O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 11: UM SONHO E UMA VOZ

 

Milan ergueu o rosto diante do sol escaldante. A quentura queimava sua pele, e ele podia senti-la enrugar-se num nível extremamente rápido.

Acima dele apenas o imenso e azul céu, sem qualquer nuvem a vista. Mas um pio trouxe sua atenção de volta.

Ergueu o olhar e encarou novamente quando a figura alada piou, tornando-se visível e trazendo consigo uma nuvem distante, que deu à Mil um frescor novo.

Apesar da sombra se esgueirando sobre a criatura de asas, Milan ainda não soube distinguir de que espécie de ave se tratava. E ela se aproximou, se aproximou, e se aproximou. E piou.

Milan abriu os olhos e fitou o teto. O breu percorria os sulcos e frestas por entre as estalactites cavernosas que o encaravam de volta.

Tentou olhar para um lado e depois para o outro quando notou uma chama viva ondulante se precipitando pelo rabo de olho, mas instantaneamente a dor excruciante pontuou por sua cabeça, e a tontura somada irrompeu do canto mais distante de seu cérebro, ambos vindos em ondas de pontadas, feito espeto perfurando carne.

Exasperou-se ao notar que todo o corpo não se movia, ignorando as mensagens que tentava enviar para se levantar. Uma taquicardia iniciou, irradiando firme, e a dor infinda se firmando potente e nunca passageira.

– Acalme-se! – Uma voz poderosa, rouca e suave sondou por seus ouvidos, vindos em ecos distantes e próximos. Apesar do claro empecilho, Mil sabia a quem pertencia aquela voz.

Ainda, notou que imediatamente passou a respirar calmamente, o desespero se indo. Percebeu que a voz fora carregada de um comando que, por mais que tentasse, não conseguiria recusar. Seria isso algum tipo de aura, ou quem sabe primor?!

Ouviu os passos de seu mestre se aproximando, e então parou.

– Descanse.

A voz novamente foi imponente e poderosa. Mil teve dificuldades de se opor a ela, mas logo fechou os olhos e adormeceu.

Quando abriu os olhos, estava novamente naquele espaço aberto, sereno e o sol despontando distante e menos poderoso.

A luz tocou sua pele. Um vento chicoteou seus cabelos castanhos, mas desta vez não houve nenhum piar.

Ele sentou-se sobre a relva e, após um longo tempo, deitou-se. O vento chicoteava seus cabelos e o toque do sol era aconchegante.

Era como se realmente estivesse ali e, de fato acreditou nisso, pois os segundos se tornaram minutos, e os minutos se tornaram horas.

Mas estava tão bom, que ele relaxou e deixou sua mente divagar, sem pensar em nada de ruim que tivesse lhe acontecido. Sem orcs, sem Droner. Sem elfos, sem Aedrin. Sem treinamento e sem Cildin.

Apenas ele e um relaxamento antidepressivo. Contra ansiedade. Antiestresse.

Só que era bom demais pra ser verdade. Ele soube disso quando ouviu o piar novamente, e um arrepio lhe acometeu.

Ergueu-se pressuroso, e diante dele estava uma ave imensa. Tinha penas que se alternavam entre roxo, vermelho e preto. Nelas, haviam vários pontos negros. Tinha um bico longo e cinzento.

Sua cauda era enorme e arrebitada, cheia de penas do tamanho de um braço. Seus olhos eram laranjas, como se um fogo vivo irradiasse das entranhas oculares. Devia ter certa de 2,19 côvados de altura, e 4,25 côvados de comprimento.

Na cabeça havia uma pelugem arrebitada tal e qual a cauda, mas era mais clara. Suas patas eram enormes, com garras do tamanho de braços de um humano médio. Fincava-se no chão criando enormes buracos. Milan se arrepiou diante aquilo, imaginando as garras enfiadas no seu peito. Seria estraçalhado.

A criatura abriu o bico e estalou, como se duas conchas se chocassem, e o menino despertou, piscando firme e tentando se agarrar ao sonho esquisito que teve.

Sentiu gotas de lágrimas brotarem no canto de seus olhos, que lutaram para se acostumar ao breu conhecido do valhacouto.

Fitou o teto, e fitou os lados. Desta vez, não houve dor ou tontura, apesar de sentir uma leve falta de ar irradiando por seus pulmões.

Pondo o peso nos cotovelos, ergueu-se sobre o chão duro e frio. A dor de cabeça voltou e a tontura o levou de volta à cama improvisada.

Tsc!

Ficou alguns minutos enquanto estrelas giravam sobre seus olhos e a respiração lutava para se estabilizar.

– Vá com calma. – Disse Cildin, a voz distante num sussurro.

Milan não notou a força na voz como da outra vez. Não sentiu qualquer obrigação de obedecer ao homem, mas mesmo assim obedeceu, sabendo que era isso ou apagar de novo.

Após várias e várias horas, ele tentou novamente se erguer, resistindo à tontura que veio em menor intensidade.

Cildin estava encostado na parede na outra extremidade, encarando o fogo com olhos entreabertos. E ficou assim por mais tempo do que Mil pudesse contar.

Em determinado momento o menino encarou o fogo também, tentando captar aquilo que tirava a atenção de seu mestre.

A fogueira havia sido feita no centro do lugar, pronta para irradiar o calor para todas as extremidades e áreas mais úmidas. O fogo ondulava para cima, lento e cauteloso.

Vagarosamente, Mil começou a notar formas sobre o fogo, criaturas quadrúpedes e outros bípedes, como numa encenação teatral. Então o fogo tomou a forma de homens e mulheres, dançando em torno de um fogo criado ali.

Logo mulheres se juntaram e animais sobre quatro patas, menores que os quadrúpedes iniciais. E eles dançavam, saltitando e pulando, uma fraca e antiga risada ecoando pela caverna obscura.

Uma fraca e pequena canção começou a soar, e Mil sentiu-se arrebatado aos dias em que aquela canção fora feita. Ficou entusiasmado, mesmo captando somente pequena parcela das letras, escondidas sobre a melodia afinada e sensível.

Reprimiu a vontade de chorar, enquanto observava a alegria nas pequenas pessoinhas dentro daquele fogo. Mas o tom da melodia mudou, indo para um melancólico suave e, finalmente, a um tom inarmônico, totalmente oposto ao inicial.

Era poderoso e inebriante, causando a vontade incontida e despertando o ódio dormente no peito de Mil. O fogo se ergueu, assutando-o. Com isso, homens montando criaturas altas de seis patas e chifres pontudos cheios de ramos surgiu por entre as pessoas felizes e saltitantes.

As mulheres de repente fugiram, pegando as crianças em seus colos enquanto que os homens ficaram para trás, tentando impedir o avanço da cavalaria recém chegada. A cor do fogo mudou, indo para um verde sombrio e tonificado. Ao mesmo tempo, os homens não tiveram nem chance contra aqueles montados nos animais de seis patas, sendo instantaneamente mortos.

As risadas e a cantoria foram trocadas por gritos de dor e misericórdia, enquanto aquelas mulheres com suas crianças fugiam, sendo protegidas por versões mais jovens de seus homens. A geração que deveria tomar o lugar daqueles mais antigos. Os brotos que ainda não haviam sido regados adequadamente.

Mil sentiu o ódio daqueles jovens. Sentiu o desespero junto à marcha infinita. Observou estes jovens ficando mais maduros, e nunca se assentando num só lugar. Vez ou outra a cena ondulava para os homens nos animais, numa caça desesperada e nunca produtiva.

O fogo finalmente diminuiu, e as pessoinhas sumiram. Milan ficou encarando o fogo, como se tivesse vivenciado aquilo.

– O conto de mil noites – relatou Cildin, fechando os olhos. – Uma história passada de geração a geração pelos filhos de Elendure.

Mil soube, no momento em que observava o desenrolar da história, que se tratava de algo acontecido há eras. No entanto, a voz de seu mestre mantinha um brado congelado, como se o conto não fosse a única coisa deixada pelos antigos elfos. O ódio e o remorso poderiam remoer ainda mais suas entranhas.

Cildin se virou para o menino, sua feição se tornando mais amena.

– Como se sente?

Mil pigarreou.

– Parece que fui frito em óleo quente.

Cildin ergueu um sorriso amarelo, que não chegou aos seus olhos.

– Deve querer respostas, e as darei. Você é um gênio, Milan Sgaard, e devido a isso, quase perdeu sua vida.

O menino assentiu, baixando a cabeça. Era fato que ele aprendia as coisas o dobro do tempo mais rápido que outras. Bastava ver uma ou duas vezes que já guardava na memória, tinha uma facilidade tremenda de compreender coisas que ninguém em sua idade deveria ter. Sentiu de repente um peso no peito.

– Deveria levar meses para que você sentisse a própria aura, mas em questão de poucos dias conseguiu – prosseguiu Cildin, a entonação não mudando sequer uma vez. – E por isso, o processo de Sentir e Concentrar foi alcançado em um terço do tempo necessário. Terei de mudar o método de ensino, e é algo que nunca aconteceu.

Cildin suspirou, como se avaliasse a melhor maneira de dizer algo. Na maior parte do tempo ele não era tão empático.

– Você entrou em contato com seu orka estagnado, Mil, e isso causou... isso deveria causar morte cerebral em você. Pense na energia estagnada como um rio impuro para beber e banhar. Agora pense que dejetos, corpos e outras coisas impuras foram jogadas no rio. Amplie em mil vezes e terá a energia estagnada. Todo recém despertado passa por um processo de limpeza de aura, que substitui a energia estagnada por uma pura e limpa, para que, finalmente possa entrar em uso.

“O contato com essa energia causa danos irreversíveis à alma e ao físico interno. Uma das primeiras coisas a serem afetadas é a mente e o cérebro, pois é lá que reside toda a informação. Sem o cérebro, nada em você sobrevive, nada funciona.”

Milan encarou o chão, cheio de dúvidas estampadas em seu rosto.

– Como estou vivo?

– Essa... – pela primeira vez, Cildin pareceu sem resposta. – É uma pergunta que não consigo responder. Infundi minha aura em seu corpo, lutando para fortalecer pontos de conexão que seriam perdidos quando essa ameaça saísse da alma para a mente e, consequentemente, para o físico. Mas por mais que eu lutasse, todos seus pontos cerebrais iam se apagando pouco a pouco.

“Quando pensei que tinha morrido, suas células mortas se sobrepuseram uma sobre as outras, religando os pontos de conexão e enviando um fluxo de energia por todo o corpo.”

– Que isso significa?

– Eu não sei, Milan, mas você teve um processo de regeneração impecável. É como se...

Ele se retesou, comedido.

– Como se o que?

O duque balançou a cabeça e respirou fundo.

– Nunca vi ou ouvi falar de uma regeneração tão perfeita quanto essa, exceto uma única vez. – Ele respirou fundo outra vez.

O silêncio pairou, enquanto Milan aguardava o desfecho da história.

– Não vai me contar? – perguntou o menino finalmente, irritado com tanto mistério.

– Apenas saiba que foi um milagre que não se repetirá. Ouça bem, Milan, nunca mais entre em contato direto com a energia estagnada, a morte não dá segundas chances.

Milan conteve uma risada irônica. Para ele, poderia ser que tivesse mais segundas chances do que os outros. Talvez fosse um gato, com sete vidas. Pensou de repente sobre todas as vezes em que esteve à beira da morte, e em todas elas escapou fedendo.

– Obrigado, senhor, por... por salvar minha vida.

Cildin assentiu. No entanto, para ele estava claro que sua interferência, no fim, não impactou em nada. Ajudando ou não, Milan iria se regenerar e ter sua mente livre dos perigos da energia estagnada.

Milan ergueu o rosto.

– Como irei me livrar da energia estagnada?

– Tudo no seu tempo. Por enquanto, quero que durma.

Sentindo-se irritado, Milan foi novamente alvo daquela poderosa habilidade, e pendeu pro lado lentamente enquanto sua mente se afastava e caía num breu incontido. Dessa vez não viu a ave.



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