O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 33: A PROMESSA QUE NÃO ALIMENTA

Milan está exausto. Faminto. Em ruínas.

 

Semanas se passaram, e embora a vontade de viver ainda pulse como uma brasa teimosa, alimentada pela lembrança da promessa que fez, ninguém sobrevive apenas disso.

 

Palavras ao vento não sustentam ossos. Promessas não enchem estômagos. Cinzas, por mais que dancem em espirais no escuro, não aquecem o sangue.

 

Aqui, no ventre desta realidade crua — negra e esverdeada como carne podre —, a luz não alcança mais. Só chove. E quando as últimas gotas cessam, um nevoeiro espesso rasteja por entre os troncos, engolindo tudo.

 

É o modo da floresta de encurralar Mil. Ela escutou sua recusa. Agora, quer matá-lo de fome.

 

Mas pelo menos chove. De vez em quando. E, com isso, a sede morre antes dele.

 

Só que ele tem que reagir… não, ele deve.

 

A promessa pulsa, fervendo feito o sangue da Besta. Ele se lembra: há coisas demais para que desista agora. Milan, apesar da pouca idade, mantém essa força inquebrantável, duradoura — mesmo que vã.

 

Não há mérito em resistir. A morte anseia por ele. O solo vibra, se revira, quase grita. A floresta o quer, mas Milan recusa. Ele protesta.

 

Então, eis sua punição.

 

Justa uma ova.

 

É hora de reagir.

 

O primeiro movimento é levantar o braço. Mas o braço não obedece.

 

Dias sem comer. Noites sem dormir. A luta contra a Fera deixou mais que feridas — deixou ecos. Deixou marcas que sangram por dentro.

 

O estômago dói. A cabeça lateja. Até respirar se tornou um desafio.

 

Mas ele tenta. Não para sobreviver — isso já virou palavra oca. Ele tenta porque desistir seria mentir para a promessa. E porque desistir seria aceitar o que essa força espera dele. Ou assim ele pensa.

 

Milan é jovem, imaturo, e carrega a visão de que tudo está contra ele. Uma visão não sem motivo. Mas precoce, contudo.

 

Mas tem a promessa.

 

E a promessa, mesmo distante, mesmo quase apagada, ainda pulsa como brasa sob o gelo.

 

Milan rola para o lado. Engole a lama espessa. Tosse. Com os braços trêmulos, se arrasta até a raiz de uma árvore e ali permanece, olhando o nada.

 

Dias assim se repetem. A floresta já não manda feras. Ela apenas espera que ele apodreça por dentro — para então mandar flores.

 

Mas ele vê isso como mais um teste. Mais uma maneira de se pôr à prova.

 

Quando consegue ficar de pé — por um segundo apenas — vomita. Depois ri. Baixo. Um riso sem som.

 

E cai de novo.

 

Mas então tenta outra vez.

 

 

***

 

 

É nesse estado miserável que o treinamento começa.

 

Não há glória nisso. Não há força. Só teimosia. Primeiro, ele reaprende a andar. Depois, a socar o ar. Cada movimento é um insulto à dor, um desafio à morte.

 

Mas a mente — a mente não obedece.

 

Quando finalmente consegue executar três flexões sem desmaiar, as visões voltam.

 

Pétalas negras. Sussurros vindos da própria terra. A ave observando do alto, imóvel. Alguém chorando. Ele? Emma? Já não sabe.

 

E então, sem perceber, está em outro lugar. O solo virou vidro. Os troncos, espirais retorcidas. Um vulto corre adiante — e é ele mesmo. Mas mais velho. Ou mais novo. Ou mais morto.

 

Quando desperta, está com os joelhos no chão. Sozinho. Com a areia cinza escorrendo pelas mãos.

 

Ela queima como ácido. E no entanto... parece viva.

 

Tum.

 

Milan se sobressalta, suando frio.

 

Há um breu reconfortante adiante. O silêncio é bem-quisto. Ele faz com que Milan não pense em mais nada. Ele exige atenção.

 

O silêncio e o escuro são companheiros destruidores. É nessa hora que a mente prega peças — e Mil já está cansado da sua.

 

Muito tempo se passou. O escuro é a única certeza dele agora.

 

Ele mantém o ritmo. Às vezes se arrasta, às vezes tropeça. Bolhas estouram e calos se formam a cada passo pesado, mas Mil encontra conforto na dor — pois é nela que consegue afastar as alucinações.

 

As visões.

 

Quem disse que seria fácil?

 

Nunca foi. Não desde que ele precisou crescer. Desde que os demônios tomaram forma.

 

Mas se há alguém que o força a continuar, é sua irmã. Seus pais… agora, apenas uma reles memória embaçada.

 

Milan tropeça numa raiz alta e cai de cara numa poça, lutando para se levantar. Seu corpo é fraco. Se não se esforçar, vai se afogar.

 

Mas o corpo não responde. Ele tenta se erguer, mas a gravidade cumpre seu papel. Ele cai de novo.

 

Belo jeito de morrer.

 

Milan inclina para frente e cai numa breve pirueta, se ensopando todo. Sua cabeça se recosta na raiz protuberante, enquanto luta por ar. Os pulmões latejam, arqueiam, protestam.

 

É um mar de dor — como se mãos finas e de unhas longas arranhassem seu órgão. O comprimisse, impedindo o ar de entrar.

 

Mil pensou que seria assim, então. Mas nada é tão doloroso quanto beber sangue em forma de ferro líquido. A dor é excruciante.

 

Ele apaga. Acorda. Dorme. Não sonha. Pesadelos.

 

Neste, ele é um cavalo robusto, correndo por uma ravina cheia de flores brancas e musgo baixo. Uma égua o espera do outro lado. Branca, de tranças prateadas e olhos vivos… inteligentes. Ela relincha e empina.

 

O céu se abre, e o sol surge.

 

Milan acorda. A floresta uiva, e um vento quente embaraça seus cachos ondulados. Ele ainda está sobre a poça, e passaram-se sabe-se lá quantas horas. Isso não importa.

 

Ele se arrasta e se prostra sobre a água, papando-a feito um animal selvagem. A sede é morta.

 

Mil observa os arredores. A dor já não é latente, embora se mover ainda seja uma luta constante.

 

Não há nada aqui, exceto árvores de tronco grosso e retorcido, folhas negras de veias pulsantes. Raízes nodosas e altas. Um rasgo entalhado no sopé de uma rocha, escondido entre árvores e cipós enredados.

 

Seu sangue esfria. Ele sabe: é um chamado tolo. A floresta está brincando com ele.

 

Mas seu orka não se regenera com facilidade — Milan não medita mais. Tampouco mantém sua mente livre das próprias culpas.

 

Não há um controle adequado da Aura. Sentir o vintei já é um esforço. Mas está lá. A presença das forças inanimadas.

 

Há vida aqui — ainda que o fio que liga Mil aos vintei seja diferente do que o liga aos dontei.

 

O fio de vintei é fino, claro, natural. Como tudo que representa: ar, terra, água, fogo, pedras, musgo.

 

O dontei é algo mais espesso, grosso, uniforme… vivido.

 

E várias centenas se formam, oriundas do peito de Mil para… a boca da caverna.

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