O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 12: PAZ, FELICIDADE E A ALMA DE UM DISTANTE SONHO ÉLFICO

 

Ao despertar, uma enxaqueca pra lá de chata transbordou.

Rapidamente se levantou e encarou a borda da caverna, onde o sol iluminava com seus raios recém despertados.

A fogueira no centro havia sido apagada, e Cildin não estava à vista.

Não precisaria de muito para descobrir que Mil estava de mau humor. Considerou que fosse pelo fato de ter bastante energia estagnada dentro de si. Pouco provável. Poderia ser pelo gênio de seu mestre. Um pouco provável. Ou poderia ser pela habilidade irritante que ele insistia em usar no garoto. Bastante provável.

Mil se esgueirou até a fogueira que ainda expelia fumaça e cinzas. Ao lado, havia um pacote do tamanho de um punho, embrulhado com um papel bege.

O menino o pegou e abriu, observando um pedaço de pão. Fez seu desjejum enquanto pensava na história contada pelo fogo. Seu coração se apertou, mas deixou isso de lado.

Após vestir-se, caminhou até o lado de fora. Após alguns segundos de vertigem ocasionada pela exposição recente ao sol, Mil se adaptou bem ao ambiente.

Ouviu um pássaro piar ao longe, e uma cigarra cantar próximo. À direita, ouviu o relincho de seu cavalo e observou enquanto seu mestre amarrava algumas coisas ao dele.

Se aproximou, mas a uma distancia que não tivessem de se encarar muito.

– Gostaria de pedir gentilmente que sua majestade não tornasse a usar aquele truque comigo – balbuciou Milan. – É extremamente irritante.

Cildin franziu a testa, mas não se virou para seu aluno.

– E eu já lhe falei sobre esse seu tom.

Tsc!

Cildin parou o que estava fazendo e se virou para o garoto.

– Você parece questionar meus métodos. Tem algo a dizer?

Milan pigarreou.

– Eu não sou um animal, Cildin. Pode ser que isso funcione com falcões, cachorros, cavalos ou até mesmo seus soldadinhos... e pode ter funcionado comigo também, mas não torne a usar isso em mim. Eu não sou um fantoche.

Cildin ergueu uma sobrancelha, mas não havia traço nenhum de irritação diante da aspereza de seu aluno. Até entendia seu lado, mas no momento, tinha de disciplinar esse jeito arredio de agir.

– Se quiser conversar, nós conversamos, agora se quiser manter esse tom comigo, teremos problema.

Milan virou o rosto, irritado. Cildin suspirou fundo. Por que crianças eram tão difíceis? Pelo menos as élficas agiam como crianças, fazendo birra e sendo docemente irritantes, mas a seu modo.

Mas Milan era diferente, Cildin pensou. Ele agia feito um adolescente irritante, no auge de sua puberdade. Mas Milan não estava na puberdade, ele só teve de amadurecer cedo demais, e tudo o que passou até ali o fez se tornar arisco, até mesmo com quem queria seu bem.

Devido sua inteligência, ao seu rápido aprendizado, Cildin até passou a trata-lo com mais maturidade, mas ele era uma criança, no fim. O duque suspirou fundo.
 
– Por que está tão irritado, bela adormecida?

Milan não disse nada, ficou quieto e se aproximou de seu cavalo, que baixou a cabeça e deixou que o menino acariciasse. Cildin ficou surpreso, pois aquele cavalo não era conhecido por sua afabilidade. Sua raça era. Ele, o indivíduo, não.

Após alguns minutos, Cildin ficou desconfortável com o silêncio do menino. Ele mesmo gostava desse lado de Milan; não era tão inclinado a conversas sem sentido, o famoso papo furado. Mas estar desconfortável por causa do silêncio... isso era inédito.

Além do desconforto, sentiu também que provavelmente feriu os sentimentos do menino, e tentou enxergar pelos seus olhos. Não era algo que fazia com muita frequência. Isto é, se pôr no lugar do outro.

Mas Milan era especial, e precisava de uma atenção a mais. Será que ele ficou tão irritado assim?

Cildin suspirou, evitando não pensar nas razões do outro. Isso não lhe dizia respeito.

– Ontem me perguntou como iria se livrar da energia estagnada. Pois bem: vamos partir para um lugar mais puro de mana.

Milan assentiu, agradecido por seu mestre ter sido direto e claro. Não queria trocar palavras com o sujeito nem tão cedo. Agradecia o fato dele tê-lo salvado a vida, e de estar fazendo isso por ele, mas era apenas aí. Isso não deveria dar o direito de tentar lhe controlar, fazer dele um capacho.

Isso irritou Milan severamente. Era como se tivesse sua mente controlada, como se nada que fizesse pudesse se opor àquilo. Lembrou-se da experiência ruim no sonho, onde por mais que tentasse, não conseguia se livrar do regozijo ao matar pessoas, ao destroçar vidas. O ato de se deliciar com aquilo o apavorou mais do que propriamente fazê-lo.

E por horas eles ficaram quietos, apenas o relincho ocasional dos cavalos e o Ploc-Ploc de seus cascos. Cildin suspirou fundo.

– Aquilo se chama Sussurros. – Disse, em tom de desculpas.

Mil não disse nada, apenas encarava o horizonte.

– Entendo que possa ter ficado chateado com o uso dela em você, mas quero que perceba que foi para seu próprio bem, para-

– Isso é besteira. – Atalhou Milan, cuspindo entre os dentes. – Não ligo para os motivos, só não quero que as pessoas pensem que sou facilmente manipulado, ou que podem fazer o que quiserem comigo. Estou nessa incansável e chata jornada pra mudar isso.

Havia raiva em sua voz, não ódio. Apenas raiva. Cildin entendeu por cima que o garoto tinha razão. Após passar pelo que passou, era justo se sentir assim. Mas isso dizia mais sobre Mil do que ele mesmo.

– Treinei bastante tempo da minha vida para possuir tais habilidades. Não posso prometer que não irei usá-la novamente em você, porque irei. Mas ao invés de prometer isso, posso ensinar você a usá-la ou até melhor: a combate-la. Não pense que o mundo ou as pessoas ao redor lhe devem algo pelo que lhe aconteceu. Sinto muito, é uma pena, mas não seja a vítima para sempre.

“As pessoas não vão ser boas só porque você está tendo uma crise de existência, ou porque você se sente mal a cada respirar. Não espere nada de ninguém, Milan, somente de si mesmo. E com isso, fique forte, aprenda o máximo de coisas possíveis para que possa combater habilidades como essa. Não seja a estatística, seja a variável.”

Aquelas palavras gravaram-se na mente de Mil feito ferro em brasa na pele. Não ser a estatística, mas a variável.

Continuaram na incansável rota enlameada e, após uma hora e meia, chegaram num desfiladeiro rochoso. Diante deles havia uma imensa floresta, com árvores altas e verde sobre verde. Cildin abriu os olhos, observando tudo aquilo com um ar de nostalgia.

Após alguns segundos, puxou as rédeas e voltou pelo caminho que vieram.

Mil seguiu seu mestre e caminharam por mais meia hora. Pouco a pouco, um rio ia surgindo e, com isso, a margem dele ficou aparente, até se tornar um lago.

Ele era largo e, apesar disso, a outra margem era vista. Cascalho e pedras enormes se amontoavam ao redor da margem enquanto grandes árvores de troncos largos iam ficando mais distantes, o musgo sobre suas raízes quase convidativo.

Logo chegaram numa cascata, cuja água caía sobre pedras perfeitamente arredondadas, cinzentas e lisas.

– Chegamos. – Declarou o duque.

Milan ergueu uma sobrancelha.

– Viemos tomar banho?

Cildin esporeou sua montaria, ignorando a pergunta cheia de sarcasmo do garoto.

Cavalgou em direção à cascata em silêncio, saboreando o cheiro de pedra molhada e o orvalho formando-se sobre regiões mais distantes do rio.

O duque desceu de seu cavalo e caminhou até a margem, se agachando e bebericando da água. Pegou seu cantil e se virou para Mil, que ainda estava sobre sua montaria.

– Continua potável.

Continua? – Milan indagou, descendo também. – Já veio aqui?

– Costumava. Agora não mais. – O duque se ergueu, virando o rosto para a floresta ao redor e para o topo da cascata. Mil queria muito entender como ele fingia olhar sem estar de fato de olhos abertos. – Conheci bastantes lugares em minhas andanças. Vinha aqui para me desprender das preocupações que regem o cargo. Aqui há de ser seu campo de treinamento.

Milan olhou ao redor. Não parecia nada com um campo de treinamento. Não podia negar que estivera decepcionado.

Costumava ler livros onde os heróis iam para reinos distantes e escondidos, em busca de sabedoria e treino. Eram lugares lindos cheios de construções monumentais, repletos de pessoas mais que qualificadas para ajudar no desenvolvimento deles.

É, era uma queda brusca de qualidade. Uma cascata, um sujeito que nem abria os olhos, e um lago. Potável. Pelo menos ele não morreria de sede.

– Guarde seu escárnio para depois, discente. Vá até a cascata e tire suas roupas.

Apesar das palavras anteriores, Cildin decidiu que não usaria Sussurros tanto quanto gostaria. Não em Milan. Mas o menino não fazia por onde.

Milan ergueu as sobrancelhas e deu um passo atrás.

– Nem vem.

Mentalmente, o duque revirou os olhos.

– Neste lugar, há uma imensa quantidade de mana natural. Aquele vale que vimos antes, será a parte final de seu treinamento e, aqui, é o começo de tudo. É protegido por criaturas primaveris que na maioria das vezes não gostam de aparecer, mas que cederam esse espaço para treinamento, desde que tenhamos respeito. E o respeito é algo que mais prezo no mundo. Terá de passar a confiar em mim se quiser se tornar forte.

Milan assentiu, ficando corado. O sujeito o fez se sentir envergonhado.

Obedecendo as ordens do duque, Milan caminhou lentamente sobre as pedras, tomando cuidado para não escorregar.

Enquanto ia e olhava por entre as rochas, podia jurar ter visto rostos e ouvido risadinhas femininas.

Milan se despiu e pulou no lago, lembrando-se das poucas aulas que teve antes de aprender a nadar.

Rapidamente diminuiu o espaço e subiu nas rochas sendo banhadas pelas cascatas de água fria.

Quando a água caindo tocou em seus ombros, Milan sentiu uma súbita energia se acumular por seus poros, renovando as dores que sentia aqui e ali. Sentiu que toda exaustão, sujeira acumulada e fadiga estavam se indo pouco a pouco.

Uma súbita clareza o envolveu, e a carranca que o acompanhara todos esses dias diminuiu um pouco. Depois de longos dez minutos sob ela, tornou a mergulhar no lago e voltar para o lado de seu mestre.

Quando emergiu na margem, estava mais calmo, sem a severidade e a irritação aparentes.

– E então? – perguntou o duque, sorrindo.

– É incrível. Como... como se uma energia me envolvesse.

– Rejuvenescedor, não é? A cascata tira todas as impurezas e sujeiras corporais. A cura das águas.

Enquanto se enxugava, Milan fitou o chão, estarrecido.

– Não todas... ainda me sinto sujo.

Cildin inclinou a cabeça para o lado, tentando entender aquelas palavras.

– Como?

Milan olhou para cima, encarando o rosto de seu mestre.

– Banhos ensaboados, lagos mágicos ou uma limpeza cuidadosa não vão conseguir retirar a sujeira que aquele demônio impregnou em mim – o garoto piscou, tentando afastar as lágrimas que se formavam. – Não importa o que eu faça, não consigo deixar de me sentir sujo.

E se afastou, pegando as rédeas de seu cavalo. Cildin encarou o lago, pesaroso e pensativo.

Parece que a mácula foi muito maior que eu imaginava Pensou, enquanto observava rostos esbranquiçados envoltos por cabelos negros surgirem vez ou outra sobre a água. Nem mesmo a cura das náiades poderia fazer algo, no fim.

E se virou, resgatando as rédeas de seu cavalo e caminhando logo atrás de seu aprendiz.



***


Como eles chegaram perto do pôr do sol, a ideia de Cildin era apenas que Mil se banhasse na cascata e, depois, erguessem um acampamento.

Fizeram isso na borda da floresta, mais distante da margem. Ficaram sob uma árvore sentinela, o fogo estalando e o vento uivando forte.

O vento trazia consigo muito mais do que sibilos aéreos. Isto é, a voz daquelas náiades e das criaturas da floresta vinham em uivos e cantos distantes. Eram suaves, gentis. Mil se sentiu inebriado, embebido pelas canções numa língua antiga e longínqua.

– As árvores estão em polvorosa. – Cildin comentou, virando o espeto com carne de coelho.

– E as águas também – Milan atalhou.

– Estão em festa. Faz tempo que os reis das florestas não as visitam, não me surpreenderia se o deus dos cascos também surgisse por entre estas árvores, afim de apalpar uma ou outra ninfa.

Milan ergueu um sorriso.

– Sabe que está falando com uma criança, certo?

Cildin ergueu a cabeça, inclinado a rebater, mas notou o tom de risada. Pela primeira vez, viu Milan não ser sarcástico ou irônico de um jeito ruim. Só estava pegando no seu pé.

– Ora, não dê de inocente comigo.

– Não estou. – Garantiu o garoto. Deu uma grande mordida na sua carne e bebericou do vinho que o elfo trazia consigo. Ele era muito cheio de coisas pro seu gosto e aquilo era diferente do que ele esperava de um acampamento. – Fale-me mais dessa floresta e de seus espíritos.

Cildin ergueu as sobrancelhas. Milan Sgaard estava tentando puxar conversa? A cura das náiades tinha realmente surtido algum efeito.

– Há muito tempo, quando os homens caminhavam pelas margens do oceano à Oeste, com medo de adentrarem no continente, e os orcs se escondiam em grutas, e os anões sitiavam as montanhas, os elfos eram os senhores das florestas. Eram os filhos de Ay, a senhora da lua e mãe dos primeiros elfos, e de Kuvvet, o pai das colinas e das montanhas. Eram dias lindos, e o irmão de Kuvvet, Hoffba, o deus dos cascos, vinha aos nossos bosques atrás das filhas de Ay, as ninfas.

“Quando os gobelins surgiram, sendo caçados por orcs, os elfos partiram em busca de outras terras, e esse lugar ficou maculado por longo tempo. Mas as ninfas permaneceram, cuidadas por um deus ainda mais antigo, o Gan Déanhm, senhor dos vales e dos vulcões. Colocou todos os gobelins e orcs pra correr, varridos em meio a destruição. Mas já não haviam mais elfos, apenas as ninfas. Elas nomearam este lugar como Jardim das Hespérides”.

Mil assentiu, enebriado por como nunca ouvira falar dessas histórias. Sabia que havia muito mais do que os livros constavam e, muito provavelmente isso estava nos livros de história élficos enfurnado no país deles.

– Isso faz parte do conto das mil noites?

– É um dos muitos. Sim. – Cildin observou as árvores, como se lesse sua história, como se fitasse a vida de seus antepassados sendo escrita no tronco. – Sou um dos primeiros elfos desde aqueles tempos a pisar nestes jardins. Por isso festejam tanto. Muitas delas estão vivas desde aqueles tempos, e sentem falta de um tempo que não há de voltar. Resta, apenas, a saudade e a lembrança.

– Você também sente, não é? Saudade.

Cildin franziu a testa, como se aquela pergunta fosse incomum. E de fato era. Ninguém perguntava a ele como se sentia.

– Não há como sentir falta de algo que nunca vivi, Milan. Mas há sim uma nostalgia impregnada em mim. É como se a terra reconhecesse minha linhagem, e eu reconhecesse a sua. Somos ligados, conectados através do tempo e da história. – Ele encarou o fogo, parecendo irritado de repente. – Mesmo que os malditos kraveli digam o contrário.

A conversa morreu e Mil terminou de comer de sua carne e de beber o vinho. Ficou encarando o fogo por horas até que dormiu. Estava começando a sonhar com vales e moças lindas à beira de lagos e sobre árvores quando foi cutucado.

Abriu os olhos e Cildin estava ao seu lado, a mão pousada em seu ombro. O duque levou o indicador a boca e depois apontou para além das árvores. Mil piscou, afastando o sono, e puxou o cobertor sobre si. Se juntou ao seu mestre, que estava de cócoras encarando algo.

Do outro lado das árvores, no meio de uma clareira distante um grupo de mulheres de pele tez iluminadas pela luz da lua dançavam. Seus cabelos eram ondulados e as cores variavam entre dourado, castanho e negro. Sobre suas cabeças, haviam coroas de louros e pequenos ramos de oliveira entrelaçados. Seus vestidos tão brancos quanto suas peles esvoaçavam, parecendo flutuar como se debaixo d’água.

Diante delas, homens de pele bronzeada e negra, com peitos e braços nus e de pernas peludas com cascos e fendas de bode ao invés de pés, saltitavam. De suas cabeças, longos chifres brotavam. Pareciam felizes, enquanto assopravam suas flautas e as árvores dançavam diante da canção que claramente era direcionada às moças de aspecto celeste.

Pequenas criaturas esverdeadas e com cabeças rodeadas de folhas e os corpos tão folheados quanto erguiam e balançavam cestas de frutas vermelhas e roxas.

Uma dúzia de seres com a parte superior de homens e a parte traseira de cavalos surgiram trotando em marcha sincronizada, erguendo os braços aos céus e bradando junto à flauta dos homens-bode. Uma enorme fogueira sibilava e parecia cantar e dançar com a música dos seres da floresta.

Milan ficou felicíssimo diante daquilo, gozando da súbita vontade de se reunir aos seres espetaculares. Queria se embebedar e comer junto deles. Queria fazer parte daquilo.

Mas a mão de Cildin o deteve, e ele olhou para seu mestre. Entretanto, ao invés de um rosto severo, ele sorria e os olhos estavam completamente abertos, as pupilas dilatadas diante da beleza da cena criada. Olhar para seus lindos olhos azuis era espetacular, e ver a dança daqueles seres sendo refletida era enriquecedor.

– Não devemos atrapalhar o momento deles. Deixe que a barreira entre eles e nós continue intacta e, em troca, apenas observe sua felicidade. A felicidade que era viver no Jardim das Hespérides. A felicidade da era de ouro do povo élfico e dos filhos da lua e da floresta. Sinta o momento e grave. Grave bem na sua memória que a vida é bem mais do que passado ou futuro. A vida é presente, e a vida é linda.



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