lutar contra a exaustão acumulada.

Ele pensou que havia dormido o suficiente na última noite, mas ao que parece, ainda tinha muita energia para recuperar. E mesmo com os pensamentos inquietos e o coração acelerado, o ex-prisioneiro que ficava confortável em dormir numa latrina, acabou sendo rendido pelo colchão nada confortável e o travesseiro com cheiro de coisa velha.

Tércio precisaria deixar os pensamentos e planos para outro dia.

 


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