O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 3: A BRIGADA DE DRONER


Milan teve muito tempo para pensar sobre sua situação enquanto viajavam. Ou melhor: enquanto ele era levado de um lugar a outro, acorrentado sob uma fera de chifres e atrás de um orc feio e fedorento.

Lera livros o bastante para ter certeza de nunca ter visto aquele monstro antes. Tinham seis pernas que se moviam singularmente bem.

Do topo de suas cabeças encouraçadas, chifres se curvavam para fora, como búfalos comuns aos olhos humanos. A própria pele e o tamanho eram algo que tirava o fôlego de Milan quando ele se dava conta de que estava ali.

Ao contrário da cabeça, que era de um couro tão resistente – Mil notara só de ver –, o resto do tronco era recoberto por escamas ásperas, que produziam um som estranho ao roçar em si mesmo. E nem precisava falar do tamanho; qualquer bicho que aguentasse transportar aqueles orcs, que já eram enormes por natureza, era um monstro por si só.

Mas era a mesma coisa: se perguntava o motivo daquilo acontecer com ele, justo ele. Nunca tinha sido maldoso com sua mãe ou pai. Nem mesmo com sua irmã. Então porque estava passando por aquilo? Era alguma espécie de karma reverso?!

Então lembrou-se do fim de Jorge, Kevin e Tgon. Estar vivo, mesmo naquela circunstância, era melhor do que ter sido feito de petisco por uma besta de núcleo. E, mesmo que seus pais acreditassem em sua morte e, pouco a pouco tivessem que se adaptar à nova realidade, ele poderia retornar pra eles, mesmo que isso durasse anos. Os pais dos outros três, não.

Quando finalmente chegaram, Milan ficou estupefato. Eles tinham passado um longo tempo cavalgando por um imenso campo de terra marrom. Era um deserto frio e nublado. Sem nada a vista. Nem à esquerda, nem à direita; nem atrás ou à frente.

No entanto, algo mudou sem que ele percebesse. Haviam chegado à uma espécie de acampamento. Haviam tendas enormes por todo lugar. Tinham orcs de todas as formas e tamanhos. Perto dele, escravos passaram em fila única, puxados por orc esverdeado com sorriso maldoso.

Milan notou que os tais orcs não eram completamente cinzas como o vagabundo que o pegou. Não. Esses orcs verdes pareciam involuídos. Tanto em aparência quanto em intelecto. Talvez existisse algum sistema de casta, ele não sabia. Só sabia que eles eram tão feios e fedorentos quanto os que conhecera anteriormente.

No meio desses escravos haviam elfos, anões, fadas..., apesar de sua situação complicada, não deixou de ficar maravilhado. Tinha visto essas espécies apenas em contos. Eram cultuados, imponentes, deuses. Agora pareciam tão... mortais. Tão frágeis, como se a qualquer momento fossem se despedaçar. Notou uma das fadas totalmente enfaixada, sem uma das asas. Seu coração se apertou.

Tinha alguma noção do que acontecia ao redor do mundo, não era um tolo. Mesmo que os livros que tenha lido não tenham lhe dado total informação como bem percebeu, se considerava orgulhoso por entender o mundo.

Sua vila pertencia à uma cidade que, por sua vez, pertencia à uma província que, desta nova, pertencia à um reino. A Bravaterra. No mundo acontecia uma guerra, mas Mil não tinha certeza de quem participava nela. Sabia apenas que as fadas estavam de um lado. Os homens se orgulhavam por não participar, pela primeira vez em sua história, da guerra.

Ficou feliz e triste ao não ver nenhum humano ali.  

A comitiva guiada por Droner parou subitamente. O orc desceu de sua montaria, que se parecia com um lobo, só que de três metros, e olhou para trás.

– Leve o humano para o lavabo, quero que esteja limpo até esta noite. Deem um jeito nestas feridas também. Não quero me arriscar pegar qualquer doença que esses imundos possam ter.

– Vocês ouviram Droner-San. Vamos, levem-no até a tenda de lavagem. – Repetiu Bergen, como um papagaio ambulante.

O orc que pilotava a montaria onde Milan estava sentado, desceu com um pulo e capturou o garoto pelo cangote, como se pegasse um cachorro pela pele. Ele colocou o menino no chão e começou a guia-lo, empurrando suas costas.

Ao passo que iam seguindo um caminho, Milan fitou o arredor. Numa arena envolta por arames fincados no chão enlameado, pequenos orcs batalhavam; eram tão agressivos e violentos. Milan não se surpreendeu que usassem espadas de verdade no duelo, já tinha visto cerca de dois duelos entre aventureiros de rank baixo, em demonstrações na vila.

Ficou mesmo foi boquiaberto ao ver que eles atacavam para matar, não ligando que o outro viesse realmente a perecer. Até um treinamento era tão acirrado.

Eles pararam quanto perceberam o olhar vidrado do garoto e, cuspindo no chão, deram risadinhas.

Mais adiante tinha uma área de ferragem e até mesmo uma de descanso. Parecia que eles tinham acabado de sair de uma batalha.

Quando finalmente chegaram na tenda, o orc que guiava Milan lhe deu um empurrão, fazendo o garoto cair no chão.

Milan resistiu ao impulso de se virar e trovejar todos os insultos que conhecia. Foi impedido por um toque gentil em seu ombro. Ergueu o rosto e se surpreendeu um pouco. Uma elfa de cabelos trançados e brancos feito neve o encarou.

O menino foi arrebatado pelo azul dos olhos da mulher. Quase, percebeu, conseguiu engasgar com a própria baba.  

Ela usava um vestido bege e pegou o menino pelo braço de maneira gentil.

– Esse aí é especialmente para o Droner-San. Você sabe que ele gosta deles bem lavados. Então capriche, ou somente Xavan saberá o que vai acontecer.

Quando o orc saiu pela entrada da frente, Milan finalmente conseguiu respirar. Ele levou um tempo para assimilar aquele lugar. Era bem limpo, na verdade.

Mas, a todo momento, sua atenção se voltava para a elfa. Nunca tinha visto uma tão de perto, mas os rumores eram reais. Mesmo que ela fosse uma escrava ou uma criada, ainda tinha o toque imperial em seu DNA. Devia ser uma elfa bastante velha, notou ele pelas rugas no canto dos olhos.

Ela notou que o menino permanecia encarando-a e se virou para encarar de volta. Mil arregalou os olhos, aturdido, e olhou para o chão. Seu pescoço ruborizou e sua orelha queimou.

De tanto fitar o chão, percebeu, mesmo que essa não fosse sua intenção, detalhes que não teriam passados despercebidos se a situação fosse outra. O chão estava revestido com um tapete vermelho. Ele ergueu o rosto, ainda vasculhando o lugar.

Havia uma banheira na outra extremidade, com uma cortina separando os vãos. Tinham bancos e cadeiras ao redor da tenda e até mesmo uma cama.

A elfa começou a tirar a roupa de Milan, que protestou.

– Ei, que acha que está fazendo? – perguntou, pegando nos pulsos da mulher.

– Vou banhá-lo, Droner-San detesta sujeira – respondeu ela, a voz áspera e cheia de um sotaque brevemente corrigido.

Milan pigarreou.  

– Ah. Tenho certeza que detesta – atalhou, zombeteiro.

A elfa ergueu o olhar e se endireitou, mantendo suas costas rijas.

– Sugiro que mantenha esse sarcasmo escondido quando estiver com Droner-San.

Mil ergueu uma sobrancelha e um sorriso irônico junto.

– Ou o que? Ele vai me transformar num escravo? Olha, tenho que te contar uma coisa...

– Só tende a piorar, hina. Portanto só direi uma vez: cale-se, tire sua roupa, entre na banheira e deixe que eu te lave. Vuanyalien?

O menino suspirou e fez que sim, percebendo que não adiantava discutir. A elfa o encarou por um instante, as sobrancelhas erguidas.

Ele, Mil, estava com vergonha que alguém o visse pelado. Apenas sua mãe via, quando lhe banhava. Era a única coisa que ele ainda a deixava fazer.

Entrou na banheira e a mulher sentou num banco atrás. Ela o lavou em todos os lugares, limpando áreas que ele não tinha muita prática. Limpou suas partes intimas de forma que ele nunca tinha limpado. Ele ficou se perguntando o pra que daquilo.

Quando ela terminou, pegou uma toalha e lhe enxugou até que não sobrasse nenhum pingo de água.

– Vamos dar um jeito nestas feridas, agora.  

Ela foi até um armário e tirou um frasco transparente com uma gosma verde. Abriu-o e pegou um pouco com um dedo, passando-o na testa de Milan, onde estivera o corte. Imediatamente a cabeça do garoto parou de latejar, seus sentidos foram voltando ao normal.

– Uou. O que é isso...?

A elfa continuou seu trabalho, incapaz de exibir alguma emoção.

– Gosma de Gerdem, muito bom em cicatrizar de forma imediata ferimentos abertos. Agora mastigue essa carne seca, seu braço vai parar de doer por essa noite. Seus hematomas também irão sumir. Mas a dor é temporária, temo. – Após algum tempo, suspirou e se ergueu, limpando as pregas do vestido. – Acredito não ser mais necessária aqui. Vista aquelas roupas que encimando o divã. Alguém virá lhe buscar quando for a hora.

Ela se virou para sair.

– Espere! – Bradou Milan, aturdido. –  É coisa demais. Por favor, me explique o que está acontecendo...

– Você logo saberá, hina.

– Não, eu exijo saber...

– Apenas seja grato por não estar numa situação pior. – Atalhou a elfa, pressurosa. – Agradeça que Droner-San gosta de tratar suas “mercadorias” com zelo. Pelo menos enquanto tiverem serventia. Você tem sorte por não ter de usar uma das marcas do alto mercador.

Mil piscou.

– Mercadoria? Você tá querendo dizer que... – no entanto, antes que pudesse concluir, a elfa saiu da tenda.

Ele olhou para o divã e encarou a roupa. Um robe feito de seda. Como criaturas iguais aquelas tinham acesso a tão bom tecido? Nem mesmo os pais de Milan tinham condições de comprar aquilo. Lembrou-se imediatamente que, apesar de parecerem uma espécie selvagem, os orcs eram reis ali.

Restou se contentar.

O robe era longo e não tinha calça ou cueca. Ele o vestiu e colocou nos pés um sapato de couro que estava ao chão.

Ficou ali por horas antes que alguém viesse busca-lo. Um orc verde de um olho só. Vestia a mesma roupa que os outros e fedia bastante. Tinha um sorriso maldoso no rosto.

– Oh! – exclamou de maneira mais fingida possível. – Droner-San realmente não tem mau gosto. Que sorte, han? Vamos, ele te espera.

O coração de Milan começou a bater forte, seu estomago congelou. Ele tinha um péssimo pressentimento.

Eles rapidamente chegaram numa tenda que ficava mais afastada. Tinha em torno de uns vinte orcs de guarda. A tenda era enorme e adornada com desenhos dourados. Quando Milan se aproximou, a guarda abriu espaço.

Havia um tapete vermelho que levava até a tenda. Ao entrar, Milan ficou estupefato mais uma vez. Era dez vezes maior que a outra que ele estivera.

O chão era adornado por um carpete felpudo desenhado com várias cores. Haviam divãs, cadeiras. Mesas cheias de frutas e comidas. Milan não sabia como um lugar daquele podia ter tanta coisa bonita.

Havia um elfo sentado ao chão, uma corrente de ferro presa ao seu pescoço. Ele deveria ter uns vinte e poucos anos. Mas Milan sabia que provavelmente não. Elfos tinham uma capacidade de vida maior que a dos humanos.

O elfo era diferente da outra. Sua pele era mais escura e os cabelos eram negros. Tinha uma orelha pontuda, mas não tanto. Havia diferença ali.

Ao ver o menino, o elfo se levantou e deu um sorriso que não chegou aos seus olhos.

– Venha, Droner-San lhe espera – falou gentilmente, esticando uma mão.

– Espera?

O elfo assentiu.

– Conforme informado. Agora ande rápido, ele não gosta de esperar.

Eles caminharam pela tenda, desviando das coisas, e chegaram de frente para uma cortina. Quando o elfo abriu, revelou um lugar ainda mais amplo. Tinham velas em cima de mesas e candelabros de metal. Havia uma cama bem no meio do lugar. Num dos cantos, onde a luz não iluminava, havia alguém.

– Saia, svangur. – soou a voz de Droner, imperiosa.

O elfo proferiu uma mesura e se distanciou para sair, mas foi interrompido por Droner novamente.

– E se certifique que ninguém interrompa. Senão...

Quando o elfo deixou o recinto, a figura se moveu e Milan deu um passo para trás. Ele estava tremendo, sentia que algo ruim lhe aconteceria.

Na verdade, já tinha certa noção. Apenas não queria acreditar.

A figura saiu das sombras e caminhou até a cama. Droner vestia um longo robe de seda dourada. Seu cabelo branco estava amarrado em coque e ele tinha um sorriso nojento no rosto. Desprendeu uma pulseira de seu pulso largo.

– Não tenha medo, criança. Venha até mim. – Sua voz ecoou, roca e forte.

Milan não fez nada, continuou parado. Sua mente a mil. Ele agora entendia o que estava acontecendo, e não queria aquilo de modo algum.

Parecendo irritado, Droner franziu a testa e se levantou. Sua voz se tornou um grave.

– Quero que venha até mim, agora. Considere isso um pagamento por não ter colocado um selo em você.

Suspirando forte, Milan caminhou lentamente até Droner. O semblante do orc mudou e ele deu um sorriso.

– Ah! Assim está melhor. Tire essa coisa.

Mais uma vez, Milan hesitou. Vendo aquilo, uma veia cresceu da testa dele.

– Tire a roupa, humano. – Ele gritou, dando um susto em Milan. O menino estava apavorado. As lágrimas começaram a cair, mas ele fez o que lhe foi pedido.

– Vocês humanos... eu tento ser legal, sabe? Mas vocês gostam de brutalidade. Será dessa forma, então.

Droner fitou o corpo de Milan e tocou-o de modo brusco. Pegando pelos seus dois pulsos, jogou o garoto na cama e tirou seu robe também.

Os olhos de Milan se arregalaram e ele começou a gaguejar.

– N-não faça isso. I-isso não pode dar certo. Não tem como dar.

– Eu já fiz isso antes. Agora vire-se.

Milan não o fez, ao invés disso tentou sair da cama. Mas as mãos de Droner foram mais rápidas. Ele pegou Milan pelo pescoço e o jogou de bruços na cama, prendendo seus dois pulsos acima da cabeça.

Milan se debateu enquanto pediu... não, implorou para não fazer aquilo.

Então sentiu um rebote. Ouviu a risada nojenta de Droner.

– Calma, humano, isso foi apenas uma preparação. Este foi apenas meu dedo.

O que? O dedo? Se perguntou Milan enquanto sentia o estranho movimento invadindo sua privacidade. Ele sentiu o ardor. Decidiu que não gostou nem um pouco daquilo.

Um misto de emoções se apossou de seu ego; dor, medo, angustia, nojo. Por fim, raiva. O ódio que sentia por Droner naquele momento ultrapassava o medo que sentiu.

– Agora acho que estamos prontos, garoto. Só vai doer por um minuto. Depois você irá amar.

Mil sentiu o impulso e, em seguida, algo escorrer. Aquilo estava doendo e ele só conseguia pensar nisso. Ele chorava a cada impulso que sentia.

– Oh. Sangue. Você era bem apertado, humano. – Disse Droner gargalhando.

O menino sentiu uma ardência, suas pernas tremendo. Cada vez que sentia o impulso, ele ia perdendo as forças. Ia desistindo de lutar. Ouviu Droner rindo, mas não conseguia nem olhar. Aquilo doía, aquilo o machucava. E a raiva cresceu.

Por que aquilo estava acontecendo? Por que ninguém o ajudava? Por que tinha de ser com ele?

Depois de um bom tempo, ele sentiu algo quente em suas costas. Ouviu um suspiro de Droner.

– Uff. Você era apertado, garoto. Limpe-se, a noite é longa.

Então seu mundo desabou. A frase foi o suficiente para ele saber que teria mais daquilo. Mais daquele horrível momento. Ele olhou atordoado para Droner, que se limpava com um pano.

Percebendo a incredulidade do menino, o orc voltou à cama.

– O que? Achou que tínhamos acabado? Não, isso vai durar a noite toda, humano.

E Milan teve a certeza de que estava no inferno.

Quando Droner finalmente acabou, ele se levantou e colocou o robe outra vez. Milan estava deitado na cama, olhando para o nada. Àquela altura, ele já imaginava que a morte era melhor do que aquilo.

Já imaginava que o destino dos irmãos bolota não foi tão ruim. A morte era melhor.
 
No fim, antes de desmaiar, Milan tomou a liberdade de fazer uma única promessa a si mesmo; e não seria voltar um dia vivo para os pais, ser alguém grande na vida ou até mesmo um aventureiro. Droner também tomara a liberdade de quebrar o espiríto infantil de Mil. 

Contudo, prometeu: mesmo que aquilo tornasse a acontecer, ele se vingaria. Ele daria a Droner uma morte tão lenta que se certificaria que o orc imploraria pela morte. E ela seria tão lenta e dolorosa quanto tudo aquilo que passou naquela noite inesquecivelmente demoníaca. 



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