O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 34: BRASA NO VAZIO

O rasgo escuro na rocha pulsou. Respira. Como se a floresta o tivesse parido ali, esperando que voltasse para o ventre — ou para o túmulo. Não há outro caminho. Ou melhor, há, mas todos levam à morte por inanição. Esta, ao menos, é uma escolha.

 

Ele hesita. Os pés afundam na lama. O corpo treme.

 

O ar ao redor da fenda não é só frio — é velho. Antigo. Como se não houvesse sido tocado por luz ou som em eras. Cada gota que escorre da pedra ecoa como uma acusação. Mil sente a presença de algo ali dentro. Não o observa, mas o conhece. O reconhece.

 

E mesmo assim, entra. Há coisas demais em jogo.

 

Passar por entre os cipós que cobrem a entrada exige esforço. Eles se prendem à pele, aos cabelos, como dedos que não querem deixá-lo ir. Ao cruzar o limiar, é como se o mundo lá fora desaparecesse — engolido.

 

Lá dentro, o ar é espesso. Tem gosto de metal antigo e carne úmida. A escuridão é densa, material. Não é só ausência de luz. É presença de algo que devora a luz.

 

Mil respira fundo, o som ecoa como se não tivesse fim.

 

Ele não vê. Ele sente. As paredes úmidas. O chão que pulsa com umidade. A caverna não é feita de pedra, mas de algo mais orgânico. Pulsante. E o vintei aqui é estranho — desorganizado, fragmentado, como ecos de algo que já morreu, mas não partiu. É um organismo vivo. 

 

A caverna desce.

 

Milan segue. Passos pesados, vacilantes. Às vezes de quatro, às vezes apoiado nas paredes. Em algum ponto, ele percebe que já não sabe quanto tempo passou lá dentro. Os caminhos bifurcam, depois se retorcem. Às vezes ele retorna ao mesmo ponto. Outras, pensa reconhecer as marcas que ele mesmo deixou — mas invertidas.

 

Ele está sendo testado. Ou caçado.

 

E o silêncio começa a falhar.

 

Ao longe, um rangido. Depois, algo que arranha — pedra? Osso? Garras? Um som seco, repentino, que para tão rápido quanto começou. Como se alguma coisa estivesse esperando ele se mexer para fazer de novo.

 

Mil se agacha. Respira. O vintei aqui está mais agitado. A parede diante dele pulsa. Há umidade, mas também um calor vindo de algum lugar mais fundo. Um sopro quente e fétido, como hálito vindo de bocas grandes demais.

 

Ele decide não parar.

 

Os corredores se apertam. Por vezes, Mil rasteja. Umidade escorre pelo pescoço. Algo gruda em sua mão. Quando tenta se livrar, percebe que era uma teia. Mas não de aranha.

 

Mais grossa. Mais viscosa. Mais… viva.

 

A claustrofobia cresceu. Ele se forçou a não gritar. A não correr. Mas quando uma corrente de ar sussurra em sua nuca, ele desaba em passos trôpegos. Avança por impulso. As pernas doem. Os olhos ardem. A mente começa a pregar peças — de novo.

 

Mas há um som novo. Respiros. Suspiros.

 

Não os dele.

 

Um fôlego pesado. Rítmico. De algo grande.

 

Mil para.

 

Nada.

 

Silêncio.

 

E então — TUM.

 

Um baque. Algo caiu. Próximo. A pedra vibra sob os pés.

 

Milan começa a correr. O ar é rarefeito. A dor no peito ressurge, mas ele corre. Escorrega, bate o ombro numa parede viva, cheia de algo que range. Grita. Tropeça. Quase cai numa fenda.

 

Mas se segura.

 

Do fundo da caverna, uma luz pálida, azul-esverdeada, começa a pulsar. Um vintei antigo. Sufocado. Como se preso por eras. E Milan é puxado por essa presença.

 

Ele se arrasta até uma câmara aberta.

 

E lá, respira. Por um segundo.

 

Até perceber que há corpos.

 

Vários. Antigos. Esfolados, empilhados nas laterais, como oferendas. Os ossos limpos, mas ainda úmidos. Tecidos enegrecidos. Unhas cravadas nas paredes. Mil se vira para sair — e então ouve.

 

Arrastado. Algo lento, metódico, atrás dele.

 

Ele se vira.

 

Nada.

 

Mas o fedor piora. Como se algo houvesse acabado de exalar sua presença, e agora… estivesse próxima demais.

 

Mil recua.

 

E então, a criatura surge.

 

Não por completo. Só olhos — vários, pequenos e amarelados, espiando pelas fissuras da caverna como sementes podres em carne viva.

 

Milan caiu num ninho. De repente ele entende quase tudo.

 

Eles se aproximam.

 

E então — garras.

 

Uma delas se projeta como flecha, e Milan se esquiva por pouco. Ela crava no chão, abrindo um rasgo.

 

Ele corre.

 

E agora a caverna se mexe com ele. Ele não está mais vagando. Está fugindo. Está sendo conduzido.

 

Por onde passa, sente que algo observa. Criaturas que sussurram em idiomas antigos, distorcidos. Sombras que não acompanham a luz, mas a antecedem.

 

Ele luta para se manter acordado. Para não ceder à vertigem, à vontade de deitar e aceitar. Mas quando a segunda criatura surge — um amálgama de mandíbulas e espinhos —, Mil grita e ataca.

 

Usa a Aura. Fraca, sim. Mas é tudo que tem.

 

Golpeia. Gira. Se esquiva. Um golpe o pega no flanco, e ele sangra. Mas segue. Chuta uma pedra. Reage. O corpo dói, mas responde.

 

A criatura recua — surpresa com a resistência.

 

Mas há mais. Sempre mais.

 

E Milan sabe: ele está dentro. Dentro demais. Não há volta. Só a frente.

 

E a frente guarda monstros. Ou, pior — segredos.

 

Mas não é hora de se arrepender. E ele tem que se lembrar: nada aqui é coerente. Nada aqui funciona de modo coeso. Tudo está contra ele. O ambiente, o habitat, as criaturas. Ele é o intruso ali.

 

Há mais… sempre há mais. 

 

Duas… três… agora cinco pares de olhos o cercam. As paredes da caverna vivem, e delas escorrem as criaturas — deformidades de carne e osso, remendadas por fome e tempo. Nada ali nasceu. Tudo foi feito. Ou corrompido. Ou sou o próprio sistema defensivo da floresta. 

 

Uma unidade pulsante. Um grande organismo vivo. E ele é a doença que aflige. O vírus, a febre. Os anticorpos trabalham.

 

Milan recua, sangue nos lábios. O corpo pulsa com dor. A Aura reage — fraca, mas viva —, e ele a usa. Um brilho tênue envolve seu punho. Ele ruge e desfere um golpe contra a criatura mais próxima, esmagando parte de sua mandíbula exposta. Um baque, um grito distorcido. A coisa recua, mas não cai.

 

Ele gira, desfere outro soco, uma sequência. A força é bruta, animal, alimentada por medo. O tipo de medo que faz o sangue ferver e a alma se contorcer.

 

Por um instante, ele pensa que pode vencer.

 

Mas a ilusão quebra quando o segundo monstro o acerta pelas costas — uma garra como uma foice, que rasga o tecido e morde sua carne. Milan grita, cambaleia. Sangue escorre.

 

A terceira criatura salta.

 

Ele se esquiva por instinto, mas a perna cede. Ele cai. Ofegante. Suado. Tonto.

 

Elas o cercam.

 

A boca de uma delas se abre em quatro, revelando fileiras de dentes finos como agulhas. As demais rosnam, guincham, salivam. Não há honra. Não há pacto entre predadores. Há apenas fome.

 

Então ele junta a última peça. De repente não é que eles se escondam ali. É a floresta que os prende. Sem poder sair. Sem acesso ao mundo. 

 

Porque essas criaturas se enviesam de tudo o que a floresta representa. Não há coordenação. Há fome. Há desespero. Ganância, rugindo e promulgando feito um rio jorrando. Incontido. Letárgico. 

 

E quando Milan acha que é o fim… elas se atacam.

 

O grito que rasga a caverna não vem de Milan, mas de uma das bestas sendo mutilada por outra. Garras se chocam. Dentes arrancam pedaços. As criaturas se engalfinham numa luta desesperada. Um frenesi. Um banquete prematuro.

 

Mil vê a abertura.

 

Ele corre. Ou tenta. A dor é tanta que rasteja. Escapa como um verme, como um rato. O som da luta atrás dele é um trovão grotesco — ossos partindo, gritos, carne sendo dilacerada.

 

Mas ele não olha para trás.

 

As forças o abandonam, e ele escorrega numa curva da caverna. O chão cede. Um vão oculto. Um buraco.

 

Ele despenca.

 

O vento uiva nas paredes ao redor. A queda parece não ter fim. O corpo gira, tomba, choca-se em saliências, até que o impacto o engole.

 

Tudo escurece.

 

***

 

Quando acorda, o silêncio é absoluto.

 

Não o mesmo silêncio de antes — este é outro. Mais profundo. Mais... morto. Há uma profunda realização neste silêncio.

 

Mil se arrasta, arfando, tateando o chão. Está sobre um piso frio e liso. Pedra antiga, polida. Quase cerimonial.

 

A caverna mudou.

 

Não é mais viva, pulsante, orgânica. É esculpida. Simétrica. Como se tivesse sido moldada por mãos hábeis, em tempos esquecidos.

 

Há inscrições nas paredes. Brilham suavemente com um azul espectral. Símbolos incompreensíveis, antigos demais para que Milan compreenda, mas ainda familiares como se pertencessem a um sonho repetido por gerações. Isto é… algo antigo. 

 

Milan reconhecia esses símbolos. Era… o luen antigo, dos elfos. Ele sempre teve muita predileção para ela, mas tudo mudou quando Cildin o ensinou o alfabeto luen, e ele viu algumas verossimilhanças com o aloin. 

 

Ele passou os dedos calejados e rasgados pelas runas cintilantes, sentido um viés de nostalgia.

 

Adiante, no corredor de teto arqueado, uma porta de pedra. Rachada no centro. Entreaberta.

 

Ele caminhou, mancando um pouco. Seu peito urrou de dor, e alguma coisa quebrou dentro. Mil analisou a porta… a pedra era tão antiga quanto a própria palavra. Ele sentia no seu vintei. 

 

Passando por ela, entrou numa cripta.

 

Uma sala circular. Nas paredes, nichos de meia altura repletos de desenhos interiores se despargiam. Vazios. No centro, sobre um altar de mármore negro, repousava um sarcófago. Revestido com placas de ouro branco, coberto por musgo e inscrições em runas profundas. Ao redor, estátuas com rostos sem olhos, apontando para o caixão.

 

E acima, no teto abobadado da câmara… uma pintura desbotada.

 

Um ser de asas rasgadas. Com a cabeça coroada de espinhos vivos. Rodeado por seres de luz… elfos ajoelhados, enquanto dele jorravam folhas negras e estrelas partidas.

 

Não era um elfo, tampouco um ser simples… um deus antigo.

 

Milan se aproximou do sarcófago. Cada passo doía. A Aura se agitou — não em alerta, mas em reverência. Algo aqui ecoou em sua alma. Em sua dor. Ele de repente sentiu na pele as palavras de Cildin. A raiva a muito esquecida…

 

O túmulo respirava. Ainda. Ou talvez fosse sua mente. Ou os ecos de algo que aguarda há milênios por… um toque.

 

Ele estendeu a mão.

 

E o ar à sua volta se partiu.

 

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