Volume 1
Capítulo 10: MAR DE CONSCIÊNCIA
Apesar de espantado, Cildin sorriu de modo doentio.
Ele não apenas está sentindo minha aura, como também a envolvendo e lentamente transformando-a sua, e sequer tem noção disso... que menino genioso.
Entrementes, Milan finalmente conseguia entender a primeira lição de seu mestre, sentir. Como ele não tinha percebido isso antes? Estava escancarado, uma incontável e imensa energia ao redor do mundo. Ele podia sentir, o calor do mundo, muito mais do que aquele calor conhecido do sol. Era algo diferente, novo. Isso era o orka ambiente, a energia do mundo.
Milan havia lido sobre isso uma vez, é claro. Em algumas culturas, era conhecido como mana ou manjar, a substância que rodeia o mundo. Segundo alguns estudiosos, era grande componente na criação da alma de um indivíduo, mas muitos acreditavam que este era o orka.
E sua cabeça embaralhava ao mesmo tempo que não. Pois sentia os fiapos daquela energia que Cildin mostrara a algumas horas. Mas isso era aura ou orka? E qual era a diferença entre ambos? Sem abrir os olhos, perguntou ao seu mestre. Podia jurar que o elfo sorriu.
– O orka é a energia espiritual individual de cada um, que nos dá vida, nos dá ser. A aura é a representação da energia espiritual em modo físico, uma parte daquilo que podemos produzir com o poder da consciência, muito mais que da alma.
Milan assentiu, concentrado. Isso foi um clareador de mentes. Mas como ele iria conseguir controlar?
Cildin sorriu.
– Você deve estar pensando: como irei controlar isso? Apenas relaxe, chegaremos lá. Enquanto isso, você deve focar em sentir minha aura para, enfim, sentir a sua.
Mas Milan já estava totalmente envolto nos próprios pensamentos. De repente, um portão enorme de portas de ferro surgiu, pairando sobre um imenso mar de líquido vermelho. Estava aberto, enquanto que mais e mais o líquido jorrava para o mar, sem nunca encher completamente.
Ele mesmo pairava, completamente nu, diante do portão. O mar se estendia até onde seus olhos podiam ver, ondulando e irretocável.
Mil notou uma sensação adversa se misturar no seu âmago. Era quente enquanto que frio, como olhos espreitando no escuro. Feito adagas pontilhando em sua carne. Seu cérebro ardeu e, fora de seu pensamento, seu rosto se tornou uma carranca nervosa e irritada.
Suor frio escorreu por sua testa.
– Não se preocupe – disse Cildin, alheio ao que acontecia com o rapaz. – Apesar de já estar distinguindo orka de aura, deve levar dias para notar sua pró-
– Mestre! – Milan berrou, pressuroso. – Sinto estar perdendo o controle. Por que estou vendo um imenso mar vermelho?
Cildin arregalou os olhos. Aquilo... ao iniciar o processo de Sentir, deveria levar dias, ou mesmo semanas para começar a distinguir as energias do mundo. Milan fez isso em poucas horas, o que foi surpreendente por si só.
Quando o conhecimento acerca da aura era ganho, impregnado na memória do usuário, era mais árduo ainda para sentir a própria aura, que era a materialização física e mental do orka, a energia espiritual.
Acontece que o que Milan alegou, era nada mais nada menos que a representação mental do orka. Cildin respirou fundo, tentando manter o controle na sua voz.
– Milan, quero que se acalme. Você consegue ver o fim desse mar vermelho?
O menino negou.
– Não, senhor. – Cildin engoliu seco. – Por que? Eu deveria?
– Sim e não. Esse mar é sua energia espiritual, Mil, e é chamado Mar da Consciência. Não ver o fim dele apenas significa que tem uma grande energia espiritual, e isso você já sabia. Mas Mil, me diga: que mais você vê?
Milan se arrepiou. Os olhos reviraram sob as pálpebras, e um enjoo preencheu seu estômago. Estava sentindo uma grande vontade de vomitar. Mas buscou se manter calmo.
– Vejo um portão imenso, de 7 côvados de altura e 5 de comprimento.
Cildin quase arregalou os olhos. Tão grande?
– Milan, as portas estão abertas?
– Sim! E jorra bastante água dentro do mar vermelho..., mas é estranho, a água é límpida e cristalina, mas muda a cor ao encostar no mar.
– São as impurezas, Mil. Essa porta é como um parâmetro de seu orka. Ao fechar, vai conseguir controlar o fluxo de energia que está sugando para si, bem como evitar o uso incontido de aura sendo expelida. Milan, preste atenção: você não deveria ter acesso ao seu Mar de Consciência nem tão cedo, mas teremos de pular algumas etapas. Tente fechar as portas, Mil, assim conseguirá controlar seu orka.
– Mas se eu fechar, isso não vai me impedir de usar a aura?
– Não. Você precisa dar um descanso para sua mente, tempo para que sua energia seja purificada. Esse mar é a imensa quantidade de energia que você pode acessar numa batalha, e dificilmente ele diminui, pois áureos conseguem fazer grandes coisas com o mínimo dessa energia. Mil! Usar sua energia ao ponto de deixar quase seco, é sentenciar sua própria vida. Você me entende, Milan? Se usar tanto dessa energia, irá morrer! Agora, quero que feche as portas ou irá entrar num influxo indesejado.
– Que quer dizer com influxo indesejado?
– Se exceder sua mente com uma energia pura sem ter purificado a energia que já tem dentro do Mar de Consciência, irá colapsar.
– Colapsar?
– Milan, só faça.
Milan tornou a fechar os olhos, lutando para se movimentar na sua própria mente. Mas era difícil, pois ele era como se ali não houvesse gravidade nenhuma, dificultando seu movimentar. Entrementes, a água começou a se agitar, e em poucos instantes, imensas ondas começaram a se formar.
Lutando para se aproximar das portas feitas de ferro, Mil observou enquanto o líquido vermelho respingava em seu braço, criando uma ferida em carne viva. Ele berrou de dor, e as ondas aumentaram.
Enquanto isso, fora de sua mente, teve a mesma reação ao ser tocado pela água vermelha. Mas não havia nenhuma ferida em seu braço. Cildin abriu os olhos rapidamente, se aproximando do menino e evitando tocá-lo.
– Mil, quero que me escute. Não seja tocado por essa água vermelha. Está me ouvindo, Mil? Mil!
As palavras chegaram como ecos distantes, enquanto Milan era banhado pelas imensas ondas vermelhas, e mais e mais feridas se formavam em seu corpo. Era uma dor excruciante, como se estivesse sendo queimado vivo e regenerado ao mesmo tempo. Mas ele persistiu, indo contra as ondas que se precipitavam sobre ele, chegando até os portões e infligindo tremenda força.
Mas as portas eram pesadas, e ser constantemente banhado, lutando contra a dor que se acrescia por todo o seu corpo. Estava em carne viva, as mãos se fechando e enrijecendo, devido a alta temperatura que queimava sua carne.
Milan gritou, mas se forçou mais ainda, impondo um alto risco à própria sanidade. Tinha certeza de que haveriam consequências, mas resolveria isso depois. No momento, tinha de focar em fechar aquela porta.
Com um urro ensurdecedor que irradiou de sua alma, Milan forçou-se a fechar a porta com um último lapso de suas forças. Ao fechar um lado, ele logo se lançou para o seguinte, conseguindo, após muita peleja, empurrar contra o líquido límpido que jorrava.
As ondas cessaram lentamente, enquanto Milan respirava ofegante, ignorando a ardência no corpo. Ele voltou-se para fora de sua mente, e estava fraco. Seus olhos reviraram sob as pálpebras e ele caiu para o lado, pálido e suando frio.
– Milan! – Essa foi a última coisa que ele ouviu antes de sua mente se tornar nublada e nebulosa.
***
Milan empertigou-se, varrendo seu olhar para um vasto campo de batalha repleto de corpos despargindo-se e outros se amontoando cada vez mais.
Ele ergueu o braço, sem a verdadeira intenção de fazê-lo. Foi um movimento involuntário, que ele não teve controle. Logo percebeu que nada que fizesse era de fato por seu querer.
Enxergava através dos olhos de outra pessoa. Este alguém ergueu a mão direita e vários guerreiros saíram debaixo da terra, feito mortos-vivos. E o eram de fato. Milhões e milhões, saindo do chão e trazendo consigo o cheiro fétido da morte, impregnando o ar com mais do que merda, mijo e sangue.
Inalou o ar e sentiu o medo de seus oponentes. Era apenas ele contra um inimigo com cinco vezes menos guerreiros do que ele.
Então deu um salto no ar, diminuindo o longo espaço que havia entre ele e o exército inimigo. Levou a outra mão às costas, retirando uma longa espada de lâmina negra, concava e angulosa.
Pousou no meio de seus inimigos varrendo a espada e matando dezenas e dezenas de uma só vez. Da terra, estacas feitas de madeira empalavam outros milhares de guerreiros, reagindo a pensamentos instintivos que inundavam a mente de Mil. Mas não era ele.
Os gritos incontáveis de gente sendo empalada e destruída pela força da espada de Milan era como regozijo para seus ouvidos. Ele lutou contra essa sensação, mas o desejo e o prazer eram simplesmente grandes demais.
Sua aura saltou feito uma onda de ar quente, queimando os oponentes assim que entrava em contato com eles. Milan, que não tinha controle sobre seu corpo, pois como notou antes, via tudo como telespectador, guardou novamente a espada e saltou diante de um enorme homem de barba negra e pele bronzeada.
Usava uma imensa armadura laqueada e uma cota de malha brilhante, e estava sobre um urso marrom. Milan avançou contra ele, ignorando os soldados que se precipitavam para impedi-lo de chegar até o sujeito. Todos esses foram esfacelados ao toque de Milan.
Quando a comitiva foi inteiramente execrada, ele fechou o punho e uma areia negra envolveu-o. Ao se aproximar do grande o homem sobre o urso, desceu o punho sobre o crânio do animal, engolindo toda a cabeça dele. O corpo pendeu, e o homem perdeu o equilíbrio.
Diante disto, Milan enfiou a mão no peito do sujeito, como se não houvesse camadas e camadas de armadura entre sua mão e a pele dele, e envolveu o coração dele entre seus dedos.
Um sorriso surgiu no rosto de Milan, enquanto que lágrimas brotaram no rosto do outro.
– Você nunca... irá... interromper o fluxo... o futuro sempre... vai superar o passado... – disse o grande homem, cuspindo sangue e perdendo cor.
Milan sorriu ainda mais quando retirou o coração do sujeito.
– Contanto que eu possa mata-los com minhas próprias mãos, o futuro nada mais é do que uma distante representação do que se tornará em passado.
A mente de Milan tornou a ficar nebulosa e ele caiu num intenso sono. Não sonhou com mais nada depois disso.