O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 2: TERRITÓRIO DESCONHECIDO

A vila ficara em polvorosa. Interditaram a floresta, o lugar encheu-se de aventureiros de rank B e A.

Emma estava sentada num lugar não muito distante, uma mulher checava seu estado.

A menina não precisou ir até a cidade buscar por ajuda. Em um lugar próximo, patrulheiros vistoriavam a floresta quando sentiram a presença da Múmia-Morcego; contudo, não chegaram a tempo.  

Chegaram apenas para ver os gritos de dor e pavor exauridos por Emma.

Um dos patrulheiros se aproximou da pequena Sgaard. Ele era alto de ombros largos; sua feição era dura, mas algo nele transmitia paz. Em achava que era seus olhinhos castanhos que sorriam, apesar da boca ser uma linha cinza e reta.

Ele se agachou, a capa ondulando.

Uma ventania soprou seus cabelos cor de cevada, revelando uma cicatriz funda na testa. O homem suspirou e retirou as luvas negras.

– Me chamo Gerrard, sou um patrulheiro e aventureiro de rank A... querida, pode me explicar o que aconteceu aqui?

O tom de voz, a calma e a bonança do homem surpreenderam Emma.

Ela ainda estava em choque, mal podendo acreditar no que havia acontecido. Olhou de novo para o corpo caído da criatura, agora apenas a metade de baixo.

Encarou a poça de sangue que os irmãos bolota deixaram... seu estômago revirou, mas ela conseguiu se manter bem.

Tinha de sair daquele transe, afinal aquele pessoal precisava saber o que tinha acontecido.

Um vento soprou outra vez e, junto disso, o cheiro do sangue recente se apossou das narinas de Emma. Ela não conseguiu manter o estomago.

Virou-se para o lado e provocou em grande quantidade. Por fim, ergueu-se novamente e limpou a boca com as costas da mão.

Gerrard, que permaneceu ali, inalterado, meteu a mão dentro de suas vestes e retirou um pano. Finalmente sorriu e entregou-o à Emma.

– Aqui.

Relutante, Emma o encarou; aceitou o pano e suspirou. Então contou tudo a Gerrard. Desde o rio até o momento em que a criatura apareceu.

Ele ouviu tudo sem interromper. Permaneceu inalterado. Quando ela acabou, ele se ergueu e tocou o topo da cabeça da menina, acolhedor.

– Vai ficar tudo bem. Seu irmão foi um herói, mesmo que não tenha conseguido salvar as outras crianças... e você é muito forte. Seus pais já foram chamados, logo estarão aqui.

Quando sua voz caiu, notou um casal vindo por entre as árvores, acompanhados por dois aventureiros.

Uma mulher se aproximou de Gerrard.

– Capitão, qual a situação?

Ele suspirou e, enquanto observava o casal se aproximar, falou.

– É um caso delicado..., uma fera de núcleo tão ao norte... é provável que tenha sido atraído pelo despertar do garoto, como também não é. O que podemos fazer é delimitar o perímetro, manter uma guarda baixa, caso a situação se repita. Temos que dar apoio aos familiares envolvidos.

A aventureira respirou.

– Não é uma situação fácil. A família dos meninos mortos vai cair matando em cima de nós...

– Sim. Mas não havia nada que pudesse ser feito. Eles têm de agradecer que o garoto estava aqui e despertou... sinceramente, acredito que essa vila seria massacrada se não fosse por ele.

A aventureira trocou o apoio das pernas.

– É realmente uma sorte que ele tenha despertado logo aqui... essa vila não tem o suporte de guildas adequado. E nem precisa, visto que é apenas para comércio; mas é realmente uma sorte. Recém despertados expelem um poder tão forte na primeira vez que poderia destruir uma vilinha dessas.

Gerrard suspirou.

– É fortuito que ele não tenha o feito. Penso, no entanto, que sorte não se adequa aqui. O garoto foi perspicaz... a irmã disse que ele foi capaz de identificar o nível da criatura, e que sabia o que fazer... oito anos e já desperto...

A aventureira olhou para Gerrard, olhos arregalados.

– Oito anos? Que espécie de gênio tínhamos aqui? – Ela suspirou, murchando. – Bom, é uma pena que tenha morrido.

Gerrard concordou.

A família finalmente chegara. Um homem negro de longas tranças e olhos verdes, e uma mulher de pele clara e olhos cinzentos.

Gerrard ficou a uma pequena distância, ouvindo enquanto a menina contava o que havia acontecido.

Ele encarou enquanto o pai fitou o chão, o olhar vago, e a mãe manteve uma força surpreendente.

O momento de distração do pai foi embora logo quando a menina pediu desculpas e, finalmente, desabou em lágrimas.

Ela ficou repetindo que era sua culpa. Gerrard achou que os pais concordariam, mas eles abraçaram a menina e a acalentaram.

Foi uma reação inusitada. Pensou que um dos pais reagiria com desprezo. Praguejou contra si mesmo, irritado com a falta de fé para com os outros. Quem era ele pra julgar alguém?!

Decidiu, por fim, que não era ali que devia estar, então caminhou mais um pouco pela neve.

Andou até o lugar que tudo aconteceu e ficou divagando sobre o poder despertado do garoto.

Uma areia envolveu sua mão e engoliu o menino e o monstro... pensou.

Ele fitou o chão e se pôs de cócoras, encarando uma área onde não havia neve. Uma pequena camada negra de grãos maciços se rebolia na terra.

Um sorriso riscou o rosto de Gerrard.

Realmente uma pena...



***


As habilidades de alguém despertado elevava o nível de destreza, como se gerasse anos de habilidade em batalha. Mas Milan não era um lutador, ele tinha apenas o seu senso de direção. Foi por isso que ele conseguiu desviar do primeiro ataque daquela criatura. E quando ele pensou que morreria, sua habilidade apareceu. Uma areia negra surgiu da palma de sua mão, engolindo-o a ele e a criatura, deixando a parte de baixo dela para trás.

Mas sua mente estava aturdida demais para pensar em tudo isso. Seus pensamentos eram velozes e vagarosos na mesma medida. Pensava em tudo e em nada ao passo que praguejava sua falta de sorte.

E foi assim, num piscar de olhos, que Milan se viu longe de sua família... de sua casa.

Ele não teria jantar, o ótimo falafel que sua mãe fazia, junto daquele achocolatado antes de ir para a cama. Não, ele não teria.

Diferente de seu quarto aconchegante, ou da sala quentinha de sua casa, ele se viu num lugar horrível. Nunca tinha encarado aquilo antes, não que tivesse saído de algum lugar para além de sua própria vila.

Dos livros que lera – que foram diversos, nenhum detalhava sobre aquele lugar horroroso. Tudo bem que ele não lera todos os livros, de modo que alguns com informações detalhadas só eram dispostos a pessoas de alta classe, ou membros da sociedade do reino. Nem mesmo aventureiros tinham muita liberdade quando se tratava de ler livros. Aqueles que ele lera eram apenas alguns da coleção da mãe, que também era uma assídua leitora.

Então não tinha como culpar sua falta de leitura. Dos que lera, nenhum citava esse lugar feio.

Os céus pareciam se partir. O ar era pesado, o vento era carregado de enxofre. Trovões rimbombavam, gritos e lamúrias eram ouvidos a distância. Milan percorreu o olhar pelo lugar somente para dar de cara com o seu algoz, de boca aberta expondo aqueles dentões.

O menino pulou para trás, ainda no chão, se sujando por inteiro. Seu grito ecoou por uma longa distância. Logo percebeu, no entanto, que se assustara atoa: o monstro estava irremediavelmente morto.

O lugar em que ele estava era parecido com um monte. Haviam árvores para onde quer que ele olhasse. Se levantou e andou até a beira do morrinho, para olhar melhor o lugar em que estava.

Era apenas um longo campo de nada. Somente terra sobre terra: seca e hostil. O tempo em si aparentava estar sempre nublado, trovões rimbombando sem o menor sinal de chuva.

Milan levou a mão ao rosto, no ato inconsciente de ajeitar seus óculos. Então ele se recordou que, durante seus momentos de insight, os óculos caíram-lhe do rosto. Não era na verdade ruim, pois Milan não poderia se considerar um míope de alto grau. Não. Mas dificultaria de certa forma sua visão, principalmente para enxergar a distância.

Ele se ajeitou melhor para olhar mais longe, e tudo o que conseguiu foi se desequilibrar. A terra onde ele pisava desabou aos poucos, piorando sua situação. Sem conseguir se segurar, Milan caiu morro abaixo, bolando e se machucando seriamente. Quando finalmente parou de rolar, sentiu uma dor excruciante no braço direito.

Um liquido quente começou a descer por sua testa. Minutos antes de desmaiar, ouviu um grito e um relinchar de cavalo. A última coisa que viu foi pernas se aproximando dele.
                     

***

Durante seu sono, Milan retornou ao topo daquela torre. Agora não eram imagens, eram lembranças. A multidão gritava algum nome... qual era?

Ele despertou num pulo. Fez careta quando sentiu sua costela estalar. Sua cabeça rodou, doendo e latejando. Não teve tempo de se situar. Apenas se levantou e saiu andando e tateando os lugares, em busca de uma porta. Finalmente saiu de onde estava e deu de cara com uma salinha.

Era bem pequena. Numa extremidade havia uma pequena lareira com um caldeirão fervendo. Próximo dali uma senhora sentada num banco remexia o caldeirão com uma colher de concha. Na mesa de madeira no centro, havia uma garota, talvez mais velha que Milan uns cinco anos. Ela tinha olhinhos castanhos e cabelos loiros desgrenhados. Estava descascando alguma coisa. Quando viu Milan, abriu um sorriso.

A pobrezinha estava um pouco suja, mas tinha um rosto meigo.

– Veja, mamãe. Ele acordou. – Disse, dando palminhas.

A senhorinha olhou para trás, um largo sorriso no rosto. Ela lembrava a menina, só que um pouco mais velha. Não, Milan fora generoso em sua avaliação. Ela era bem mais velha; no entanto, o sorriso dela foi tão gentil que ele teve de suportar a vontade de atravessar o vão e se aconchegar sob sua clavícula, num abraço longo e gostoso.

Ela usava uma roupa um pouco esfarrapada, com um lenço que um dia deveria ter sido branco.

– Rápido, dá a tigela aqui, Brida – disse ela, esticando a mão e balançando os dedos. – O pobrezinho é só a titela e o osso.

Milan olhou para baixo e se viu praticamente nu, vestindo apenas uma calça. Havia um pano sujo enfaixando seu braço direito, onde ele sentira pontadas de dor.

– A faixa não é das melhor, mas Brida conseguiu dar um jeito nocê. – suspirou ela.

Finalmente pegou a tigela com uma mão e, com a outra, encheu-a com o líquido fervente que mexia há pouco. O estômago de Milan roncou bem na hora.

Um pouco acanhado – corado o bastante para que Brida desse risadinhas dele –, caminhou até a mesa, um braço na frente do corpo, e sentou-se. Brida andou até a mesa e colocou a tigela em sua frente.

– Coma. Sei que pode não parecer gostoso, mas é guisado de coelho das cavernas. A carne é muito boa.

Milan olhou para a tigela. Um liquido verde exalava o calor, o cheiro era muito bom. Ele olhou para as duas, que aguardavam com afinco. Assoprou e então levou a tigela à boca.

Seus olhos se arregalaram. O gosto era muito bom mesmo. Ele lembrou automaticamente da comida feita por sua mãe. Seus olhos encheram de lágrimas, mas ele não deixou que as moças vissem.

Brida e sua mãe deram palminhas de felicidade. A menina correu e se sentou de frente para Milan, que devorava a tigela de sopa.

Quando terminou, bateu a tigela na mesa e sentiu seu estômago se saciar.

– Muito bom, né?! É a especialidade da mamãe. E essas feridas aí foram curadas por mim. Você desmaiou por tipo umas quinze horas. Achei que estava morto, mas mamãe me disse que era cansaço. Ah, me desculpa pelo linguajar da mamãe, é que ela não teve muita educação. Mas eu tive, papai me ensinou muito bem. Foi com ele que aprendi sobre elixires e tal. Ah, é mesmo. Qual o seu nome?

Milan piscou. Ficou admirado com a rapidez daquela enxurrada de palavras. Ele olhou para a mãe de Brida, que mexia o caldeirão despreocupadamente. Depois voltou o olhar para a menina. Não deixou de pensar na semelhança entre ela e sua irmã, Emma. Rezou para que ela estivesse bem e não se culpasse pelo ocorrido.

Mas ela se culparia; seria inevitável.

– Mi-milan. – disse, pressuroso.  

– Oh! Que nome estranho. Eu sou Brida e essa é minha mãe. Você pode chama-la de Vildan. Ah, é mesmo. Eu tenho doze, e você?

– Hm. Eu tenho oito.

– Ownn! Você é tão fofinho, Mi-milan.

O garoto se forçou a conter uma risada. A menina era meiga, e o fato dela achar que seu nome se repetia na primeira sílaba deixou aquilo ainda mais engraçado.

– Que foi? Eu disse algo de errado? – Indagou, percebendo sua mãe cair na risada.

– O nome dele, fia. – consumou a mais velha, como se isso bastasse.

Brida inclinou a cabeça para o lado.

– Que tem de errado?

– É só Milan. Não repete. – Respondeu Vildan, evitando ao máximo dizer mais que quatro ou cinco palavras.

Brida abriu a boca para dizer algo, mas foi interrompida pela porta que se abriu. Milan pôde ver por um curto tempo como era lá fora. Estava da mesma forma de quando ele chegou.

Quem passou pela porta foi um homem muito magro de rosto gentil. Ele tirou o chapéu bege e sorriu.

Carregava uma besta, que encostou na parede. Pôs seu chapéu num cabide e tirou a jaqueta. Tinha um rosto magro e esguio. Seus olhos eram negros e sua barba era grisalha com alguns fios negros. Não tinha quase nenhum fio de cabelo em sua cabeça. Deu um beijo na cabeça de Brida e se sentou à mesa.

– Vejo que já acordou. – disse, sorrindo. – O rapazinho já comeu?

– Já, e se chama Milan. – Respondeu Brida, corando ao dizer o nome do menino.

– Oh. Vejo que minha Brida aqui já descobriu seu nome, hã? – Ele esticou a mão para Milan e sorriu. – Eu me chamo Piro. Sou o pai de Brida. Fui eu quem o achou lá naquela estrada. Posso dizer que você estava bem mal.

Com muita cautela, Milan pegou na mão de Piro. O homem apertou sua mão e olhou para Vildan. Ela prontamente se levantou e pegou as tigelas em cima da mesa. Depois de encher, repôs no lugar e começaram a comer; Milan pela segunda vez.

– Então, Milan – disse Piro, entre sopros e bebericadas. – Gostaria de nos contar o que aconteceu? Como chegou aqui? Eu diria que é um dos escravos de Xidan, mas você não tem a marca dele em seu corpo.

O homem tentou ser despretensioso, mas sua voz era curiosa e talvez um pouco cautelosa. Ele tinha ajudado um estranho, colocado em sua casa e dado de comer. É obvio que tinha que saber sobre seu inquilino.

Milan suspirou, já sabendo que tinha de ser sincero. Ele pousou a tigela na mesa.

– Minha irmã gêmea e eu brincávamos numa floresta em nossa vila, Kaltsmeade, quando fomos atacados por uma criatura... uma Múmia-morcego. – Sua voz ficou pesarosa ao lembrar do acontecido. Se dormira por quinze horas, muito provavelmente já tinha se passado um longo tempo antes mesmo dele desmaiar. – O monstro estava prestes a assassinar minha irmã e eu quando uma névoa... – Ele parou, sabendo que contar sobre seu despertar lhe traria problemas. Era um menino esperto.

“Bem... uma névoa negra nos envolveu, e fomos sugados por ela. Quando acordei nos arredores, a besta estava partida ao meio. Não sei mais o que aconteceu.”

Se duvidava de Milan, Piro não demonstrou. Ele terminou sua tigela e suspirou.

– Entendo. Confesso que nunca ouvi falar dessa sua vila, Kalt- como é mesmo?

– Kaltsmeade, uma vila ao norte da província de Pressard, no reino de Kampefeltt.

Piro suspirou, dessa vez mais pesaroso.

– Sinto em informar, Milan, mas nunca ouvi falar nessa província e nesse reino, e olha que eu era um comerciante antes de conhecer Vildan.

Milan apertou os olhos.

– Vocês não conhecem Kampefeltt?! É basicamente um dos maiores reinos do homem.

Piro balançou a cabeça.

E Milan empalideceu; e Piro notou. Como assim nunca ouvira falar?! Decerto as pessoas sabiam sobre Kampefeltt, um dos maiores reinos do homem em Bravaterra, as terras livres das três raças. Milan não precisava ter saído de Kaltsmeade nem ter lido livros pertencentes apenas a membros da nobreza para saber daquilo.

Seu pai cansara de falar que Bravaterra era uma das melhores terras para se viver, fosse um aventureiro, fosse um druida, fosse ferreiro. E sua mãe, Maria, nunca o desmentiu. Então o que estava acontecendo ali?!

Ele engoliu em seco várias vezes, Brida pensou que estivesse com um acesso de soluços, por isso pegou um copo com água e depositou na sua frente.

Milan bebeu, agradecendo com o olhar.

– Se... – ele suspirou, notando sua voz um tanto carregada. – Se não conhece Kampefeltt, conhece o quê?

Piro o olhou, não com surpresa ou espanto, mas com algo misterioso.

– Posso afirmar que já rodei boa parte destas terras para dizer que existe apenas hostilidade e infertilidade por uma boa quantidade de quilômetros. Para ter noção, conheci Vildan numa terra repleta de um campo tão verde quanto qualquer coisa que possa imaginar.

“Tanto quanto os olhos de meu pai?” Pensou Milan, se segurando para não perguntar.

– Mas tudo o que conhecemos agora é apenas isso: uma terra onde nada cresce, apenas morre. Nenhuma verdura, legume ou algo do gênero suporta o solo arenoso e de difícil acesso. – Piro lançou um olhar para Milan, sabendo que não era isso que o menino perguntara. – Estas terras são de um homem chamado Xidan, o rei das sete costas.

Ao dizer esse nome, Milan notou certa amargura por Xidan na voz de Piro. E não soube o motivo, mas um frio percorreu sua espinha e ficou arrepiado.

– Ele é basicamente dono das nossas terras também. Aquele demônio. Brida disse, cheia de amargura.

– É a lei do mais forte, filha. Queria que nossas terras fossem como a de Milan aqui, mas é o que é. Ele nos protege em troca de pagamento, temos que aceitar nosso destino. Sem ele, as bestas com certeza tomariam tudo o que nos restou.

Após o jantar, ficaram mais um tempo na mesa jogando conversa fora, mas a mente de Milan estava longe, distante. Estava preocupado. Se o que Piro disse fosse verdade, então ele estava muito, muito longe de casa.

Sabia, por informações de livros, que Kampefeltt era um dos nobres reinos de Bravaterra, uma das maiores nações do continente de Langur. Haviam outras nações ao redor, e ele sabia disso, mas os livros não falavam de um lugar distante, desconhecido e governado por um homem de nome Xidan de sete costas.

Com a mente fértil que tinha, Milan até chegou a pensar que o homem tinha de fato sete costas e era como no mito de Cosmireu, o homem de mil mãos. Mas logo afastou esses pensamentos.

Sete costas!

Depois de conversar horrores, Milan voltou para o quarto. Ao agarrar no sono, sua mente vagueou por um sonho estranho.

Ele estava num longo campo verde. Havia um imenso oceano, até onde os olhos podiam ver. Sentiu um toque em sua mão e um rosto gentil apareceu. Ele estava feliz, mas não conhecia aquela pessoa. Mesmo assim seu peito se encheu de emoção.

Acordou assustado, uma palavra se projetando na ponta de sua língua. Seus olhos lacrimejaram. Estava de volta ao quarto na casa de Piro. Na sua doce, triste e atual realidade.

Antes que pudesse pensar, ouviu uma gritaria fora da casa. Saiu do quarto apressado, deu de cara com a porta da frente aberta. Caminhou até lá somente para ter seu estômago embrulhado.

Havia cerca de doze homens. Se é que aquelas coisas poderiam ser homens. Eles eram altos e fortes. Mais gordura do que músculos. Os dentes de baixo eram sobressalentes, chegando quase à altura dos olhos. Em alguns os dentes eram menores que em outros. Eles tinham chifres pequeninos na lateral de suas cabeças. Sua pele era um pouco cinza, com manchas verdes. Eles usavam vestes de couro e longas armaduras de placa de metal por cima.

Piro estava de joelhos na frente de um deles. Brida chorava nos braços de sua mãe, à direita.

A criatura que estava na frente de Piro sorria com uma malicia evidente.

– Mas nós já pagamos a cota deste mês, Bergen – disse Piro.

– Tivemos baixas, Piro, é evidente que você tenha que nos pagar – respondeu Bergen.

– Por favor, deixe que eu fale com Xidan...

Piro levou uma bofetada no rosto apenas por mencionar o tal rei.

– Lave essa sua boca imunda antes de falar do majestoso líder dos orcs sombrios, humano imundo.

Então eles eram orcs. Milan tinha lido sobre eles num dos livros. Mas achava que eles tinham entrado em acordo pacífico com os humanos e anãos. Não sabia que humanos ainda eram tratados assim, nesta altura.

Lembrou, no fim, que estava longe de casa. Aquele lugar não era a Bravaterra.

– Afaste-se, Bergen – bradou um outro orc.

Este era maior que Bergen. Tinha braços enormes e pernas tão grandes quanto. Seus cabelos eram longos e brancos, seus chifres mudavam entre branco e negro. No seu dente sobressalente da direita, havia uns pingentes de ouro. Usava um enorme tronco de metal com vários pregos nas pontas. Ele se precipitou e Bergen deu um passo para trás.

– Você terá de nos pagar de alguma forma, Piro – seus lábios se curvaram num sorriso nojento.

Bergen olhou para Brida e depois para o orc que tinha falado.

– Que tal levarmos a menina, Droner-San?

Droner olhou para a menina e fez uma careta. Percebendo o olhar do orc, Piro enlouqueceu. Ele se jogou para a frente e agarrou os pés fedorentos do desgraçado. Chorando, disse:

– Não. Por favor. Minha Brida não. Acredite em mim, eu não tenho nada. Leve-me no lugar dela. Não leve minha Brida.

Droner soltou um escárnio e olhou para seus pés.

– Que serventia você teria para o poderoso Xidan? Além do mais, você já sabe que nosso lorde tem aversão à humanos, Bergen.

O rosto de Piro se iluminou.

– E-então você não vai leva-la?

– Não. – Respondeu Droner, um sorriso estampado em seu rosto. – Eu quero outra coisa. Meu líder pode não gostar de humanos, mas eu não tenho essa ressalva dentro de mim.

– Tudo. Eu te darei tudo o que quiser. Por favor, basta dizer.

– Hoho. Muito bem, então, Piro. Eu faço vista grossa se você me entregar... ele. – Ele ergueu sua clava e apontou diretamente para Milan, que observava tudo de boca aberta.

O estômago de Piro revirou e ele arregalou os olhos. Não conseguiu nem olhar para Milan.

– O que? Vai negar isso também? Pelo que me lembro você não tinha filhos, não é, Piro? – Uma veia havia se formado na testa do orc. Quando Piro não respondeu nada, Droner sorriu e gargalhou.

v Então é isso, orcs de Droner. Vão, peguem o mancebo, já faz um bom tempo desde que estive com um. Hohoho.

Com isso, os orcs andaram até Milan e prenderam algemas em seus pulsos. O menino olhou atordoado para Brida, que só chorava.

– E-ei. Brida. Que está acontecendo aqui? Pra onde vão me levar? – A menina não respondeu.

– Sra. Vildan, por favor, me ajude. Não deixe que me levem. Sra. Vildan. – Os olhos de Milan imploravam por socorro. Vildan continuava com os seus fechados.

– Sr. Piro. Por favor. Vamos lá, não deixe que me levem. Eu não te fiz mal algum, não é? Ei, ei Sr. Piro. Olhe para mim. Eu tenho que voltar para casa, minha mãe está me esperando pro jantar, sabe? Ela ficaria uma fera se eu não voltasse. Por favor. Ei, Sr. Piro...

Ele olhou para Piro. Estava prestes a pedir ajuda de novo, mas notou que nada que dissesse mudaria seu futuro. Ninguém lhe ajudaria, ninguém iria interceder por ele. Agora ele seria feito de escravo, e até algo pior.



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