Volume 1
Capítulo 37: DOURADO COMO O SOL
O mundo ardia em silêncio.
A febre não consumiu seu corpo, mas algo mais fundo, entranhado, como um lamento que ferve por dentro. Milan não sabia se estava dormindo, morto ou preso entre as paredes de um antigo sonho. Cada respiração que dava, trazia o gosto amargo da floresta, das cinzas, do sangue derramado que nunca lavou das mãos.
Mas havia sangue demais para ele. Sangue que não fora derramado por ele.
Mil se viu de pé diante de uma porta. Era um sonho. Outro.
Uma porta simples. Madeira gasta, trincada, com cheiro de infância e dor. Só um desses lhe trouxe nostalgia.
Do outro lado, ouviu uma mulher cantando. Uma canção sem palavras, mas familiar. Como se a melodia tivesse sido enterrada nele.
Ao tocar a maçaneta, algo o impediu. Um reflexo. O reflexo de sua mãe.
Ela estava linda. Cabelos longos e loiros por trás do pano azul marinho envolvendo sua cabeça. O rosto anguloso e gentil, rugas de sorriso se formando no canto da boca. E olhos cinzentos. Como os dele.
Mas Maria não o encarava. Ela permaneceu parada, à sua frente. Seus olhos voltados para um ponto distante, como se houvesse algo ou alguém mais importante do outro lado. Então falou, sem mover os lábios:
— Você nunca me viu como sou.
Milan tentou responder, mas a garganta ficou seca, como se estivesse cheia de poeira. Ao forçar a porta, ela cedeu com um estalo… e tudo desabou.
Ele agora estava ajoelhado num lugar estranho, inóspito. Uma menina de longos cabelos dourados e olhos grandes e verdes o fitava em seus braços. Não uma menina… uma mulher. Emma.
Havia sangue. Sangue no chão, sangue na roupa, sangue no rosto dela. Mas ela não pronunciava uma só palavra. Só o encarava… mortalmente pálida.
Sua expressão… era a mesma de quando ela o olhava no passado. O olhar de quem venerava, mesmo por trás de todo aquele sarcasmo. O olhar de admiração.
Havia uma espada em suas mãos. E não havia mais ninguém ali para culpá-lo.
— Por que você não me salvou? — Indagou.
Milan gritou. Não por ela, mas contra algo dentro dele que se partiu.
Ele agora estava dentro de um quarto antigo de pedra bruta, tudo submerso por uma água negra, espessa. Ao longe, ouvia uma voz doce e gentil falando com ele, com um arranhado em língua antiga… élfico… luen.
Agora havia uma porta, e nela, um espelho. Um jovem com coroa de príncipe o encarava, os olhos arrancados, sua boca murmurando palavras que ele não compreendia.
Mil sentiu falta de ar, começou a sufocar.
Então quando ele tentou escapar, a porta se desfez com penas que caíram e desapareceram.
No lugar, Milan se viu numa mesa longa de banquete, repleta de convidados com rostos rabiscados.
Mas ele já vira isso antes.
Ele estava sentado, os braços sobre a mesa e os pulsos presos por grilhões. Os outros continuavam brindando como se ele fosse o convidado de honra.
Uma mulher sem rosto se aproximou, carregando um cálice de sangue e sussurrou, a única audível aqui:
— Beba, ou ficará só entre os vivos.
Ao fazer isso, ele observou os rostos dos convidados se reconstruírem vagarosamente. Rostos corrompidos, deformados, resignados. Até que finalmente fez-se ouvir.
Mas Milan já estava longe de novo. Andava por uma caverna estreita que de repente se transformou numa escadaria feita de ossos. Todos com inscrições e símbolos estranhos, como na cripta do espírito antigo. Mas muito mais antigas.
Então ele viu uma silhueta, um sujeito alto feito de sombra, gavinhas de árvores se erguendo na sua cabeça feito chifres, e olhos vermelhos pinicando, encarando.
Vozes ecoaram feito orações corrompidas. No topo da escadaria, Milan encontrou o próprio túmulo, um epitáfio mórbido:
“Aqui jaz aquele que desistiu antes de escolher.”
Uma brincadeira boba.
Entre sonhos e mais sonhos. Pesadelos e sandices, Milan conseguia ter noção da realidade, acordando mesmo que fadado ao delírio dos sonhos.
Ele via uma jovem linda vagando. Via um teto abobadado. Via cuidado.
Mas de novo sonhou.
Agora havia silêncio.
Uma gaiola de vidro pendia, dentro dela, uma menina. Era uma jovenzinha de cabelos longos quase etéreos, os olhos de âmbar vivos. A moça do bosque. Mas mais menina.
Estava encostada na gaiola, as mãos contra o vidro e os olhos arregalados. Havia um brilho nesses olhos. Confiança cega. Ela acreditava que ele iria salvá-la. Mas atrás dela, tudo era neblina e cinzas.
Se ele quebrasse a redoma, ela seria livre. Mas tudo ruiria. A jovem não pronunciava palavra alguma, apenas sorria. Milan ergueu o punho, pronto para agir. Mas não conseguia quebrar. Não ainda.
***
O lugar era frio. E real.
Milan acordou, mas ainda parecia errado. Ele tinha a sensação de que estava caindo, mas ao abrir os olhos, não viu o céu, nem a escuridão do abismo, tampouco a câmara de pesadelos que o prendera por tantas visões febris.
Luz azulada se infiltrava pelas rachaduras de um teto abobadado, repleto de musgo e raízes de hera.
Cheiro de ervas queimadas e umidade antiga impregnava o ar.
Milan se moveu, o corpo ainda trêmulo das visões. Ao erguer a cabeça, observou algo que gelou sua espinha.
Viu olhos dourados.
Pestanejando, se retesou. O rosto diante do seu era jovem, severo, envolto por uma aura de luz lunar, e mesmo ali, em meio à penumbra azulada da câmara, parecia pertencer a outro plano. A jovem etérea o observava com desdém calmo, sentada à beira da plataforma de pedra em que ele jazia. Tinha as pernas cruzadas, os braços apoiados sobre os joelhos, e um leve arquejo de tédio nos lábios.
— Ah. Finalmente decidiu parar de delirar como um passarinho com as asas quebradas.
A voz dela veio baixa, mas cortante.
Milan tentou erguer o corpo novamente, mas um peso diferente do cansaço o manteve deitado. Algo entre a febre que ainda dançava em seus ossos e a névoa que persistia em sua mente.
— Onde… eu estou? — sussurrou, rouco.
— Onde sempre esteve — retrucou ela, de modo seco. — Perdido.
Cansado até mesmo para retrucar, Milan suspirou, tenso.
Ela se levantou com fluidez e se afastou alguns passos, como se o cheiro dele a incomodasse. Estava de branco, a túnica agora manchada de sangue seco em uma das mangas — não dele, percebeu Milan, mas de alguma outra criatura, talvez colhida nos rituais dela.
Ele engoliu em seco e fitou o teto da câmara. Os desenhos entalhados pareciam pulsar devagar, como um coração doente. Lembrou-se das visões. Emma… sua mãe… os olhos vazios… o epitáfio.
A jovem retornou com uma pequena tigela de vapor esverdeado.
Milan recuou, tenso.
— Que fez comigo?
Ela revirou os olhos, bufando.
— Salvei sua vida, idiota. Duas vezes, se contar a parte em que você decidiu se envenenar com a própria cabeça.
Milan franziu o cenho. Ela era uma jovem detentora de dizeres muito… ambíguos. O que ela queria dizer com isso?
Conforme ela permaneceu diante dele com a tigela em mãos, Mil forçou o corpo para se sentar, mesmo com as dores ainda latejando nas costelas e na nuca. Cada músculo vibrava como se tivesse lutado uma guerra. Por dentro e por fora.
Ele forçou um resmungo.
— Isso não muda o fato que você me deixou para morrer antes.
Ela deu de ombros, o rosto inexpressivo.
— Achei que você fosse mais forte. Erro meu.
Houve silêncio. Mil pegou a tigela, relutante.
Encarou o líquido verde com uma tremenda má vontade.
— Beba.
Mil franziu ainda mais o nariz, nojo escancarado.
— Que gororoba é essa?
A jovem bufou.
— Você sempre pergunta tudo? Ou só quando alguém tenta lhe ajudar?
Milan não conseguiu conter o desdém.
— Bom, nesse caso, não tenho certeza se é de fato uma ajuda… tenho a sensação de que vou definhar só de cheirar isso…
A jovem deu de ombros e suspirou, encarando o teto.
— Tanto faz. O funeral é seu…
Milan praguejou.
“Essazinha…”
Ele encarou o líquido turvo. Tinha gosto de pedra molhada e folhas podres. Mas desceu quente, e aos poucos, a dor se afastou. A febre recuou.
Silêncio novamente. Milan gostava desse silêncio, e a jovem aparentemente também.
Mas pensamentos martelavam sua cabeça, e ele sabia que deveria rompê-lo. Mas por onde começaria?
Ela era a primeira pessoa que ele via há muito tempo. Desconfiava que ela fosse um delírio seu ou pior, um delírio dessa floresta maldita. Mas a sopa era bem real, com um gosto bem real e ruim.
Milan precisava deixar o orgulho de lado se quisesse sair desse lugar. Respirou fundo e falou:
— Eu… eu vi coisas.
Ela o encarou por um tempo, então se levantou, caminhando em direção à parede coberta de símbolos entalhados – inscrições antigas que brilhavam com uma luz opaca e pulsante. Ela passou os dedos por elas, como quem lê uma sentença há muito selada.
— Isso é normal — ela rebateu, sem sequer olhá-lo. — Os sonhos não gostam de quem mente para si.
Milan achou essa declaração subjetiva demais. Isto é, como alguém tão jovem poderia mentir para si mesmo? Tudo o que Mil fez nos últimos tempos foi carregar-se com a mais pura sinceridade cruel impávida. Tola, mas corajosa. Bruta, com certeza, mas não mentirosa.
Ele tinha muito o que refletir, mas agora não seria o momento.
— E você… estava lá — murmurou ele, franzindo a testa. — Você me carregou?
Ela bufou.
— Tive que arrastar sua carcaça por meia câmara e derramar metade do meu fascínio só pra impedir que explodisse em chamas internas. Nem me agradeça.
Ele tossiu seco, o gosto metálico na boca ainda presente. Não se daria ao trabalho.
— Você podia ter me deixado.
— Acredite, eu quis. — Ela se virou, fitando-o com arrogância. — Mas isso significaria admitir que humanos são fracos demais até pra passar por uma provação simples.
— Simples? — Milan ergueu uma sobrancelha, mesmo deitado. — Eu vi o meu túmulo. Meu próprio túmulo.
Ela o encarou por um momento. Então desviou os olhos, como se aquilo não a surpreendesse.
— Se viu, é porque já esteve mais perto dele do que gostaria de admitir.
Um silêncio tenso se espalhou entre os dois.
A respiração de Milan voltou a pesar.
— Aquilo que você disse… antes. Que eu precisava… provar algo. — Seus olhos se estreitaram. — O que exatamente eu preciso provar?
Ela hesitou. Pela primeira vez, os olhos dela pareceram perder o brilho altivo, mesmo que por um instante. Ela virou-se de costas para ele, caminhou até um arco esculpido na pedra e parou ali, com a mão apoiada no mármore.
— Esta câmara… não é uma prisão comum. — Sua voz agora era mais baixa, quase contida. — É uma veia da floresta. Um lugar onde o que você é… se torna tudo o que há. E só quem se reconhece — mesmo que no pior de si — encontra a saída.
— Então eu tenho que me aceitar? — Milan resmungou. — Que clichê.
— Não. — Ela se virou, os olhos brilhando com raiva contida. — Tem que se encarar. Há uma diferença. Aceitar é conforto. Encarar é guerra.
Ele a fitou por alguns segundos, então desabou sobre o leito, exausto.
— Por que você se importa?
— Eu não me importo.
— Tem certeza?
A jovem virou o rosto. O silêncio dela respondeu.
Ele sorriu — um sorriso torto, sarcástico, ferido.
— Você é péssima em mentir.
— E você é péssimo em sobreviver.
Ela se aproximou de novo, puxando uma jarra e despejando água num cálice de pedra. Estendeu-o a Milan, mas não sem antes encará-lo com repulsa fingida.
— Beba. Ainda cheira como lixo, mas talvez com sorte volte a parecer gente.
Ele tomou o cálice, as mãos trêmulas. Observou-a por entre os dedos.
— Você sempre foi assim? Azeda?
— E você sempre foi tão humano?
Milan soltou um riso baixo. Pela primeira vez, verdadeiro.
Ela virou-se, o som parecendo irritá-la mais do que tudo o que ele dissera até então. Mas havia algo naquele rubor sutil sob os olhos dourados que a traía.
Porque ela também parecia como ele. Perdida, sem lugar ao qual voltar. Sem interações suficientes. Sem perspectiva.
Ele observou o vulto dela se afastando para o fundo da câmara, a túnica esvoaçando.
Algo em seu peito ardeu. Uma febre diferente.
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