O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 6: ORDEM DE CURSO


Aedrin estava sentada numa cadeira, flanqueada por guardas imponentes e por Cildin, que estava à sua esquerda. Permanecia inalterado, como se nada pudesse abala-lo. Se abalava, ele não transparecia.

Mil não pôde deixar de ficar boquiaberto ao ver a engenhosidade somada à astucia dos subordinados da rainha consorte. Haviam montado, em poucos dias, uma tenda digna de sua alteza.

O acampamento cujo a brigada de Droner se assentara era temporário, por motivos óbvios de terra infértil e improdutiva. Mas esta tenda passava o ar de realmente pertencer à realeza: um tapete de linho avermelhado cobria o chão. O trono cujo a rainha estava sentada parecia ser feita de uma madeira especial, pois ela brilhava mesmo ali, num lugar aparentemente escurecido.

E o ar... ah! O cheiro era totalmente arborizado, diferente de qualquer coisa que Mil chegou a ver dos orcs. Era lavanda misturado com o cheiro natural de flores numa relva recém arborizada.

Fizera-se dizer a verdade que ficou em um lugar limpo quando foi preparado para servir Droner, mas isso se devia ao fato de ser nada mais nada menos que objeto de satisfação do terrível orc.

As irmãs Dinara e Merentia se posicionaram mais à esquerda. Mil sabia que elas eram leais a alguém que não aos orcs; descobrira seus mestres.

– Sabe quem sou eu? – Indagou Aedrin, impassível.

Mil assentiu. Fora tratado por Dinara antes de entrar na tenda. As irmãs vinham sendo muito gentis com ele. Apesar da mais velha ser tão apática quanto milady Aedrin. Esta o alertou antes dele ficar diante de vossa majestade.

– É a rainha consorte.

Aedrin sorriu.

– É esperto, Milan. – Ela o encarou por alguns minutos. – Mas não sabe de que reino sou a rainha, não é?! E mais, eu também não sei nada sobre você. Sei, somente, que é familiarizado com o luin.

O menino assentiu mais uma vez, sem saber o que dizer. Ela estava correta em suas afirmações. Afinal, a que reino ela pertencia?! Que rei ela jurara lealdade?! Em que terras ele fora parar?! Mais e mais suas perguntas entrelaçavam-se em sua mente.

– Imagine a surpresa que tive ao saber por minhas emissárias que elas haviam encontrado uma criança prodígio.

Mil encarou Dinara e a irmã, que olhavam para baixo.

– Descomunal! Eis a minha surpresa. Sim, pois uma criança humana ter entendimentos sobre o luin antigo, língua tão morta e enterrada quanto nossos heróis do passado, é de extrema inquietação. Mais do que isso: é de se gerar inação. E, esperto como é, deve saber que tipos de pensamentos brotaram em minha cabeça não é, Milan?

O menino sabia onde ela estava querendo chegar. Só pôde assentir mais uma vez, sem ter nada a acrescentar.

– Então me diga os motivos pelos quais deve viver. Diga-me, Milan, por qual motivo devo manter a sua cabeça junta ao seu pescoço nos próximos 30 segundos.

Milan encarou o chão, alarmado.

Droga!

Não nadou tudo isso para morrer na praia. Tinha que ter algum jeito. Qualquer coisa que ele dissesse, qualquer coisa de errado, poderia sacramentar na sua definitiva morte. E se fosse pra morrer, que pelo menos protegesse seus pais, seu lar de nascença. Sua irmã.

– Seja sincero, Milan – Cildin acrescentou, pela primeira vez em um tom tão suave quanto um banho gelado no verão. – Milady Aedrin saberá quando não for.

Mil lembrou de quando ela disse que Droner fora verdadeiro. Talvez esse fosse seu fascínio.

Ele engoliu em seco.

– Venho de outro reino.

E contou tudo. Falou sobre suas origens, sobre seus pais. Falou sobre sua vila, sua província e reino. Falou que caminhava com sua irmã quando uma besta de núcleo apareceu e devorou seus três colegas. Falou que despertou bem ali e que, no momento crucial, uma habilidade que nunca viu antes surgiu, levando-o a ele junto da criatura para um lugar distante. Tão distante que seus habitantes nunca sequer ouviram falar da outra terra.

Cildin, pela primeira vez, mudou de expressão. Ele olhou para a rainha, pálido. Por um segundo, Mil jurou que eles se comunicaram por telepatia. Um minuto depois, o duque dispensou a todos: os guardas, os empregados e as irmãs Dinara e Merentia.

A mais nova lançou um olhar gentil ao menino antes de passar tenda afora.

– Então você é um braveatta, hã?! – Cildin passou a mão pelo queixo, pensativo. Esse era o termo usado para pessoas nascidas na nação de Bravaterra. – O que impede de acharmos que é um espião? Qualquer um com consciência o bastante sabe que estamos em plena guerra. Você pode ser um kraveliano disfarçado.

Milan piscou, confuso. Kravelli... Mil sabia que tinha lido isso em algum lugar. Mas tornou a afastar seus pensamentos como quem afasta uma mosca. Tinha de se concentrar.

– A habilidade de vossa majestade.

– Como?

– É o que impede de pensarem tal coisa de mim.

Cildin olhou para sua alteza que assentiu. O duque sorriu.

– Não sei o que pensar sobre essa habilidade tão... única. Mas sei que nada escapa de vossa majestade. Nem uma mentira, nem uma tristeza... repito, não sei até onde vai suas habilidades, mas digo a verdade. E ela sabe disso.

O duque manteu seu sorriso.

– É esperto, Milan Sgaard. Qualquer um diria que não tem apenas oito anos de idade.

O menino abaixou a cabeça. Com os últimos acontecimentos, de fato não tinha. Não mais. Sentia toda sua inocência se esvair. Sentia que nada mais era seu. Nem mesmo seu nome.

– É de fato muito impressionante, mas não incomum – Cildin prosseguiu. – Seu despertar, digo. Entre vocês humanos, que tendem a viver menos, é realmente motivo de alarde, de comemoração. Mas o que me impressiona não é você ter despertado, Milan. É sua sagacidade. Diga-me, sabe o que significa isso?

Mil concordou. Crianças de sua idade olhariam com um quê de dúvida para Cildin e diriam: sagacidade? Que é isso, sagacidade?

Não ele. Não alguém que aprendeu a ler antes mesmo dos quatro anos. Não alguém que pescava as conversas nas entrelinhas. Mil notou que, apesar de se fazer de inocente, essa casca não duraria por muito tempo.

– Você percebeu os ares de mudança antes mesmo de Droner, um brigadeiro-general condecorado. E não pense que isto escapou de mim. Mas não estamos aqui para falar sobre o orc ou sobre tudo aquilo que você passou em suas mãos. Estamos aqui para falar sobre sua inteligência. O que me impressiona, Milan, é que você é um usuário de Primor. Isso sim é motivo de surpresa.

O garoto encarou o homem, duvidoso. Tinha ouvido os orcs conversarem, mas na ocasião não deu muita atenção.

– Sabe o que é Primor, Mil?

O menino negou.

– E fascínio?

Ele assentiu.

– É a habilidade única de dobrar a realidade, seja por meio dos elementos naturais ou antinaturais. O usuário de fascínio possui a capacidade de criar bolas de fogo, de criar vendavais, ou mesmo de se teletransportar para um outro lugar. Desde que... desde que possua orka o suficiente, claro.

Cildin ergueu um sorriso generoso. Parecia fascinado.

Ele inclinou a cabeça para o lado.

– Diga, Milan, como sabe de tudo isso? Até onde sei, é filho de simples ferreiros de uma vila qualquer.

Ele corou. Era verdade.

– Eu... eu gosto de ler, senhor.

Ainda assim... pensou Cildin. Essa simples resposta poderia trazer de volta a dúvida, o pensamento de que Mil poderia ser alguém disfarçado. Mas a habilidade de vossa majestade permitia ele mesmo crer que isso não era verdade.

Nada escapava de Aedrin. Nada podia se ocultar dela, nem mesmo um menino recém-despertado. Sem contar que ela tinha uma outra habilidade, da qual impedia que alguém mais fraco que ela pudesse mentir em sua presença. Ela sabia de tudo. Aqueles olhos cinzentos eram abençoados pelos céus. Eram uma dádiva.

– Primor é como chamamos a evolução do fascínio, Milan. Uma habilidade única, uma raridade. Algo incomum até mesmo entre as habilidades do fascínio. – Cildin alternou o peso das pernas. – Pelo seu relato, estou compelido a acreditar que é um usuário do Primor, Mil.

O menino assentiu. Nunca ouvira falar desse tal primor e, ainda assim, ficou em êxtase. Sua fome por conhecimento, pelo desconhecido era descomunal, tal e qual a surpresa de vossa majestade. E ser um usuário de um fascínio raro... do Primor. Como Cildin poderia deduzir isso apenas ouvindo seu relato?

E Mil transformou sua dúvida em palavras quando fez a mesma pergunta ao elfo.

– Não possuo todas as informações, mas meus homens me disseram que chegaram a tempo de ver a tal habilidade. Seria necessário um aprofundamento para descobrir que tipo de Primor você possui. Mas, para ter certeza, gostaria de fazer um teste.

Cildin ergueu uma mão e, de uma passagem lateral, uma criada saiu. Ela usava um pano que cobria seu rosto, deixando apenas os olhos incrivelmente azuis à mostra. Nas suas mãos, segurava um cubo negro com uma fenda na face superior.

– Quando alguém desperta, o comum é que façamos um teste para descobrir se este alguém é usuário de fascínio ou não. Lógico, esse teste apenas direciona a afinidade natural do despertado; o treinamento e desenvolvimento é bem mais complexo.

Ele caminhou até a criada lentamente e pegou o cubo de sua mão.

– Para descobrir se alguém é ou não um aprimorado, desenvolvemos este teste. – Ele diminuiu o passo até Mil, que tremeu sob o olhar firme do homem. – Ele irá aflorar todo o seu potencial e, caso seja um aprimorado, veremos novamente aquele poder. Deposite sua mão dentro da fenda. Não a retire mesmo que sinta dor, skilja?

Mil tremeu novamente, mas resolveu confiar no elfo. Colocou sua mão dentro do cubo e imediatamente sua mente foi puxada para dentro dele.

Uma incontável miríade inundou sua cabeça. Eram fragmentos geométricos juntamente com vozes e lembranças. Ele começou a ter lembranças da infância não tão distante. Viu o momento em que nasceu. Sua mente vagueou pelo mundo, rodando e girando.

Então se firmou em palavras sendo ditas por várias pessoas em momentos diferentes de sua vida. Até que percebeu que as palavras não eram ditas ao vento e sim tentavam formar uma frase. Mas a língua era de difícil entendimento.

Tudo girou como um tufão e, no centro, ele viu a si mesmo, exalando o mesmo fascínio indistinto. Viu-se no centro de uma guerra, corpos riscando o chão com sangue. Os céus partidos e enegrecidos. Orcs, elfos, anões, fadas... humanos. Todos se enfrentavam, e ele, mais velho, no meio.

Sua mente foi sugada para fora. Estava tonto, seus olhos embaçados. Ao erguer o rosto novamente, Cildin estava a frente de vossa majestade segurando o cabo de sua espada ainda embainhada.

A tenda estava cheia de guardas que apontavam seus arcos para Mil.

– O que... o que aconteceu?

Aedrin se ergueu da cadeira, um sorriso enorme no rosto. Caminhou até Milan, sua capa espiralando. Ninguém ousou impedir seu curso.

Ela se ajoelhou na frente de Mil e pousou sua mão no ombro do garoto.

– Quero que se evolua e trabalhe para mim, Milan Sgaard.

O menino olhou para os guardas, que ficaram surpresos com o pedido inusitado.

– E-eu... – gaguejou.

– Isso não é um pedido. De agora em diante, você será meu protegido.



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