O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 14: ROEDOR-LÉPIDO

 

Durante alguns dias, nada de muito interessante aconteceu. O corpo de Mil foi pouco a pouco se adaptando à energia da cascata, que inundava e fortalecia cada célula do garoto.

Ele se perdia em pensamentos vez ou outra, lembrando da experiência anterior, onde seu corpo viajou no mundo dos sonhos. Não acreditava muito nisso e, naturalmente, não se lembrava de seus sonhos. Mas aquele insistia em permanecer em sua memória, e a sensação estranha, a esquisita impressão de estar sendo observado, permanecia. Evitou fazer comentários para Cildin.

Entrementes, suas idas à cascata foram lentamente diminuindo, em resposta, seu corpo iniciou um processo de cura contínuo e próprio. Agora que as células dele haviam se acostumado com o fluxo criado e gerado, repetido diversas vezes durante dias incontáveis pelos microrganismos, seu corpo já não necessitava nem respondia a quaisquer processos de cura que o rio pudesse influenciar nele.

Mil notou, também, que a energia estagnada vinha sendo tonificada, tornando-se menos avermelhada e mais prateada.

E por isso, eventualmente, suas idas à cascata diminuíram, pois foi como Cildin disse. A partir do momento em que o corpo dele e sua própria mente passaram a compreender o modo de agir dos pequenos bacilos e, consequentemente o rio estagnou o efeito, ele teve um avanço na reversão da energia estagnada. Se tornara mais fácil, mas continuou difícil, com várias horas sendo necessárias para que pequenas quantidades fossem revertidas. Mas estava funcionando.

No decurso dos dias, Cildin preparou outro treino para Mil. Ele foi claro ao dizer que agora que o rio não surtia mais tanto efeito, era ilógico passar tanto tempo tentando reverter a energia. Ementes, decidiu que treinariam a arte da espada.

E os dias de Mil foram resumidos em acordar cedo, reverter a energia estagnada durante algumas horas e treinar a espada durante o cair da noite.

O elfo havia feito espadas de madeira para treino.

PLAFT

Milan recebeu um golpe forte na costela e, em seguida, um na testa. Caiu sentado, suando frio diante do fogo inebriante da lareira. Mesmo naquele frio, seu corpo estava quente, devido ao esforço extremo que fizera. O elfo, no entanto, mantinha uma pose muito importante. Ereto, as pernas perfeitamente juntas, uma mão para trás e a outra, segurando a espada, ao lado do corpo. Nem um único fio de suor; nem um único indício de movimento. Mil sabia que ele não usara nem ½ de seu real poder.

Um fino traço de divertimento riscou seu rosto severo. Sob a luz do fogo laranja ele parecia mais novo que deveria ser, mas Mil sabia que ele tinha, no mínimo, uns duzentos anos.

– É o melhor que consegue fazer? Pensei que soubesse segurar uma espada.

– E eu sei! – Retrucou Mil, ignorando o tom agressivo da própria voz. Vergonha surgiu em seu âmago.

– Não parece. – Disse Cildin, calmamente. – Na verdade, foi tão fácil achar suas aberturas quanto identificar um lobo num chafardel. Pés distantes, joelhos pouco firmes – iniciou a pontuar. – respiração totalmente inconstante com o modo como segura a espada. Francamente.

– E o que esperava? Não sou um maldito soldado treinado, ora! – Milan berrou.

PLAFT! PLUFT!

Duas pancadas na cabeça de Mil soaram. Ele levou a mão acima e seus olhos se encheram de lágrimas.

– Sua guarda está péssima e numa distância pior ainda. Vamos!

Mil se levantou, segurando a espada com ambas as mãos. Flexionou os joelhos, apontou o pé direito para o lado e o esquerdo para frente.

Cildin deu um pulinho e partiu para cima do garoto. Acertou-o no braço direito, depois no ombro. O menino pendeu, mas permaneceu de pé.

– Precisa relaxar, Sgaard – a voz do duque soou. – Ombros rijos, joelhos muito ou pouco flexionados, distância entre os pés ruim. Quantas vezes vou precisar repetir isso?

Mil caiu no chão, soltando a espada. Checou as mãos, amarelas de tanta força que fez. Sangue se acumulava nas articulações internas.

– Ainda tem pouco reflexo e pouca coordenação motora. Sem contar que a força está patética. Algo bom a se avaliar aí é sua resistência. Vamos melhorar tudo isso.

Mil quis gritar; quis rebater, dizer que o elfo só queria pegar no seu pé. Mas ele nunca foi esse tipo de criança. O duque estava certo.

Após mais alguns golpes trocados, o menino tornou a cair, desta vez de exaustão; sequer conseguiu se levantar. Seus músculos ardiam muito, e seus olhos estavam pesados.

Ele capotou apenas cinco segundos depois de cair ao lado da fogueira. O duque o cobriu com um manto.


***


Na manhã seguinte Mil foi levado pelo duque floresta adentro. O sujeito se manteve calado durante um longo tempo, parando ao lado de árvores próximas de troncos grossos. Um vento soprou e algo de repente pareceu diferente para Mil.

Era como se as árvores falassem, balançando e conspirando entre si. A sua respiração era notável, e o cheiro da relva adentrou as narinas do menino.

Outro vento veio e junto um som distinto, único. Um abeto ronronou, e o cheiro de ervas subiu. As raízes dançavam sob o solo, as árvores cantavam numa língua só delas. Os pássaros piaram e o maior piar de todos eles, do rei dos ares, soou distante. Uma águia surgiu através das árvores, tão longe quanto os olhos de Mil poderiam enxergar.

Sob arbustos e mais abaixo ainda de gramas altas entre raízes, Milan notou a relva roída. O duque pigarreou.

– Há uma missão para hoje.

Milan ergueu o rosto.

– Que missão?

– Ontem eu lhe informei sobre isto, não haja como se só tivesse sido informado agora.

O menino estalou a língua e, em resposta, recebeu um beliscão e uma repreensão.

– Há de treinar para desenvolver sua agilidade e durabilidade.

– Mas você disse que tenho uma boa resistência – atalhou o menino, esfregando o braço doído.

– Durabilidade é diferente de resistência – disse o duque, erguendo o rosto para o facho de luz que adentrava a copa das árvores.

Mil ergueu uma sobrancelha.

– Desde quando? – Perguntou, com um tom de deboche pouco contido.

– Desde que o sol é sol e a lua é lua.

Mil se virou, irritado.

– Bela maneira de vencer uma conversa, senhor sabe-tudo.

PLAFT!

– Pare de esturrar, menino casmurro! – Rosnou o duque, dando um tapa na cabeça de Mil.

– Então pare de me bater, mausoléu ambulante.

O duque suspirou, pondo as mãos na cintura. Tinha um jeito único de ser, difícil de lidar, mas era inegável que o menino também era insuportável.

– Que é que tenho que fazer, afinal? – Indagou o menino, repleto de cólera.

Cildin se empertigou e, com um salto, ergueu-se até o primeiro galho daquele enorme pinheiro. Numa agilidade sobrenatural, subiu os outros galhos com maestria, suavidade e um silêncio mortal, como se nem estivesse ali.

Milan encarou mortificado enquanto em poucos segundos seu mestre escalonava o longo abeto. Se ele quisesse matar alguém, poderia. A pessoa sequer saberia que morreu. Sequer saberia por que morreu.

Naquele momento, bem no fundo de Mil, no seu âmago mais obscuro, além de todo ódio, rancor, raiva e maldade que carregava consigo, um broto de respeito surgiu, acompanhado de honra e orgulho. Ele passara a admirar seu mestre naquele ponto. O respeitava. Estava honrado e orgulhoso.

Junto desse sentimento, um pensamento surgiu: queria ser tão forte quanto o homem. Queria ser o mais forte da sua gente e da gente dele. E se por ventura algum dia viesse a perder, que fosse pelas mãos daquele homem.

Tudo isso surgiu apenas pela analítica e minuciosa habilidade de Milan Sgaard de notar os detalhes. Apenas vendo seu mestre escalar uma árvore, um respeito profundo e genuíno se originou. A mãe de toda e qualquer rebeldia.

O elfo olhou para baixo, encarando o menino.

– Por que é que me olha com essa cara de tonto? Suba já aqui.

Nisso, a raiva voltou a transbordar no peito de Mil e ele tornou a querer esganar o sujeito. Mesmo assim, o respeito continuava ali, mesmo que petrificado.

Após longos cinco minutos, Milan conseguiu chegar ao lado do duque, suado e com um treme-treme angustiante. Sua pressão baixou e ele precisou de alguns segundos para se recuperar.

– A donzela melhorou?

Milan, que tremia sobre o tronco largo e grosso da árvore, olhou irritado para o duque.

– Eu só tenho oito anos!

– Crianças elfo estão lutando contra guerrilheiros aos oito anos. Recomponha-se, Sgaard.

– Prefiro quando você é só um velho calado – cochichou Mil.

– Como? – Indagou o duque, fazendo-se de surdo.

– Por que estamos aqui? – Desconversou o garoto.

O canto da boca do duque tremeu, mas logo foi substituído por uma carranca. Ele encarou um ponto logo abaixo e apontou para lá. Havia uma clareira, com grama alta repleta de relva falha aqui e ali.

Milan se esforçou para encarar o lugar, e assim ficou por vários e vários minutos. Ficou tão impaciente que vez ou outra virava-se para o duque, a fim de notar algum traço de loucura no sujeito. Talvez o louco ali fosse ele, por estar no alto de um pinheiro do lado de um elfo claramente desequilibrado.

Prestes a resmungar como sempre fazia, o duque se moveu. Ele estava tão irritantemente quieto que Mil cogitou empurrá-lo de cima da árvore. Mas seus pensamentos não o venceram, como pode-se perceber.

Ementes, Mil se virou para a clareira, e observou também, a fim de captar aquilo que foi capaz de gerar no duque uma reação. E encarou, encarou, encarou... até que um pequeno brilho surgiu, mas logo sumiu.

Mas ele viu, e desde que tivesse visto, tornou-se mais simples enxergar os movimentos logo ali.

– Trata-se de um roedor-lépido. São hábeis e velozes feito doninhas, mas, em contrapartida, são consumidoras primárias.

– Significa que são herbívoras.

– Ao menos sabe sobre a cadeia alimentar.

Mil ignorou o comentário.

– E o que quer que eu faça?

– Vê como são difíceis de enxergar? Eles são mais rápidos que as doninhas, e seriam mais mortais que elas caso fossem carnívoros ou detritívoros, apesar desta segunda classe não ser tão chegada na caça propriamente dita. Eles usam o mana para se movimentar, e você vai pegar um.

Mil olhou para seu mestre, estático.

– Só isso? Pego um e...

– Traga para mim, ora! – Respondeu o duque, irritado. – São animais difíceis de pegar, e somente um é de grande valia.

Mil o encarou, sabendo que havia mais do que o que o duque queria contar. Deixou isso de lado.

– E como espera que eu faça isso?

– Vai observa-las e começar o treino.

– Só isso?

– Quer mais o que?

Mil ergueu uma sobrancelha.

– Sei lá. Como espera que eu pegue um roedor-lépido se eu nunca nem vi um em toda na minha vida?

O duque deu de ombros.

– Dê seu jeito.

Milan encarou seu mestre, esperando que ele risse ou revelasse que se tratava de uma piada. Mas esteve tempo o bastante com o elfo para saber que aquela atitude era inesperada. Ele era sério demais, e poucas vezes brincava sobre algo, ainda mais em se tratando de seu treinamento.

Mil sabia que algo de bom viria daquele treino, mas a pré-disposição para resmungar, se recusar e chamar Cildin de tudo que é nome pulsava mais forte em seu âmago do que apenas a aceitação. A vida se tornava mais divertida quando ele rebatia algo que o duque dizia. Mas o sujeito estava tão concentrado na clareira que sequer deu bola para quaisquer que fossem seus pensamentos.

Na verdade ele, Cildin, sabia sim que seu pupilo estava a pensar em algo mórbido, sagaz e sem qualquer filtro que pudesse existir. Mas resolveu ignorar o assunto. Aprendeu que com crianças era melhor assim: dar pouca bola para assuntos muito irritantes, e muita bola para assuntos pouco importantes. Por sorte, Cildin não dava bola para nenhum dos assuntos.

Cildin olhou para Milan, como se para ter certeza de que tinha sido bem claro. O menino continuava o encarando e, ao notar o rosto mordaz do mestre – isto é, a esta altura já deve ter ficado claro que Cildin não abre os olhos para quase nada, – ficou impaciente e produziu uma série de sons. Entre eles xingamentos, balbucias e estalos com a boca. Típico de crianças, mesmo para Mil, que por diversas vezes agiu como um adulto. Ainda havia certa inocência e infantilidade nele, afinal. E Cildin agradeceu aos céus por isso.

– Que é que está esperando?

Milan fitou a clareira.

– Você não espera que eu vá para lá e saia correndo atrás de coelhos velozes... Espera?

Cildin ergueu uma sobrancelha e Milan praguejou, para si, até a sétima geração do duque. Após longos segundos o menino finalmente cedeu e desceu cuidadosamente os galhos. Queria matar seu queridíssimo mestre.



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