O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 32: AS CINZAS DE UM JURAMENTO

A criatura já não estava lá. A dor ainda pulsava, mas havia cedido lugar a algo mais sutil.

Silêncio. Não o mesmo de antes.

Agora era um silêncio cansado, como o de uma terra que acabara de parir um segredo e precisava repousar.

Milan se arrastou para longe das pedras partidas, sem saber se fugia de algo real ou apenas do peso do que sentira ali. O corpo não tremia mais, mas havia uma rigidez nova em seus membros — como se algo dentro dele estivesse acordando aos poucos… e exigindo espaço.

A floresta parecia ter recuado. Ainda torta, ainda sufocante — mas menos atenta. Como se o que quer que o estivesse vigiando tivesse perdido o interesse. Ou apenas ido embora.

Ele andou por horas sem saber o rumo. O céu era um teto escuro, a terra um corredor de raízes e musgo, e o tempo… uma mancha.

Às vezes, ouvia vozes. Não com os ouvidos. Com a pele. Sussurros na nuca. Palavras sem língua, que ardiam como vento quente.

“Continue.” “Volte.” “Suba.” “Durma.”

Ele ignorava todas. Até que não pôde mais. Porque a floresta acabou.

Sem aviso.

Um único passo, e as árvores se abriram como uma cortina empurrada por mãos invisíveis.

Diante dele, um campo seco se estendia. Árido, rachado, cinzento. O céu ali parecia mais alto, mais velho. E o vento… o vento retornava — mas não como alívio. Trazia poeira e cheiro de ossos.

No centro do campo, havia algo.

Uma estrutura de pedra, baixa, com degraus corroídos pelo tempo, afundada na terra como se tivesse sido esquecida por eras.

Milan hesitou. Mas seus pés não.

Subiu.

Lá em cima, só havia um círculo de pedras e, no centro dele, uma pequena fogueira morta. Mas o que chamou sua atenção foi outra coisa.

Uma máscara.

Simples, de madeira escurecida. Sem adornos. Sem olhos. Apenas um corte horizontal no lugar da boca.

Milan não sabia por que, mas ajoelhou-se diante dela.

Não por respeito. Mas por instinto.

Algo dentro dele reconhecia aquilo. Não como memória, mas como eco.

O vento parou.

E, por um instante, o mundo pareceu inclinar-se levemente em sua direção.

A máscara vibrou.

Não com som. Com presença.

E então, ele viu.

Não como antes. Não com os olhos. Não com os sonhos. Mas com algo mais profundo — como se a própria terra tivesse respirado através dele.

A luz ao redor escureceu. O campo sumiu. As rachaduras sob seus pés se fecharam, e o mundo foi engolido pelo nada.

Uma sombra desceu do alto.

Sem forma. Sem corpo. Um véu vivo, um manto escuro que ondulava como fumaça presa entre os planos. E no centro, pairando dentro do vulto, havia um único olho.

Branco. Sem pupilas. Sem vida — mas ciente.

Ele não falou. Mas Milan viu.

Não tudo. Apenas fragmentos.

Um mar em convulsão.

Ruínas aos pés de uma torre caída. Almas dilaceradas por algo que não tinha nome. E atrás dele, seis figuras encobertas por sombra. Algumas familiares. Outras, distantes como destinos não vividos. Mas todas ligadas… pelo mesmo fardo.

Tum.

O som não ecoou. Respingou dentro dele. Como sangue quente. Como um nome esquecido sendo sussurrado no útero do tempo.

Milan caiu de joelhos. Mas não chorou. Não gritou. Não fugiu.

Ele apenas sentiu.

E entendeu.

 “Você precisa aprender.”

A sombra se dispersou como poeira no vento. O olho sumiu. A visão se foi.

E a máscara diante dele… se desfez em cinzas.

Mil permaneceu ajoelhado por um longo tempo. O silêncio voltou — não o mesmo. Mais profundo. Mais comprometido. 

O mundo não exigia mais que ele fosse forte.

Agora, exigia que ele soubesse.

Soube, então, que não encontraria o Rei Onírico apenas caminhando. Não bastava buscar. Teria que ser achado.

E para isso… Precisava treinar. Dominar a si mesmo. Dominar o que o atravessava.

Não pelo poder. Mas porque o mundo que o esperava… iria matá-lo se ele não o fizesse.

Ainda assim, o desejo mórbido e sombrio pulsava em seu âmago, uma fria lembrança do que ele vinha se preparando, do que ele faria a seguir. Mil não iria abandonar tão facilmente seu caminho… e se sentiu tolo por pensar assim, mesmo que por segundos. 

Talvez estivesse alucinando demais, vendo coisas demais, era natural após tanto tempo sem comer, com as visões que vinha tendo. Mas tudo isso beirou o ridículo, contrariando o que ele havia decidido antes. 

Mil não duvidava do que vira, mas era claro o que acontecia aqui. A floresta estava viva, e mandava um lembrete explícito para ele. Milan não daria a miníma. 

O sol não voltava.

Ou talvez nunca tivesse estado ali.

Milan ergueu-se devagar, sentindo o corpo como uma carcaça que não lhe pertencia por completo. Os músculos doíam de forma nova — não por esforço, mas por adaptação. Era como se cada passo feito a partir dali precisasse reaprender o próprio peso.

As cinzas da máscara dançavam ao vento, mas nenhuma se depositava sobre ele. Flutuavam ao redor, contornando-o como se respeitassem a gravidade daquilo que havia sido testemunhado.

Ele desceu os degraus com cuidado. Não por receio. Com certeza não por reverência.

O campo atrás dele não murmurava mais. Não havia som. Não havia vento. A própria terra parecia conter o fôlego, como se aguardasse o que ele faria em seguida.

Milan não olhou para trás.

Seguiu por uma trilha inexistente, cavando passagem entre galhos secos, mato alto e pedras rachadas. A floresta retornava aos poucos — mais escura agora, e mais funda. As árvores inclinavam-se sobre ele como os corredores de um templo antigo. Havia fungos nas raízes, líquens nas folhas, e o ar pesava com o cheiro de terra molhada e promessas velhas demais para serem lembradas.

Cada passo era um protesto do corpo. Mas ele ia.

Não com pressa. Não com certeza. Apenas com necessidade.

Durante o percurso, começou a reparar em coisas que antes não via. Um símbolo entalhado em um tronco. Três riscos, um círculo quebrado, e um traço oblíquo cortando tudo — como um olho esquecido, ou um aviso.

Bela maneira da floresta tentar entrar em sua mente. Mas não funcionaria.

O embate com A fera efervescente lhe deixou algo claro: ainda era fraco, e não queria saber de chamados da floresta e visões sobre o futuro ou passado. Toda essa merda havia começado aqui, e ficaria aqui, sem espaço pra erro. Sem margem pra descanso.

As visões eram uma distração. As respostas, uma armadilha. O único caminho que fazia sentido agora era o do punho fechado, da mente afiada, do sangue no punho e no chão.

Milan sabia que, se cedesse mais uma vez, se ouvisse mais uma voz, cairia no mesmo ciclo dos que se perderam tentando entender demais.

Ele não queria entender.

Queria vencer. Queria sobreviver. E depois… queria destruir.

Não o mundo. Mas o que fizeram com ele.

A floresta podia tentar mostrar seu destino. Ele forjaria o próprio.

Mesmo se fosse preciso fazer isso com os ossos de quem tentasse impedi-lo.

Por que sabe de uma coisa…? Ele iria destruir cada um dos que se opusessem, porque o ódio dentro dele bradava para a fraqueza que se sobrepunha. 

Porque estava cansado de ser fraco. E cansado de chorar. E de reclamar. Cansado de mendigar sentido a um mundo que só lhe dava dor. 

O mundo se curvaria… ah, como se curvaria. E o doce amargo da vendeta — esse, sim — ainda seria sentido. 

Profundamente.

Por todos. 

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