O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 13: MEDITAÇÃO E UTOPIA

 

Milan estava parado na margem do lago, observando a água cair.

– Tudo que preciso fazer é ir até lá e meditar? – Indagou o menino.

Cildin assentiu.

– Ainda não entendi muito bem o funcionamento disso. Como vou conseguir substituir a energia estagnada sem estar com os Portões de Consciência abertos?

O duque pigarreou.

– Antes, você só estava sugando a mana ambiente, embolando energia estagnada e energia do cosmo. Desta vez, há de juntar pequenas quantidades de energia, que irão entrar pouco a pouco no seu corpo, fazendo uma limpeza minuciosa e pragmática na energia estagnada. Ao invés de “trocar” a energia impura pela pura, você vai purificar o que já tem aí. E pra isso, precisa se concentrar e deixar os microrganismos naturais fazerem seu trabalho.

O garoto assentiu. Mergulhou no lago, notando seres nadando bem lá no fundo. Um arrepio perpassou por sua espinha.

Lembrou-se da noite anterior, inebriado com a festa sobrenatural ocorrida numa clareira próxima dali. Naquela manhã, não havia nem sinal de que estiveram ali. Apenas pegadas de cascos e de pezinhos pequenos e delicados.

Mil atravessou rapidamente o lago, se apoiando nas pedras lisas e provando novamente do regozijo gerado pelo toque frio e aconchegante do líquido morno.

Seus sentidos se alertaram, prestando atenção nos arredores. Estava sendo invadido por uma força, algo que curava seu interior. Dessa segunda vez foi mais forte que da primeira.

Logo ele cruzou as pernas e empertigou-se, lutando para se concentrar diante da torrente de água caindo nos seus ombros. Era difícil manter uma respiração, mas os sons ambientes prestaram ajuda, acalmando seu coração. Ele fechou os olhos, se concentrando mais e mais, apagando todo e qualquer pensamento divergente, que o tirasse do foco preciso.

Era difícil se desligar, ele soube. Seu mestre havia lhe dito que pra iniciar esse processo, muito do que ele passou deveria ser deixado para trás. Não esquecido, pois nada no passado pode ser. Mas deixado para lá, como se uma nova página virasse.

Viver sem arrependimentos, sem pensar no passado em busca de moldar o presente e alterar o futuro. O futuro era inalterado por justamente ser uma incógnita. O presente sendo moldado por pensamentos do passado já havia se mostrado um grande causador de guerras. E as palavras de Cildin firmaram-se firme na mente de Mil. Apesar disto, ele se recusava a esquecer do que passou.

Seu ódio por Droner era enorme. Virar a página significava esquecer, perdoar, e Mil não queria isso. Ele ainda sonhava com o dia em que o mataria, que o esfaquearia olhando-o em seus olhos. Que beberia seu sangue e queimaria sua carne numa imensa fogueira. Ah, ele faria isso.

Mas afastou os pensamentos, escondendo-os no fundo de sua mente. Um passo deveria ser dado, e pra começar de vez seu treinamento, precisaria esquecer por ora.

Sua mente se tornou breu, e logo ele respirou fundo, ainda tomando bastante cuidado para não se afogar. Era ruim respirar debaixo de tanta água caindo sobre si. Mas estranhamente a água não o afogou. Ele estava calmo, em transe, e sua mente vagueou. Vagueou para longe dali.



***


Cildin observava seu pupilo sob a torrente de água, empertigado e de pernas cruzadas. O próprio duque estava assim, bebericando de um cantil que não tinha água.

O clima de repente mudou, ficando bastante escuro, úmido e nevoento. Mil estava totalmente alheio, já que caíra num transe profundo. O duque tossiu.

– Um humano e um elfo – disse uma voz rouca e cheira de poder, numa língua antiga, mais ainda que o luin. – Coisas boas não hão de sair daí.

Silêncio. Cildin parecia totalmente à vontade, apesar de entreabrir levemente um dos olhos. A voz soltou uma risada irônica, não deixando isso de lado.

– Apenas um? Me tem em tão pouca estima assim?

– O tempo não lhe foi generoso, homivá – atalhou o duque, mesclando a mesma língua do outro com uma ramificação do luin antigo. – Não tem medo que ele o veja?

– Não se finja de bobo – respondeu o outro, rispidamente. – Ele está em transe profundo. Pensei ter sido claro ao avisar para não se envolver com estas criaturas. E agora você me traz um de seus filhotes para meu lar. Não muda nunca, não é, criança?

Cildin sorriu, verdadeiramente alegre.

– O menino é diferente. Tem algo a mais, algo que não vejo em muito tempo. Ele me lembra...

– Você! – Atalhou o outro. – A genialidade é evidente. Mas e o mental? E a alma? Você nunca foi muito bom em julgar esse tipo de coisa.

– Os tempos mudaram. Sou tão bom nisso quanto você em amedrontar os cascos fendidos.

Uma risada histérica soou.

– Então considere-se um fracassado. – Promulgou, irônico.

Cildin gargalhou também.

– Arisco como sempre.

Outro silêncio mortal.

– Apenas trate de mantê-lo longe da toca, garoto.

A névoa se foi junto, afastada por um vento que levou a voz do sujeito para longe, criando ecos que lentamente desapareceram. A luz voltou ao lugar.

– Como quiser, mestre. – Respondeu Cildin, bebericando novamente do cantil.



***


Quando a noite finalmente chegou, Mil abriu os olhos, mergulhando na água e surgindo na margem diante de Cildin.

O sujeito ficara exatamente no mesmo lugar, empertigado e tudo.

Voltaram para o lugar que ergueram acampamento, e o duque criou uma fogueira. Mil havia suportado bem, mas estava morrendo de frio. Ficar tanto tempo debaixo d’água era desgastante.

O duque deu um manto para ele se cobrir do frio. O silêncio nunca foi tão agradável. Tinham a sensação de estar fazendo exatamente o que precisavam, e a conversa não se fazia necessária.

Milan bebericou do líquido que o elfo fervilhou, e ergueu as sobrancelhas.

– Vai demorar muito pra que a energia estagnada seja revertida?

Cildin inclinou a cabeça.

– Sim e não. Vai depender de você.

Mil assentiu, com se isso não fosse o que queria ouvir.

– Então vou continuar indo praquele lugar dia após dia até que ela reverta?

Cildin negou.

– Há um limite para se banhar naquelas águas, Mil.

– Então não vou mais conseguir entrar lá?

Cildin negou.

– Não leve tão ao pé da letra. Veja bem, após um determinado número de vezes se banhando lá, o efeito para de surtir em você. Haverá um momento em que será somente água de rio.

Mil franziu a testa, os olhos pesando em seu rosto.

– E se eu não conseguir reverter a energia estagnada a tempo? Sinto que mal fiz progresso.

– Não é uma corrida contra o tempo, Milan. Você irá conseguir reverter a energia estagnada contida aí, e o primeiro passo foi dado. O banho na cascata é como um abrir de portas. Você conseguirá reverter mais facilmente desde que compreenda o modo que os microrganismos atuam aí no seu corpo. Tudo há de ser mais fácil.

Milan bebeu mais um pouco da tigela, pensativo. Lutava para não cair no sono, queria estar acordado caso a festança retornasse. Muito embora tivesse a consciência de que isso era improvável de acontecer.

Colocou a tigela no chão e se aconchegou junto à árvore, cheio de sono.

– Antes que me esqueça... – balbuciou, bocejando longa e exaustivamente. – Com quem você estava conversando enquanto eu estava sob a cascata, duque?

Cildin arregalou um olho, surpreso que o garoto tivesse percebido isso. Deveria estar num transe que devesse ser incapaz de estar alheio aos seus arredores. Muito por isso Cildin ficou vigiando-o durante todo o dia. Ele olhou para o menino, mas este já estava dormindo profundamente.

Que menino mais curioso. 



***



Milan estava numa sala longa e escura, inebriado apenas pela luz que escapava do teto em frestas. 

O clima estava diferente. Quando se movia, era como se estivesse debaixo d'água, flutuando sob um elemento pegajoso. 

Diante dele, alguém conversava em luin antigo. A voz era serrilhada, mas por mais que ele tentasse, não conseguia ver seu rosto, por que estava tampado pelo escuro. 

– Oi – disse Mil. – Onde estou? 

Mas o sujeito não respondeu, continuou conversando com a figura etérea que brilhava sobre uma mesa redonda. Mil tentou falar novamente, mas sua voz saiu em ecos. Repetiu a pergunta, e mesmo assim o sujeito não se virou. Era como se não o ouvisse. 

Ele olhou para sua mão e notou um tom fantasmagórico. Será que era um sonho? 

De algum modo ele sentia que não deveria estar ali. Olhou ao redor, enquanto o sujeito continuava conversando com a figura. 

Por mais que ele tentasse, não conseguia compreender o que era dito, pois era pouco flexível e muito arcaico. Mas havia algo de errado. O sentimento de não pertencer àquele lugar aumentou e, do nada, notou que a conversa havia cessado.

Ele olhou na direção do sujeito escondido pelas sombras, não ousando se aproximar. Os olhos dele estavam fixos em si, alternando em cores que Mil não sabia que existia. 
 
– Há alguém aqui. – Disse o sujeito, para ninguém em particular. 

Ele esticou a mão enluvada, tentando tocar em Mil. E por mais que ele tivesse a vaga sensação de que não seria alcançado, deu um passo para trás, um medo profundo tomando todo o seu corpo. 

O outro fechou os dedos, como se pegasse nele.

Mil acordou agitado, transpirando e com dificuldade de respirar. Cildin dormia do outro lado, todo embolado. Que diabos ele acabara de presenciar?!


***



Num lugar muito, muito distante, Aedrin encarou o cristal diante dela, que parou de ondular. 

– Algum problema? – Perguntou ela, em luin antigo. 

– Não. – Respondeu a pessoa do outro lado, a mesma voz rouca de antes. – Só tive a sensação de estar sendo vigiado. – Soltou uma risada forte e estrondosa. – De fato recebi a visita de um ratinho muito do curioso aqui. 

Aedrin ergueu uma sobrancelha. 

– Pensei que estivesse em um lugar intransponível. 

O outro não respondeu. No entanto, ergueu um sorriso sob as sombras em seu esconderijo.

– Interessante. 




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