Volume 1
Capítulo 35: SEMENTE MURCHA
Havia uma espiral esculpida no chão, começando no sarcófago e se alastrando até as paredes. Milan pisava sobre ela. A cada passo, algo pulsava sob a sola — como se houvesse um coração enterrado ali, batendo. Ele não sabia se era o medo, o desgaste ou um resquício do sonho que carregava no sangue, mas podia jurar que alguém o observava dali de dentro. O tempo parecia ter sido exilado. A eternidade se encolhera naquele cômodo.
Uma rajada fria soprou das fendas. Algo dentro de Milan reagiu — inconsciente, inevitável. Do centro da palma, uma areia cinzenta chiou, se formou e espiralou, escapando por entre os dedos, vibrando como se repelida por algo. Um repuxo no abdômen. Um frio abstrato. Fraqueza. Sua energia era sugada abruptamente à medida que a areia chiava. O Fascínio, que Aedrin certa vez mencionara, emergia mais uma vez.
Ele tentou invocar sua aura, como quem deseja, em vão, apagar uma fogueira com o sopro. Mas sentiu apenas um baque seco no peito — como se a própria câmara se recusasse a deixá-lo acessar a Vontade. O Fascínio também escorria, como tinta em um rio sem leito. Ali, ele não era um guerreiro. Era um intruso.
Entrementes, a tampa do sarcófago exibia marcas — não de idade, mas de luta. Garras, talvez. Gritos silenciosos inscritos no mármore negro. Milan se aproximou sem querer, como se fosse puxado. Uma voz sussurrou — não em som, mas por dentro. Um lamento. Um riso torcido. Um comando que não vinha com palavras, mas com ausência. Aquela ausência que grita. “Ajoelhe-se”, ela dizia sem som.
Mas não era um comando, porque Milan não se ajoelhou. Era um instinto. E como se não pudesse resistir, ele caiu. Os joelhos cederam. A Espectro bateu no chão, sem força. O corpo de Milan tremia, mas não de frio. Era algo mais antigo, visceral. Uma vergonha ancestral. Uma dor herdada. Ele via imagens dançando à sua frente — campos de flores pisoteadas, torres em chamas, elfos de olhos vazios cantando ao redor de um deus sem rosto. Tudo queimava. Tudo chorava. Tudo pedia fim.
Era como na triste canção de Cildin. Naquela vez, ele sentira tudo: medo, raiva, dor, tristeza, ódio. Mães chorando e implorando pela vida de seus filhos. Homens que não se abaixavam, indo para uma guerra perdida. Anciãos chorando, rogando pelo lar despedaçado.
Agora ele via tudo. Era como se estivesse em casa. Flashes, lapsos. Momentos impossíveis de serem apagados, perdidos no rio do tempo e da dor.
Mas não era só ele ali.
Abaixo do sarcófago, ele ouviu algo arranhando. Algo cavando. Algo subindo. O mármore tremeu, e uma rachadura abriu-se do topo à base, como uma boca se escancarando num grito mudo. Milan recuou, engatinhando, a Espectro na mão suada. A areia cessara seu fluxo. O chão rangeu. As paredes começaram a chorar um líquido negro. E então, de dentro da fenda, surgiu uma mão.
O braço que emergiu das fendas não era feito de carne. Era poeira presa em forma. Tecido da memória. Daquilo que já foi. Uma construção da aura esquecida.
O frio não vinha do chão, mas de dentro. Como se os ossos tivessem sido mergulhados num rio morto. Ele tentou respirar — e o ar veio denso, antigo, carregando poeira de eras que não deveriam mais existir.
O sarcófago estremeceu. Mas não se abriu.
Do vazio ao redor, começou a brotar um vulto — aos poucos, sem pressa, como se nunca tivesse deixado de estar ali. Moldado em poeira e sombra, erguia-se com a solenidade de um rei que já não governava nada. Não caminhava. Apenas se erguia. E à medida que seu semblante desfeito pelo tempo se revelava, Milan compreendia: não havia vida ali. Não era um monstro. Nem um morto. Era pior, quem sabe.
Um fragmento de divindade, corroído pela eternidade.
Deslizava. Não olhava. Observava tudo.
Milan recuou, mas não havia saída. Cada passo o levava de volta ao centro. O vulto não falava, não ameaçava, não julgava — era a personificação da indiferença que o tempo tem pelos vivos. E então, com um gesto lento e inevitável, ele se inclinou sobre Milan... e o atravessou.
Um mar de pétalas negras se ergueu em espiral, girando em torno do rapaz, cortando sua pele sem sangue, afogando seus olhos com imagens.
Uma guerra distante. Um trono partido. Elfos ajoelhados em silêncio, com as bocas costuradas. Um amor proibido. O fogo. A ruína. A promessa não cumprida.
Quando Milan caiu de joelhos, já não sabia mais onde começava ou terminava. O peso das lembranças que não eram suas o empurrava para o chão. Quando ergueu o rosto, o vulto já havia desaparecido. Restava apenas o sarcófago... e o eco de algo imensurável.
Tantas visões, tantas lembranças, memórias partidas, selos rompidos. Tudo se misturava na mente de Milan, e uma pessoa comum teria quebrado, enlouquecido. Mas Milan não.
Ele conseguia ver particularidades aqui e ali, conseguia juntar A e B. Formar os quebra-cabeças. Partes perdidas ou faltando — tudo iria fazer sentido.
E ele conseguia, em parte, por ser um recém-desperto. Em outra, pela natureza onírica de seu Primor. Sua capacidade de entrar nos sonhos o elevava nesse pequeno nicho de seres capazes de não sucumbir diante da revelação.
Porque tudo era um só: lembranças, memórias e sonhos. Milan foi perspicaz ao notar isso. Agora que compreendia essa pequena parte de si mesmo, não seria tão fácil de se partir — pelo menos mentalmente.
Mas era como lera certa vez: a ignorância é uma dádiva. Cada vez que sabia mais, queria saber menos. E isso doía sua cabeça, porque havia muitas coisas em mistério. Coisas que ele não entendia — nem sabia se poderia entender. Especialmente aqueles sonhos com finalidades futuras. Ele os distinguia também.
O peso das lembranças que não eram suas ameaçava parti-lo em lapsos inquebrantáveis. Mas não aconteceu. Quando ergueu o rosto, o vulto já havia desaparecido. Restava apenas o sarcófago... e o eco de algo imensurável.
Uma verdade dura. Um passado sombrio. Um futuro horripilante. Um presente incerto.
Olhando ao redor, era como se o próprio labirinto tivesse mudado com o contato. Os nichos, antes abertos e vazios, haviam sido selados por pedras.
No outro extremo, uma nova passagem se abrira na rocha. De dentro, um som sutil de folhas balançando convidava Milan a olhar.
Tudo dizia para não seguir o caminho. Mas era isso ou morrer naquela câmara esquecida — a outra passagem fora bloqueada.
Um cheiro doce, impossível de ignorar, como flores num lugar onde a luz nunca tocou. Sua barriga roncou.
Milan seguiu. Sem espaço para erros.
Caminhou por corredores estreitos de pedra bruta até encontrar uma nova câmara, mais baixa, mais íntima.
Ali, um jardim florescia. Flores de diversos tons. Uma explosão de cheiros.
Um límpido córrego deslizava pelo jardim, serpenteando em torno de uma árvore alta, de tronco torto, com copa que roçava o teto abobadado.
Dela pendiam frutos vermelhos, chorando âmbar. Milan podia jurar sentir o gosto doce no ar. Numa raiz alta e protuberante, que se erguia à maneira de um banco à beira do córrego silencioso, uma figura etérea — saída dos contos de fadas mais antigos — cantarolava, balançando as pernas na água.
Seus cabelos, longos demais para serem naturais, pendiam nas costas como se sempre estivessem submersos. Eram da cor da madeira antiga, com reflexos de cobre.
Sua voz, doce e melodiosa, parecia uma harpa dos deuses, tonificada e angelical. Mas então parou abruptamente. Ela se virou, e um cenho duro se formou ao fitar Milan.
— Que faz aqui, semente murcha?
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