O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 9: AURA

 

Os dias tornaram a se passar. A chuva chegou para adormecer os sentidos de Mil, alagando suas vestes e seus membros se tornando mais rijos.  
 
Era o comum. Cildin e ele não trocaram muitas palavras, parando sempre ao entardecer e tornando a seguir seu caminho no raiar do dia. 
 
O garoto não sentiu vontade de conversar com o duque, que também não apresentou tal motivação; portanto estava tudo bem. Milan até se sentia bem com o silêncio, tendo de evitar a conversa não por si só.  
 
Era geralmente muito conversador, e questionava bastante quando as dúvidas surgiam. Mas isso foi se apagando desde que pisara ali. Foi se perdendo, e ele foi se distanciando cada vez mais daquele eu de um breve outrora.  
 
Perdido em pensamentos, Cildin ia muito a frente do rapaz, analisando o terreno e percebendo as mudanças tênues na área.  
 
– Estamos próximos do nosso destino. – Declarou Cildin, pressuroso.  
 
Milan ergueu as sobrancelhas. A chuva já tinha diminuído, tornando-se apenas um chuvisco pinga-pinga-pingando na frente de seus olhos.  
 
– Como sabe?  
 
– Há quantidades de musgo aqui e ali – disse, como se isso bastasse.  
 
Silêncio. Cildin continuou seguindo em frente, o trote lento de seu cavalo indo e voltando. Mil teve certeza de que o duque revirou os olhos.  
 
– Nosso destino está próximo, apenas se prepare.  
 
E mais duas horas se foram. O silêncio imperando novamente, apenas o uivo do vento gélido no rosto de Mil ressonava em seus ouvidos. Seu cavalo relinchou, e Milan deduziu que era de cansaço.  
 
– Meu cavalo está cansado. – Declarou.  
 
– Estamos quase chegando. Ele terá tempo o suficiente para descansar.  
 
– Duas horinhas não farão mal a ninguém...  
 
– Mas atrasará o percurso, uma forte tempestade vem aí.  
 
– Mais forte que essa? – Indagou Milan, se perguntando se era provável que o mundo caísse em cima deles.  
 
– Mais forte que essa.  
 
E esse foi último diálogo deles nas próximas duas horas. Milan já estava irritado, tanto pelo cansaço de passar o dia inteiro sobre um cavalo que, aparentemente estava tão irritado quanto ele; quanto pelo trote lento ocasionado pelo lamaçal debaixo de si.  
 
Sua virilha gritava de dor, suas costas doíam e ardiam. Seus olhos não aguentavam mais tanta água. Seus pés, coitados, deveriam estar todo enrugados, devido a grande chance de estarem completamente alagados.  
 
Não. Ele podia sentir a água em seus dedos, pregando o tecido da meia na sola dos pés. E isso lhe causava mais frio e, consequentemente, mais irritação.  
 
Só que não poderia expor isso. Não exporia. Seria como trair a si mesmo. Sabia que isso era só o início de um árduo e longo treinamento. Devia era agradecer por um duque élfico vir treina-lo pessoalmente. Tudo isso daria frutos no futuro. Não dependeria de ninguém, somente de si mesmo. E isso iria bastar. Oh, como iria.  
 
Cildin finalmente parou, se ajeitando em seu cavalo. Milan estava surpreso nesses últimos dias como o homem conseguia manter uma postura tão ereta, mesmo sobre um cavalo. Ele não vacilou sequer uma vez. Nem um respirar fundo, nem uma espreguiçada. Nada. Desta vez não fora diferente.  
 
Ele retirou o capuz negro levemente, entreabrindo um dos olhos.  
 
– Chegamos.  
 
Como Milan vinha mais atrás, não entendia como eles poderiam ter chegado. Só via um imenso toró d’agua cair numa clareira de árvores densas e grossas.  
 
Musgo se formava em tufos sobre pedras e sob flores bonitas entre vermelho e branco.  
 
– É aqui? 
 
Um sorriso se formou no rosto do duque.  
 
– Por enquanto.  
 
Milan ergueu uma sobrancelha.  
 
– Como assim por enquanto? 
 
– Por ora, vamos apenas acampar, amanhã fará um belo sol. 
 
E Milan se perguntou como raios ele poderia saber disso.  
 
Milan colocou as roupas ensopadas ao lado da fogueira feita por Cildin, e se vestiu com roupas leves. Deduziu que as usaria no longo treinamento que viria. 
 
Não precisaria de muito para dizer que no dia seguinte fez sol. Mas foi um sol de verão, com céu azul sem nuvem alguma. Besouros estralando e cigarras cantando. O cheiro das flores inundando o ar de forma tão contundente, e o simples cheiro de terra molhada se indo.  
 
Milan podia jurar que escutava até mesmo a terra bebendo da água que se formou em poças.  
 
Após um rápido desjejum, Mil se reuniu ao duque, que aguardava pacientemente encostado numa árvore, sob a sombra de sua copa.  
 
– E então, mestre, por que aqui?  
 
Cildin saiu debaixo da sombra, cruzando os braços atrás das costas. Ergueu o dedo indicador, o rosto um tanto severo.  
 
– Primeiro: mude esse seu tom. A escolha de vir até aqui foi sua. Era isso ou ter sua cabeça arrancada.  
 
O garoto engoliu seco. Cildin estava totalmente diferente do homem que ofereceu apoio dias atrás. Estava irritadiço. Provavelmente o homem deveria estar num lugar que não aquele, e Mil notou que de fato a rainha zelava bastante por ele.  
 
– Segundo: esta é apenas uma introdução.  
 
– Que quer dizer? 
 
– Não me interrompa! – Ameaçou Cildin, abrindo os olhos. – A situação é que não podemos iniciar seu verdadeiro treinamento por um simples fato: você não tem controle sobre sua aura. Não deve ter notado, mas desde que saímos do território orc, criaturas e criaturas se amontoaram ao redor de nós, sendo atraídas por sua aura. Deve estar se perguntando a razão de não terem atacado, e isso é mais simples ainda: minha aura é maior que a sua e, consequentemente, mais comedida. Que quero dizer com isso? Bestas de núcleo sentem o cheiro de um despertado, e sabem diferenciar quando este é jovem e quando não. Apesar de seu orka ser imenso e apresentar grande força aurea, ele é expelido aleatoriamente.  
 
“Como você não tem controle sobre seu orka e sobra a aura, é como se estivesse o tempo inteiro ligado, vazando e atraindo bestas que sabem a diferença. Neste momento, você expele tanta aura que nem percebe que esse é o motivo de tanta irritabilidade.” 
 

Milan franziu a testa mentalmente. Ele sabia que Milan estava irritado. Se bem que ele não fez tanto esforço para esconder isso.  
 
– A liberação de aura constante causa irritabilidade, cansaço e até fadiga. Você manteve sua aura ligada, isto é, vazando, desde o momento em que lutou contra os orcs. Controlar sua aura será crucial para que o dê o próximo passo. Pode perguntar agora.  
 
– Pra que serve o controle de aura?  
 

– Isto é óbvio: evitar que criaturas sejam atraídas. Você fica parecendo um amador, é como se tivesse desenhado um alvo em suas costas, chamando toda e qualquer besta para o seu encalço. E creio que não preciso explicar os prós de controlar seu orka e aura.  
 
Mil assentiu, mais para si do que para o duque.  
 
– Tenho uma pergunta.  
 
– Faça. 
 
– Como consegui matar aqueles orcs? Quero dizer, não tenho nenhuma experiência com luta. Não sei absolutamente nada sobre isso. 
 
– Isso é mais simples ainda: você é um recém despertado. Mas pode ser que isso tenha mais a ver com os orcs do que com você.  
 
Milan balançou a cabeça.  
 
– Como assim?  
 
– Não cabe a mim falar sobre os orcs neste momento, mas darei uma breve explicação. Os orcs tem três filiações, divididos por suas cores. Deve ter notado que Droner possuía um tom cinzento, enquanto que seus subordinados eram esverdeados. Essa diferença está presente não somente por suas cores, mas por sua força também. Naquele momento você estava tão forte, que superou os orcs verdes, ficando levemente mais forte que os cinzentos.  
 
Milan assentiu, o rosto num ricto singelo. 
 
– Diga-me, senhor... é possível que eu torne a possuir tremendo poder?  
 
Cildin sorriu. Fez círculos com o dedo indicador.  
 
– É por isso que estamos aqui. Controlar sua aura o tornará cinco vezes mais forte do que naquele momento, e sabe por quê? 
 
O menino assentiu, apertando tanto o punho que os nós ficaram brancos.  
 
– Porque terei controle sobre mim mesmo e sobre minha aura.  
 
Cildin sorriu, os dentes tão brancos quanto a própria pele, ou os próprios cílios ou... o próprio cabelo.  
 
– Perfeitamente correto. Então vamos começar. – O elfo diminui o espaço e ergueu três dedos. – Existem três passos para controlar seu orka, Milan. Sentir, concentrar e expelir. Neste primeiro instante, você não tem nem noção da imensa aura que detém, então precisa senti-la, ter controle de seus próprios sentidos. Mas não usará todos os sentidos de uma vez. Irá precisar apenas de quatro deles: audição, olfato e tato.  
 
Milan ergueu uma sobrancelha.  
 
– E o quarto?  
 
Cildin franziu a testa. Milan se retesou.  
 
– Tenha calma, não seja pressuroso. O quarto sentido, como bem ia dizendo antes de ser interrompido, é a alma. Precisa sentir com a alma, Milan, apenas assim perceberá a energia do mundo ao redor, e seu próprio orka. Só então poderá sentir sua aura, daí terminaremos o primeiro passo.   
 
– Mas a alma... como funciona isso?  
 
– Não seja aperreado.  
 
Cildin apertou em seu ombro e o empurrou no chão.  
 
– Feche seus olhos e sinta a aura.  
 
– Mas como farei isso sem- AI! 
 
Cildin deu um soco na cabeça dele, franzindo a testa furiosamente. 
 
– Eu já falei para não ser aperreado. Aprenda uma coisa, meu aluno: nada é tão útil ao homem como a resolução de não ter pressa. Apenas feche seus olhos, irá saber quando senti-la.  
 
E Milan fez o que o homem pediu. Antes que pudesse pensar em dizer que não havia nada, sentiu uma brisa no seu rosto, leve e fria. Achou que poderia ser o anuncia de chuva, mas ele sentia também o sol quente em sua pele. Então como? 
 
Abriu levemente os olhos e viu uma força invisível irradiar de Cildin, que mantinha os olhos bem abertos. Milan demorou vários segundos para perceber que não eram ventos, era a aura dele. Suave e ao mesmo tempo forte. Quente e ao mesmo tempo fria. Então a pressão aumentou tanto que Milan sequer conseguia pôr seus pensamentos em ordem.  
 
Ele de repente se tocou que nunca sentiu tanto poder com apenas a força do querer. Não sentiu poder com quase nada, na verdade. Vasculhou em sua mente uma memória, mas por mais que tentasse, não conseguia lembrar... não, ele se lembrava. Cildin derrotou Droner sem sequer utilizar a aura... o quão forte era esse homem?  
 
Finalmente a pressão anuviou, e Cildin tornou a fechar seus olhos.  
 
Ele provavelmente os mantém fechados para suprimir a própria aura... esse tipo de poder... pensou Milan. 
 
– Agora que sentiu um terço de minha aura, deverá senti-la novamente em quantidade reduzida.  
 
Um terço? Berrou ele mentalmente.  
 
– Irei suprimi-la ao máximo, e você deverá guardar na mente a sensação que teve ao tocar minha aura. Seguirá o rastro dela novamente. Mas não é como se ela estivesse perdida, você precisa somente aprender a senti-la por si só, e então poderá sentir a sua própria. Comece.  
 
Mil fechou os olhos, se concentrando naquela sensação de instantes atrás. Mas era difícil; felizmente, manter-se concentrado era seu foco.  
 
Então Milan limpou sua mente pela primeira vez em muito tempo. Afastou todos seus temores e medos; toda a ansiedade crescente e preocupação que com certeza fizeram-no parecer anos mais velho.  
 
Concentre-se naquela sensação. Sinta o orka de seu mestre. Caloroso e frio. Suave e forte. Opressor e gentil.  
 
Mas horas se passaram, Milan estava tão concentrado que parecia estar dormindo. Apesar disso, não teve resultado nenhum. Pelo menos nenhum que fosse considerável. Isto é, com poucas horas ele conseguiu sentir a aura ambiente.  
 
A clareza que isso trouxe a ele foi reveladora. Não sentia a aura de Cildin, mas conseguia sentir a aura ambiente. Percebeu que tudo era feito dessa mesma energia... o orka.  
 
Seus sentidos se anuviaram. Notou o vento farfalhar nas copas, pequenos animais passeando. Notou a presença de um rio tão distante, que podia apenas sentir em sua pele o quão suas águas eram gélidas e como ele seguia seu rumo suavemente. Percebeu até mesmo uma grande criatura se abaixando e bebericando do rio.  
 
Neste momento percebeu, por um breve instante, aquele fulgor que sentiu quando a aura de Cildin o tocou. Mas foi como uma breve fagulha, um fino fio do que fora há algumas horas.  
 
Entrementes, Cildin arregalou apenas um dos olhos, ficando mais pálido do que já era. Suor frio escorreu pelo seu rosto aquilino.  
 
Este garoto... ele... ele está mesmo fazendo isso? Pensou alarmado.



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