O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 31: PELE MORTA, ALMA VIVA

 O mundo estava em silêncio.

Não o silêncio da paz, mas o silêncio que resta depois do grito — quando até o som tem medo de voltar.

Milan despertou lentamente, os olhos presos no céu fechado. Nenhuma luz atravessava a copa das árvores. A chuva havia cessado, mas o ar ainda pesava como se estivesse prestes a desabar outra vez.

Seu corpo doía em camadas. A carne, costurada de forma grotesca pela banha da criatura, agora exibia cicatrizes duras, grossas, espalhadas feito raízes em carne exposta. Cada uma contava uma dor, uma falha, uma sobrevivência.

Respirar puxava o cheiro de lama, sangue seco e carne queimada.

Mas o que mais doía... era o silêncio.

Por dias, ele lutou para não morrer. Agora, vivo, não sabia exatamente o que fazer com isso.

Quando se levantou, suas pernas vacilaram. Caminhar era um ato mecânico — cada passo sustentado por uma teimosia muda.

Ele encontrou a poça. O reflexo ali era estranho. A água, antes limpa pela chuva, agora tremia mesmo sem vento.

Milan se ajoelhou e encarou sua imagem.

Por um instante... não era seu próprio rosto que via.

Era o contorno branco de uma ave parada, imóvel, os olhos vazios como se o olhasse de dentro da água.

— …

Ele piscou. Imagem desfeita. Só sua própria expressão decrépita permaneceu. E atrás dela, o corpo coberto por marcas…

Era quase irreconhecível.

Não sentia fome. Nem sede. O corpo ainda queimava por dentro, febril, mas não o suficiente para quebrá-lo.

Ele tocou o peito, onde antes estivera a ferida profunda. A pele ali era estranha. Rígida. Lisa demais. Morta demais.

Era uma cicatriz, como todas as outras. Mas essa doía de um jeito diferente.

Um arrepio atravessou sua espinha.

A floresta estava quieta demais. Nenhum animal ousava se aproximar do cadáver gigante da criatura morta. Nem urubus. Nem insetos. Apenas vermes.

Algo — instintivo, primordial — os afastava.

Milan não conseguia decidir se isso era bom.

Quando tentou dormir de novo, viu.

O mar de almas voltava, mas agora estavam inquietas, se agitando em círculos cada vez mais fechados.

A ave pousava sobre elas, os olhos brancos como antes…

E ao longe, o som abafado de um tambor ecoava uma única batida.

Tum.

Milan acordou suando, o som ainda reverberando em seus ossos.

Por um instante, se perguntou se havia mesmo acordado.

Mas ali estava ele.

Na floresta. Sozinho. Coberto de marcas. Vivo.

— Isso devia ser suficiente… — murmurou. Sem saber se acreditava.

Não havia outro caminho. Outra escolha. Ele caminhou.

Os pés afundavam no barro, e a mata fechava a cada passo. Troncos se arquearam em ângulos impossíveis, como colunas tortas de um templo esquecido. Os galhos se entrelaçavam acima dele, trançando sombras tão densas que era impossível distinguir onde começava a noite ou terminava o dia.

A floresta não era plana. Ela descia — lenta, mas constante — num declive irregular e traiçoeiro. A gravidade parecia puxá-lo, como se o coração do mundo pulsasse sob seus pés, chamando-o para dentro da terra.

Milan já não sabia se andava porque queria ou porque era arrastado por algo maior que ele. Talvez somente o desejo de continuar o mantivesse em riste. 

A cada metro, os sons da vida se perdiam. Nenhum chilrear, nenhum estalo de folhas. O silêncio voltava, mais grosso, mais próximo. Um silêncio que escutava.

Ele passou por árvores com marcas profundas em seus troncos — como garras. Algumas estavam vazadas por dentro, ocos que pareciam bocas abertas, mas nada saía dali. Outras tinham fungos crescendo em formas quase simétricas, formando espirais pálidas ao redor da casca.

Uma delas exalava um cheiro adocicado demais, podre demais.

Milan passou rápido por essa.

Os galhos começaram a ficar mais baixos, e folhas grandes, com nervuras negras, roçavam seu rosto. Espinhos escondidos o arranhavam como dedos impacientes. A umidade era tamanha que parecia chover de dentro da floresta — gotas pesadas escorriam do alto, mas nenhuma vinha do céu.

A névoa surgiu devagar. Primeiro como um véu, depois como uma presença. Ela não flutuava… rastejava. Colava na pele como suor gelado.

Milan sentia os olhos pesarem, como se algo estivesse observando, escondido sob o musgo, por trás da névoa.

Ele não parava. Não por coragem, mas porque parar significava ouvir.

E ouvir significava lembrar.

Lembrar da batida.

Tum.

O som veio outra vez, abafado, como se o chão tivesse pulmões e respirasse fundo. Milan parou por um segundo, os olhos arregalados.

Mas foi só isso.

Um segundo.

Continuou.

Mais à frente, uma clareira começou a se formar, mas não havia luz. Apenas um espaço vazio entre as árvores, onde nem a névoa ousava entrar.

No centro, uma pedra coberta por musgo. Circular. Baixa. Lisa.

Parecia... um tambor.

Milan se aproximou devagar. O coração apertado como se quisesse gritar.

Ao tocar a pedra, ela estava fria. Muito fria.

Mas o som, de algum lugar — ou de dentro dele — voltou.

Tum.

Seu dedo tremeu.

Dessa vez, ele soube que não era sonho.

E dessa vez, a ave não estava só na água.

Ela estava ali.

No alto de um galho, branca, imóvel, virada para ele. As asas fechadas, os olhos opacos. Como cega. Como se o olhasse com algo além da visão.

Por um instante, Milan sentiu algo dentro de si estremecer — uma parte que ele não sabia que existia.

E então… ela bateu as asas uma vez, sem som, e sumiu.

Como se nunca tivesse estado ali.

Ele não soube quando dormiu. Mas era mesmo um sonho? Nada parecia… correto. 

Foi como afundar. Não no sono, mas numa água parada, espessa, fria. Um torpor que não pedia permissão — só o tragava.

E lá embaixo… o mundo era outro.

Havia formas na névoa. Formas que não se revelavam por completo. Algumas caminhavam em círculos, outras apenas o olhavam. Rostos sem olhos. Corpos sem peso. Vozes que sussurravam nomes que ele não conhecia, mas sentia que o pertenciam.

No centro de tudo, a ave.

Mas agora, ela não o observava. Estava caída. Imóvel. Com as asas abertas como se tivesse sido sacrificada.

E atrás dela, uma fogueira apagada cuspia fumaça preta que subia… e subia…

E tomava o céu.

Milan tentou gritar, mas nenhum som saiu.

Quando abriu os olhos, ainda estava na clareira.

Mas a pedra estava diferente.

O musgo nela agora estava queimado.

Uma brasa, solitária, fumegava no centro da pedra.

Como se algo tivesse sido deixado para trás.

Como se ele tivesse perdido o momento exato de entender.

A floresta, antes abafada, agora parecia prender a respiração.

E então, algo mudou no ar.

Não era som.

Não era luz.

Era pressão.

Como a presença de algo que nunca deveria estar ali… mas estava. Não à vista. Mas ao redor. Dentro.

Milan se levantou devagar. Cada fibra do seu corpo gritava para fugir. Mas ele sabia que não havia para onde.

A névoa recuava, como se abrisse caminho.

E lá no fundo da mata, entre troncos tortos e sombras pulsantes, algo se moveu.

Não era homem.

Não era fera.

E mesmo assim... ele reconheceu.

Não sabia de onde. Não sabia o nome.

Mas seu corpo sabia.

A dor soube primeiro.

E então, o medo.

Milan deu um passo para trás, e o chão cedeu. Terra úmida desabando sob seus pés. Ele rolou morro abaixo — galhos rasgando sua pele, pedras batendo contra suas costelas, o mundo girando.

Quando parou, estava deitado num leito de raízes retorcidas. O peito arfando. O corpo coberto de sangue fresco.

Mas não estava sozinho.

Atrás dele… passos.

Lentos.

Pesados.

Cada um esmagando a terra como se o próprio chão tremesse.

Milan não olhou.

Não ainda.

Porque naquele instante, ele entendeu.

Não era a morte que o seguia.

Era o que vem depois.

Ele acordou de novo. Mais uma vez. Quando dormiu? 

O corpo estava pesado, como se o tempo tivesse dobrado sobre si. A floresta, mergulhada num escuro ainda mais denso, parecia inclinada — como se puxasse tudo para baixo, para dentro, para o centro de algo que não queria ser nomeado.

As árvores agora eram mais altas, os troncos mais fechados, e o ar, rarefeito. Caminhar era mais do que esforço físico — era um ato de resistência.

De identidade.

Milan avançava. Um passo de cada vez. Sem bússola, sem direção, apenas longe da clareira onde a coisa havia morrido — ou nascido, ele já não sabia.

A lama engolia seus pés, as sombras se contorciam ao redor, e o som do mundo parecia existir apenas atrás dele.

Como se a floresta não quisesse que ele fosse adiante.

Ou como se… algo à frente o esperasse.

E então veio.

Não som. Não luz. Mas a sensação exata de que não estava mais sozinho.

Milan parou. 

O coração não acelerou — ele apenas… parou também. Como se o próprio corpo soubesse que aquilo não era feito para ser compreendido.

Lentamente, ele se virou.

E lá estava.

No limiar entre duas árvores largas, uma figura surgia, inclinada, envolta por uma névoa que não vinha do chão — mas dele mesmo.

A primeira coisa que Milan percebeu foi o movimento: a criatura não andava. Ela… deslizava.

Era alta. Longilínea. Coberta por um manto escuro feito de penas ou sombras — impossível dizer.

Não havia rosto.

Apenas uma máscara pálida, rachada, como porcelana antiga, com dois olhos vazios, fundos, onde nenhuma alma deveria existir.

Mas o que congelou Milan foi o detalhe.

Aquele símbolo.

Gravado no centro da máscara… a cicatriz que ele mesmo carregava no peito.

Por um instante, tudo pareceu se curvar. As árvores. A terra. O tempo.

E então a criatura estendeu a mão — não num gesto de ataque, mas como quem oferece algo inevitável.

Atrás dela, a floresta se abrira, revelando uma descida de terra crua e raízes expostas, um caminho feito de escuridão espessa… como se levasse ao ventre do mundo.

Milan não se moveu. Não recuou. Não falou.

Apenas olhou para aquela coisa.

E pela primeira vez desde que renascera, ele soube — aquilo não era o fim.

Era o início de algo que ele não estava pronto para entender.

Mas teria que seguir.

Porque a floresta havia escolhido. E o que quer que o esperasse ali embaixo… já sabia seu nome.

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