O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 5: HINA OHTAR

O traje de batalha ondulou junto ao vento.

Aedrin era o tipo de mulher imponente, que passava uma aura predominante só de olhar para alguém. Mil nunca tinha conhecido ninguém assim. Nunca tinha visto alguém tão linda e tão rigorosa ao mesmo tempo.

O sorriso dela de canto fez com que Mil perdesse um pouco a sensatez. Fez com que ele quase esquecesse da sua atual situação.

Seus cabelos negros chicotearam quando o vento veio de trás, levando seu cheiro até ele. Por um segundo seus olhos se encontraram. Os dela eram cinzas, tempestuosos. Como os dele. Como os da sua mãe.

Mas estes eram diferentes. Eram cruéis, frios. Porém, lindos à sua própria maneira.

Três arqueiros puxaram a corda de suas flechas, prontos para lançar uma saraivada.

Aedrin ergueu uma mão, sem precisar dizer nada.

– Milady Aedrin... peço perdão que tenha vindo até aqui somente para presenciar tal situação. – Droner bufou, ainda de joelhos.

Aedrin continuou olhando para Milan, sem sequer se dar o trabalho de olhar para o orc cinzento.

– É meu dever, afinal. – Disse ela, finalmente, assentindo levemente a cabeça.

Os arqueiros imediatamente baixaram os arcos, a flecha e a corda sumindo junto. Prenderam os arcos em seus ombros e bateram continência. Estavam tão eretos que Mil pensou que iriam quebrar suas colunas.

Droner olhou estupefato para a cena, os orcs pareceram alarmados também. Ela havia cessado o ataque ao menino que causara problema. Ao assassino de seus homens.

– Milady! – O orc que conseguiu fugir gritou. – Não baixe sua guarda Milady! O moleque é um portador... ele...

ZWISH!

Uma espada varreu o ar, produzindo um som cortante. Um segundo depois, a cabeça do orc caiu, ecoando um Ploc-Ploc contínuo. Logo após o corpo caiu, levantando poeira e sangue verde jorrando. Foi um corte limpo.

O responsável pelo golpe sacudiu a espada, espirrando o sangue preso a ela. Mil encarou a lâmina de fio duplo feita de um material chamativo. Por um segundo pareceu que ela o encarou de volta. Uma névoa vermelha se despregou dela feito fumaça, mas foi por um segundo e logo cessou.

Milan subiu o olhar e encarou o homem. Orelhas pontudas, pele tez e cabelos perolados na altura dos ombros. Os olhos dele eram frios e baixos, como os de um peixe. Mil não ficou muito satisfeito com a própria associação.

Ficou tão encantado com os cílios esbranquiçados que, outra vez, quase esqueceu sua situação.

O sujeito embainhou lentamente e se empertigou, limpando a garganta.

– O oficial general é o único com permissão para se dirigir à Milady Aedrin.

Ele se virou para Droner, que tremeu sob o olhar inquisidor.

– A menos que ela permita que imponham seus pensamentos, ninguém impõe seus pensamentos. Skilja?

Droner tremeu. Mil não sabia se ele concordara ou só estava tentando não mijar em si mesmo.

– Comece a falar, orc.

– Duque Cildin...

Droner engoliu em seco. Mas conseguiu erguer o rosto e acenar para Mil, que ainda segurava a espada com afinco.

– O moleque arrancou um olho meu, depois matou três dos meus guardas pessoais tentando fugir... É tudo o que sei.

Cildin se virou para Aedrin, que mantinha o olhar no menino. Ergueu uma sobrancelha.


O tal duque não falou mais nada, apenas assentiu e caminhou até o lado de Aedrin. Como este povo conseguia ser tão imponente?!

Não pareciam se apoiar em títulos, e o duque mostrou ser alguém pragmático.

– Claramente está mentindo, Droner – a voz de Cildin finalmente soou. – Como uma criança mataria três orcs verdes adultos?! – Cildin se virou para Milan. – Ou ele tem muita sorte ou vocês são muito incompetentes. Acho que ambos são aceitáveis aqui.

O orc arregalou o único olho que lhe restara.

– Não... eu juro...

– E como explica isso?! – A voz raivosa de Cildin se elevou.  

Três arqueiros saíram de suas posições, erguendo os arcos para o orc.

– Ele fala a verdade sobre o resto, calima. – Atalhou Aedrin, a sobrancelha se erguendo. Ela inclinou levemente a cabeça para o lado. – Diga-me, hina ohtar, e não ouse mentir para mim, pois saberei; é verdade o que o irin laiqua disse?

Mil entendeu apenas uma ou duas palavras ditas. Aparentemente, Aedrin tinha grande dificuldade em conciliar a língua antiga dos elfos, luen, e a atual língua universal, o aloin.

Irin Laiqua... significava o morto verde. Ela se referia ao orc que acabara de ter sua cabeça decepada.

Milan pensou bastante. Já não era hora de ficar guardando seus segredos para si. O que quer que acontecesse a partir dali, estaria nas mãos dos elfos. E provavelmente seria melhor do que a vida que teria ali com Droner e o resto.

Então assentiu, sem pesar ou receio algum.

Cildin e Aedrin se encararam, pouco surpresos. A milady sorriu; o duque, assentiu, como se confirmasse suas suspeitas.

Um dos soldados bateu no peito e gritou.

– QUET LAYFI!

Aedrin olhou de esguelha. O soldado baixou a mão e respirou.

– La’frïr malündgar ogmar fizend – ele apontou para Mil. – Hina fulëg miltan provat, goeth fulgor.

Mil piscou. Novamente, entendeu somente uma ou duas palavras. Hina... já tinha ouvido falarem antes. Deveria significar algo como criança ou menino. E goeth... ele já lera sobre essa palavra num livro antigo, que nem mesmo seus pais sabiam que ele tinha. Mas o que significava?!

Aedrin encarou Mil vagarosamente, um sorriso querendo estampar-se. Cildin manteve-se inalterado, mas o temperamento bem mais incontido.

– Entendo. – Afirmou a Milady.

Qual era a razão de tanto sorriso disfarçado?! Mil não entendia. Contudo, Droner parecia prestes a explodir.

Ele se ergueu, dando um passo a frente. Um dos soldados da escolta de Aedrin puxou sua espada de lâmina longa e encostou a ponta no queixo dele. Seus olhos azuis pulsaram por baixo do capacete. Ele parecia rezar para que o orc seguisse em frente.

– Pense bem no que irá fazer, galkut.

Droner parecia certo de que seria mais forte que o elfo. Bastava erguer a mão e apertar seu pequeno crânio até que seus ossos virassem pó. Mas com Cildin ali era outra coisa. Com Aedrin...

Ele não se importava com a importância de Cildin, tinha mesmo era medo. Sabia que o elfo era mais forte que ele. E com Aedrin era a mesma coisa. Não havia respeito, apenas medo. E a ira que sentia pela situação estar se encaminhando positivamente bem para Milan borbulhou em seu âmago.

Mas ele era leal à Xidan, não aos elfos. Xidan era o senhor dos orcs cinzentos e verdes. Era o rei das sete costas, o senhor dos sete clãs orcs mais poderosos. E desde que este fizera uma aliança com os Svarmir, poderosos senhores de guerra como o duque e a milady passaram a ser superiores à Droner, um brigadeiro-general. O líder de uma brigada!

Responsável por incontáveis regimentos e batalhões. E almejava se tornar um tenente-general, líder de uma divisão.

Esse sonho foi interrompido com a união orc-élfica. E ele odiava esses empinadinhos que se achavam superiores. Odiava com todo seu ser.

– Espero que não esteja pensando em perdoar o garoto, Milady!

Cildin virou-se para ele, a sobrancelha erguida.

– E que autoridade acha que tem para pedir algo assim? Ou melhor, ordenar?!

– Ele me insultou!

Aedrin se virou.

– Mas não a mim.

– EU SOU UM OFICIAL GENERAL!

– E EU SOU A RAINHA CONSORTE!

A aura de Aedrin mudou. Uma sombra se alongou sobre ela e os céus escureceram. Seus cabelos chicotearam suavemente enquanto sua carranca aumentava.

Mil notou que a intenção não era atingi-lo, mas sentiu as gavinhas se estendendo até ele. Quase apagou, mas conseguiu manter-se de pé.

Observou alguns orcs caindo para a frente feito troncos de árvore.

Uma veia na testa de Cildin saltou e ele fechou os olhos suspirando fundo.

– Não pense, Droner, que tem qualquer autoridade sobre mim e meus homens. Xidan, seu rei, pediu pessoalmente ao meu marido que enviasse alguém para checar a sua brigada. Como está a situação nas vilas Mare?

Droner engoliu em seco. O rei élfico não mandaria sua própria esposa para resolver essa situação se já não tivesse tomado uma decisão. Ele, no máximo mandaria um barão. No entanto, enviou um duque e a própria rainha.

– Você entende sua situação, Droner – Cildin apertou o cabo de sua espada. – Vossa alteza não enviou suas criadas pessoais somente para preparar sua chegada. E elas foram muito claras em suas informações.

Droner ergueu a cabeça, o sangue já estava seco em seu rosto.

– Parece que sua alteza já tomou uma decisão, não é?! – Não houve resposta. Em vez disso, Droner agarrou o soldado pelo pescoço e apertou, até que seus olhos se esbugalharam para fora do capacete e o sangue espirrou.

Tatuagens circulares apareceram ao longo de seu braço musculoso vibrando num vermelho vivo. Giraram em torno de si, perpendiculares.

– Um portador combatente. – Cildin pigarreou. – Que novidade.

Droner levou as mãos às costas e puxou dois machados vermelhos que pulsavam como os círculos em seus braços. O duque agarrou o cabo da espada em sua cintura e diminuiu espaço com a rapidez de um trovão.

Seus passos eram suaves e ele logo ficou de frente para o orc. Droner cruzou os machados à frente do corpo bem quando Cildin sacou sua espada.

Com o floreio dela, o elfo acertou a defesa do orc produzindo um som gutural de metal. O orc afundou um pouco no chão e recuou alguns passos, surpreso.

O machado na mão esquerda mudou de forma e se transformou num escudo longo com selos intrincados na superfície. Mil não entendia como funcionava suas habilidades, mas ficou fascinado com a facilidade em que ele criava armas. E não era armas físicas. Pareciam ser alimentadas pelos círculos em seus braços, que continuavam a girar a todo vapor.

Cildin diminuiu espaço com seus passos leves. Droner ergueu o outro machado acima da cabeça e sorriu compulsivamente. Desceu-o sobre a cabeça do elfo, que arregalou os olhos.

Num segundo pareceu que o duque morreria, no outro, este apareceu atrás do orc com o lampejo de um clarão. Floreou sua espada mais uma vez atrás dos joelhos do orc.

– ARGH! – Droner urro e caiu para a frente. Seu escudo tremeu e Cildin viu uma chance. Meneou a espada novamente e, com um floreio rápido, decepou o braço esquerdo do orc. Sangue jorrou do corte limpo.

Quantos cortes limpos o duque poderia executar?! Seria necessária uma força tremenda.

Os círculos ao redor dos braços de Droner perderam a intensidade e o machado também.

Cildin sacudiu sua espada fez diversos cortes nas costas de Droner, que jogou a cabeça para trás e urrou novamente.

O duque embainhou sua espada e deu um passo para trás. Em seguida, Aedrin caminhou até o orc cinzento.

– Deveria saber que nada escaparia de Xidan. Tentar tomar as minas sul e se apossar de um portal recém descoberto... sem contar a demora para tomar as vilas Mare. Ele pediu que você fosse levado vivo – Aedrin se inclinou levemente para a frente. – Mas minha vontade era matar você aqui mesmo.

– Eu sou Droner! Sou um brigadeiro-general! Não pode me prender.

– Acho que você não entendeu sua situação ainda, orc. – Cildin atalhou. – Seu rei deseja que você seja levado até ele. O futuro oficial general será escolhido nos próximos dias.

Dois elfos correram até Droner e tiraram algemas com correntes. Prenderam ao pescoço e no pulso esquerdo dele. Em seguida alguns orcs tiveram de ajudar a levar o ex-oficial general acampamento adentro.

Quando o lugar esvaziou mais, restando apenas alguns soldados, o duque, a rainha e Milan, ela virou-se para o mais novo, fria.

– Temos alguns assuntos a tratar, hina ohtar.



Comentários