Volume 1
Capítulo 36: ANTES DO NOME
— Que faz aqui, semente que murcha?
Milan a encarou, boquiaberto. Um turbilhão de perguntas se formava, colidindo em sua mente: Quem era ela? O que fazia ali? Onde estava? O que foram aquelas visões?
Mas nada tomava forma. As perguntas vinham truncadas, distorcidas, como se as palavras se esfarelassem antes mesmo de alcançarem seus lábios.
A figura diante dele era uma jovem de tez pálida como a névoa que cobre a lua, com um leve brilho perolado — como se a própria noite repousasse sobre sua pele. Vestia-se de pétalas escuras, musgo e fios translúcidos como seda lunar. Parecia flutuar, suspensa no ar, mas Milan não saberia dizer se aquilo era levitação real ou um mero capricho dos sentidos. O chão não ousava tocá-la.
O jardim reagia a ela. Uma flor se abriu sob seus pés minúsculos. As folhas se inclinavam em sua direção, o ar sussurrava como um sopro antigo tentando se lembrar de uma canção.
E mesmo diante de tudo isso, Milan recuou um passo.
Não por cautela. Mas por um desconforto irracional, uma repulsa imediata — como se ela fosse feita de algo errado. Belo, sim. Mas de uma beleza como a de um cadáver bem adornado, ou de um pesadelo embalado em perfume doce.
Por um instante, teve certeza de que já a conhecia. Mas não do passado — de um futuro que não deveria acontecer. Ou de uma lembrança que não era sua.
Aquela presença o incomodava. Seu corpo reagia como se estivesse diante de um veneno belo, e sua mente tentava, em vão, se convencer do contrário.
Ela ergueu uma sobrancelha.
Seu rosto, em formato de coração, tinha traços finos e pontudos, como se moldado com precisão cruel. Os olhos, dourado-esverdeados como folhas no fim do outono, estavam aquecidos por uma luz que não trazia conforto. Eram belos, mas não humanos. E não acolhedores.
Não havia ali traço algum de curiosidade — apenas repulsa contida, e algo mais profundo: um incômodo ancestral, como se a simples presença de Milan violasse regras antigas e esquecidas.
Milan sentiu como se fosse pisoteado por uma manada de cavalos.
Não era a aura dela — ao menos não do tipo que ele conhecia. Havia uma força aguda no ar, algo que atravessava os poros como gelo invisível. Talvez fosse o vintei, talvez não. Aquilo parecia mais instinto do que magia. A presença dela reordenava o espaço ao redor, mas também desordenava algo dentro dele. Despertava memórias estranhas, sensações incompatíveis com seu próprio corpo.
Um fragmento de lembrança surgiu: uma dor entalhada no peito de alguém que não era ele — mas sentida com sua pele.
Ele engoliu seco.
— Está mudo agora, casca vazia? — disparou ela com desdém. Sua voz era doce como seiva, mas cortante como vidro. — Os outros ao menos sabiam morrer em silêncio.
As flores sob os pés de Milan se fecharam. As raízes estremeceram no subsolo. O vento deixou de acariciar e passou a empurrar. Milan deu um passo para trás — mas era como tentar recuar da própria noite. O jardim era ela. E ele, um intruso.
Ela o examinou como quem avalia uma peça defeituosa.
— Humano. E jovem demais para estar aqui. Um equívoco, talvez. Ou um erro proposital.
Virou-se, deixando que as forças naturais a movessem. As folhas recuavam ao seu toque.
— Eu devia transformá-lo em névoa. Ou deixá-lo apodrecer como os outros.
Milan permanecia em silêncio. Seu corpo ainda ardia com o peso do espírito do deus élfico. Pétalas negras ainda estavam coladas à sua pele — ardiam como brasas mudas.
— Mas já é tarde, não? — murmurou ela, sem olhar para trás. — Você tocou o que não devia. Agora verá o que os mortos veem.
Ela se virou. A grama farfalhou. Grilos cantaram. O mundo pareceu prender o fôlego.
Milan ficou tempo demais calado. Uma pergunta se debatia em sua garganta.
Era a primeira vez que se sentia assim. A beleza da mãe o encantava, sim, mas isso... isso era outra coisa. A beleza daquela garota rompia qualquer explicação racional. Tudo nela exalava mágica. Ela era linda — e isso parecia errado.
Seus lábios, vermelhos e cheios, se contraíram num bico. As sobrancelhas espessas se apertaram. Irritação. Talvez... talvez até embaraço?
Milan engoliu em seco, percebendo seu erro. Forçou a garganta.
— Quem... quem é você? — conseguiu perguntar, por fim.
Céus. Cildin o mataria por parecer tão patético. Seu pai, talvez, ficasse orgulhoso.
A jovem ergueu uma sobrancelha, impaciente.
— Que isso te importa?
Cruel. Fria. Linda.
Milan piscou. Ela fora rude. E ele quase deixou passar. Que direito ela tinha?
— Bem… isso... está certo. — disse, hesitante. — Pode me dizer, pelo menos, onde estou?
O quê? Que resposta ridícula foi essa? Parecia um pedinte na feira, um idiota. Ele enrubesceu. Havia imaginado um confronto digno... e saiu aquilo?
A menina bufou e virou de costas.
— Isso também não te importa. Só precisa saber que está muito, muito longe de casa. E não deveria estar aqui.
— Espere...
Ela parou e o olhou de soslaio.
— Sabe o que acontece com sementes que brotam no solo errado? — Seus olhos faiscaram. — São arrancadas. Ou esquecidas.
Milan inclinou a cabeça. Fazia tempo que não interagia com alguém. Desde Cildin — excêntrico, irritante… reconfortante.
Ele daria tudo para trocar essa sujeitinha por aquele elfo ranzinza.
Mesmo com algo invisível tentando moldar suas emoções, nada dava àquela menina o direito de tratá-lo assim.
Mas, curiosamente, uma bolha se formava em seu peito. Só de pensar em revidar, algo o prendia. Como se a própria ideia fosse inaceitável. Como se... ela devesse ser protegida.
O quê? Que pensamento era esse? Aquela sujeitinha estava fazendo algo com ele.
Concentrando-se, Milan canalizou sua orka, deixando a aura circular por suas veias. E então, emergiu.
Sua mente clareou. A névoa emocional que o envolvia se dissipou.
A força invisível que inclinava seus sentimentos recuava. Ele a podia anular com aura? Interessante.
Sua expressão se endureceu.
— Tanto faz. Pensa que quero estar aqui com você, sua medíocre? Apenas me diga como sair daqui pra eu não precisar mais olhar pra essa sua cara de peido frouxo.
Droga. Talvez tenha sido rude demais. Mas era como se todas as emoções que estavam reprimidas viessem de uma vez. Mas a avalanche emocional era demais pra conter.
Ela parecia surpresa. Boca entreaberta.
Ele temeu que fosse chorar. Já esquecera como era conviver com meninas.
Emma era cínica. Chorava por conveniência. Depois vinham tapas e chantagens infantis.
Mas essa garota...
Nada. Nem uma lágrima. Apenas… surpresa. Curiosidade.
Ela não era como Emma.
Era algo mais. Mais maduro. Mais antigo.
O canto de sua boca tremeu. Um sorriso?
— Faz sentido. — disse ela, enigmática. — Não há uma forma de sair daqui. Talvez não haja saída. Talvez este seja seu fim. Ou, quem sabe...
Ela virou-se outra vez, caminhando sem pressa. A grama se afastava. As sombras cediam. Como se ela mesma fosse uma sombra que evaporava.
— Ou então o quê, droga? Pode parar de agir feito uma velha cheia de enigmas? Fala como gente!
— Para alguém tão novo, você é bem desbocado.
Ele sorriu, afetado:
— E pra alguém tão pequena, você é bem arrogante.
Ela bufou. Ergueu uma mão — não em oferta, mas em direção.
— Quer sair? — o tom era irônico, quase zombeteiro. — O Labirinto é quem decide. Não eu. Não você. Conquiste algo. Perda. Dor. Lembrança. Talvez ele abra um caminho. Talvez te engula.
Ela se afastou. A grama cedia, os cipós se contorciam, as sombras a seguiam.
Era como uma sombra dissolvendo-se em si mesma.
O silêncio que se seguiu era espesso como seiva antiga. O tipo de silêncio que não pertence a este mundo — mas a outro, onde as coisas deixadas para trás continuam sussurrando.
Tempo passou, Milan fora incapaz de notar isso. Mas ele respirava com dificuldade. Não sabia se era o peso da conversa, a presença daquela garota ou o próprio jardim — o que quer que ele fosse.
Havia algo de errado com o ar. Era como se cada partícula estivesse viva, e observando.
De súbito, percebeu: o jardim havia mudado.
O céu, antes de um dourado crepuscular, agora oscilava num tom de púrpura enegrecido. As folhas, outrora verdes e úmidas, pareciam manchadas de tinta. O cheiro de terra fresca se tornava doce demais — enjoativo, como carne de fruta apodrecida.
E havia sons. Pequenos, quase imperceptíveis: galhos se dobrando ao longe. Grilos que cantavam uma melodia errada. Gotas que pingavam — mas não chovia.
Milan olhou ao redor.
A menina havia desaparecido. Não havia trilhas, nem passos. Apenas a grama voltando ao lugar, como se ela nunca tivesse existido.
Ele tremeu ligeiramente. Chega de esquisitices.
Mil tentou dar um passo, mas o chão parecia mais denso. Como se o próprio solo relutasse em deixá-lo avançar. A sensação era a de um sonho — ou um pesadelo — onde tudo tem lógica, mas nenhuma explicação.
"Conquiste algo", dissera ela.
Mas o quê?
O labirinto parecia escutar seus pensamentos.
As árvores começaram a se mexer. Lentamente. Deliberadamente.
Eram vinhas. Mas não como antes. Tinham espinhos — finos como fios de cabelo, afiados como navalhas.
Milan recuou. Seu coração disparava.
Havia enfrentado feras, soldados orcs, espectros do passado. Mas aquilo? Aquilo era uma mente — viva, pulsante, insondável.
Uma mente antiga.
E ele estava preso dentro dela.
Começou a correr. Não sabia pra onde — apenas corria. As folhas pareciam gargalhar. Os galhos se moviam para barrá-lo. O céu piscava. Uma sombra enorme cruzou acima dele — uma ave? Uma forma?
Não importava. Ele precisava se afastar daquele centro, daquela clareira onde a menina-lua o havia deixado.
Mas corria em círculos.
Sempre retornava ao mesmo lugar.
A clareira estava vazia. Mas havia algo novo.
No centro da grama, uma única flor.
Negra como a noite mais funda.
Ele se aproximou, hesitante.
A flor se abriu.
Dentro dela, não havia pólen. Nem perfume. Apenas uma gota de sangue.
Não sabia se era sua.
Não sabia se ainda estava acordado.
Mas, de repente, soube que aquilo era uma oferta. Ou um aviso.
Nada saía do labirinto sem deixar algo para trás.
A menina não dissera isso. Mas o jardim, sim.
O jardim falava em silêncio.
E ele começava a escutar.
Mil piscou, e nada já não era igual.
Ele agora se via sozinho, solitário.
A ausência dela era pior que sua presença.
Milan se deu conta disso lentamente, conforme os minutos escorriam sem rumo. A clareira continuava ali, intacta. Nada mudara — mas tudo estava diferente. O silêncio era o mesmo, mas agora era como um julgamento. O aroma das flores permanecia no ar, mas se tornara opressivo, doce demais. Como se o jardim o quisesse quieto. Contido.
Como se aquele fosse um lugar onde o tempo não passava, apenas apodrecia.
Aos poucos, ele notava os detalhes. Nenhum som vinha de fora. Nenhuma brisa fora aquele vento suave que o arranhava às vezes, como um sussurro com garras. Nem insetos, nem canto de ave. Apenas o pulsar lento de alguma coisa que não via.
Tentou falar. Uma palavra simples. Nada importante — apenas para ouvir sua própria voz.
Ela morreu em sua garganta.
“Não há saída.”
A frase veio, crua. Não como uma conclusão lógica, mas como uma lembrança.
Como se alguém já tivesse dito isso antes.
Como se ele tivesse esquecido que, naquele lugar, esquecimento era uma das regras.
Milan se levantou devagar. Cada passo parecia ser observado. Não por olhos, mas por uma expectativa silenciosa que pairava entre as folhas. Andou em círculo, as mãos nos bolsos, o olhar tenso. Contou os arbustos, memorizou o formato das árvores. Tudo formava um espaço contido, simétrico, minucioso — como uma cela feita de beleza.
Era um jardim, mas também um cárcere.
Não era apenas ansiedade. Era uma rebelião interna. Como se houvesse algo dentro dele que gritasse que aquele lugar não aceitava sua presença. Que ele era um intruso. Um erro.
E o jardim também sabia disso.
Ele tentou novamente encontrar uma saída. Não havia portais. Não havia trilhas. Apenas os olhos que pareciam estar escondidos entre as pétalas, assistindo em silêncio.
Milan encostou a mão numa árvore escura. Ela era quente.
Não quente como o sol — mas como pele.
Recusou-se a pensar no que isso significava.
Fechou os olhos. Respirou fundo. Quis gritar. Quis quebrar tudo. Quis implorar.
Mas, acima de tudo, quis que ela voltasse.
Não por confiar nela. Mas porque, no meio daquele silêncio, até a sua crueldade era melhor que o vazio.
Porque talvez esse fosse o desafio.
Talvez ele tivesse de sobreviver ao tempo sem tempo, à prisão sem grades. À indiferença das coisas que existem há tanto que esqueceram o significado da compaixão.
Ele se ajoelhou.
E então percebeu: o jardim não o odiava.
Apenas não se importava.
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