O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 1: UM DESPERTAR PRECOCE

 

 

Milan Sgaard vinha tendo sonhos confusos. Ele se via no corpo de outrem, como se estivesse relembrando o passado. Acordava aturdido, confuso. Os insights não paravam, eram muito reais. Durante o dia, quando ele olhava para certos lugares, ou lia certas coisas, uma espécie de deja vu lhe inundava.

Não eram imagens nem lembranças. Não. Eram emoções, sentimentos como culpa, medo, imponência. Mesmo que ele fosse uma criança, conhecia aqueles sentimentos, os vinha sentindo há tanto tempo que nem lembrava mais.

Mas algo só de fato aconteceu quando ele saiu a procura de sua irmã gêmea. Horas antes, estava sentado no balcão da loja de seu pai. O garotinho tinha cabelos claros e pele escura. Seus olhos cinzentos e espertos percorriam pelas linhas de seu novo livro como um leão analisando um enorme descampado, saboreando sua futura refeição.

Adorava ler. Lia ficção, romance, drama; adorava uma pitada de geografia e, pra passar o tempo, ler sobre receitas culinárias. Mas o que o fisgava mesmo era ler sobre a história, a filosofia, sobre as aventuras do mundo em que vivia.

Por vezes se sentia mais vivo lendo livros sobre o mundo e sobre os incontáveis mistérios que ali existiam do que vivendo sua própria vida. Lia agora sobre a história dos primeiros aventureiros, sobre uma história interracial e cheia de reviravoltas. Ficava sem fôlego só de percorrer as linhas com um olhar aguçado e cheio de fome.

Vez ou outra ele empurrava os óculos de aro redondo pelo fino nariz acima. Era o único movimento que se permitia fazer além de ofegadas e expressões tão exclamativas quanto. Poderia ficar horas naquilo.

Seu pai estava atrás do balcão, polindo uma enorme espada de fio duplo. Aproveitava a falta de clientela.  

Jorin Sgaard tinha longos cabelos trançados. Sua pele era escura como a de Milan. Sua barba era trançada até a altura do peito. Mas o que destoava nele eram seus enormes olhos verdes.

– Sabe, Milan, caso algum dia venha ser um aventureiro, nunca, jamais, peça uma arma mágica a um ferreiro. Isso é trabalho dos druidas, entendeu? – indagou, franzindo a testa a tal ponto que suas sobrancelhas pareciam uma... monocelha.

Milan ergueu o rosto do livro e olhou por cima do ombro. Seus olhos cinzas ganhando certa vividez: – Achei que druidas só criavam elixires.

– E criam. – Respondeu o pai. Ele ergueu a cabeça, como se Milan tivesse dito algo de errado. Mas notou o canto da boca do menino começando a arquear. – A questão, sabidinho, é que isso faz parte do trabalho deles, entendeu? Um ferreiro é um ferreiro. Ele deve criar coisas, não as enfeitiçar. Como acha que um carpinteiro se sentiria se alguém viesse lhe pedindo para construir uma casa totalmente feita de aço?

Milan fechou o livro e seu rosto finalmente ganhou aquele habitual tom zombeteiro: – Não sabia que carpinteiros construíam casas...

– E não constroem, Mil – retrucou o pai, finalmente bufando e jogando o pano que segurava em cima da bancada. – É só uma analogia, garoto. Céus, quando você ficou tão cínico?

– Eu não sou – disse Milan, se esforçando ao máximo para fazer uma cara de bravo.

– Ele tem razão. Não é – respondeu uma voz atrás de seu pai. – Só é esperto, e puxou isso de mim.

Milan se virou para a porta e encarou sua mãe. Maria Sgaard era muito bonita. Tinha cabelos longos e claros. Seus olhos eram como uma tempestade que se forma. Cinzentos e atordoantes. Suas rugas se faziam presentes nos cantos de seu rosto, mas era apenas para dar ênfase na sua beleza. Ela não passava nem um pouco o ar de senhora.

Às vezes Milan esquecia que ela fora uma aventureira, uma poderosa paladina de uma guilda da capital. Deixara aquele mundo quando conheceu Jorin Sgaard, um ferreiro em ascensão. Eles se apaixonaram loucamente e viveram felizes para sempre. Pelo menos é como seu pai sempre contou.

Ela passou as costas da mão na testa e checou seu relógio de bolso. Milan sabia exatamente como ele era, já tinha o visto milhares de vezes: feito de ouro maciço, uma imagem de uma fênix desenhada na parte de trás. Era agrupado à uma corrente fina de ouro imperial. Dentro, na tampa, havia uma foto da família, e as horas marcando no visor.

Havia sido o próprio Jorin quem construíra aquele lindo artefato. Dera a ela no seu aniversário de um ano de namoro.

– Já passou do horário – disse Maria. – Vocês a viram?

– Ela disse que voltaria antes do jantar – respondeu Jorin.

– Aquela avoada. Ela sempre esquece do casaco. Além de estar fazendo um frio danado. Pode ir busca-la, querido? – Indagou Maria, sua testa franzida de preocupação.

– Eu vou – atalhou Milan, dando um pulo do balcão.

– Vai? – soaram seus pais em uníssono, surpresos demais para esconder seu espanto.

– Hum-hum. – Confirmou Milan, pegando dois casacos. Se virou antes de sair, um sorriso enviesado se formando. Franziu a testa. – Algum problema?

Seus pais teriam intervindo, mas era tão raro que Milan saísse de casa por vontade própria, que eles não quiseram estragar o momento. Saiu, no entanto, antes de poderem responder. Era um claro sinal de seu sarcasmo.

Contudo, antes mesmo de pisar fora da loja, Milan se arrependeu. O vento estava forte, e a geada sequer derretia ao encostar na pele. Apesar disso, Mil iniciou seu percurso, um rastro seguindo-o por onde passara.

Após longo tempo de caminhada, que pareceram horas, Milan finalmente chegou em seu destino. Parou seu passo às margens de um enorme lago congelado; havia um pontinho mais para lá.

À medida que se aproximava, o pontinho criava forma até que se tornasse uma figura; uma pessoa agachada. Ela estava com os braços ao redor dos joelhos e encarava o outro lado do lago, que era justamente uma floresta.

Seus cabelos eram longos e claros e se encontravam completamente cheios de geada, um montinho de neve se formando no topo de sua cabeça. Milan tocou em seu ombro e ela ergueu o rosto, derrubando o montinho.  

A menina ergueu o rosto, franzindo o cenho. Seus olhos eram verdes e arredios, lembrando os de Jorin. Seu nariz estava tão vermelho que Milan podia jurar que confundiria com um pimentão. Ela franziu a sobrancelha e pigarreou.

– Que está fazendo aqui? Mamãe está muito preocupada. – Disse ele, pondo o casaco em seu ombro.

– Shhh! – a garota o repreendeu com o indicador na boca. – Acho que vi algo lá.

Ela apontou para o outro lado do lago, em direção da floresta. Milan nem se deu o trabalho de olhar.

– Você disse que voltaria antes do jantar. Já passou da hora. – Disse ele, ignorando-a.

– E eu mandei que se calasse, idiota! Agora vem! – exclamou ela, se erguendo de repente, agarrando o menino pelo pulso e andando pela margem do rio em direção à floresta.

– Emma Sgaard! – Berrou ele, entredentes. – Eu sou seu irmão mais velho, vamos embora agora.

Ela continuou seu passo, evitando olhar para trás. Milan sabia que se ferraria. Era sempre assim: sempre tinha que entrar num lago ou subir uma árvore, ou entrar na toca de uma raposa. Ela estava sempre investigando tudo. Às vezes, Milan pensava que ela era um gênio do mal que havia encarnado e agora infernizava a vida de seu sangue. Poético demais.

Quando Emma respondeu, foi com um quê de deboche.

– Por apenas 55 segundos, bobalhão. E eu pedi... não, ordenei que fizesse silêncio.

Milan pigarreou.

– Que você acha que viu? – indagou, finalmente se rendendo a mais uma das peripécias da irmã. Ela não respondeu imediatamente, e, como ele estava irritado, ficou tentado a um acréscimo: – Desta vez...?  

Ela olhou por cima do ombro, claramente afetada.

– Eu não acho que vi. Eu tenho certeza. Por que é tão difícil acreditar numa mulher? – indagou, sua voz carregada de desaprovação.

– Em, você só tem oito anos. Que espécie de gênio é esse? – atalhou o menino.

– Eu sou diferente – ela se virou, dando um peteleco no menino. – Idade é apenas um número, quatro olhos.

Ela parecia mais velha do que aparentava. Milan conhecia garotas o suficiente e sabia que nenhuma delas era tão esperta quanto Emma. O modo como ela falava, como agia... ele começava a considerar a hipótese de reencarnação.

Outra poesia incrível. Milan Sgaard tinha uma gêmea do mal!

Emma parou subitamente, fazendo Milan tropeçar e esbarrar em suas costas. Ela ofegou e o ar saiu branco, quase virando gelo; o frio era de doer os ossos.

– Veja, pegadas. – apontou.

Emma tinha razão. Alguma coisa grande e pesada estava andando por ali. Era obvio que a menina tinha visto algo, ela nunca se enganava. Mesmo assim, Milan decidiu não dar corda para a irmã, sua barriga estava começando a roncar.

– Estamos numa floresta, Em. É obvio que vão existir pegadas.

Emma revirou os olhos.

– Isso é sério? E você se considera um espertalhão. Vou te dizer uma coisinha que você provavelmente deveria saber, quatro olhos. Essas pegadas são grandes demais para ser um animal pequeno e pequenas demais para ser um animal grande. Um urso estaria hibernando, e como você bem sabe, não tem lobos nesse lado do mapa. Então...

Milan arregalou os olhos, mas rapidamente disfarçou, o que o fez corar levemente. Não queria que a irmã achasse que ele era um tapado. Ele era o mais velho, ora!

– Acha mesmo que tem um monstro de núcleo aqui? – ele perguntou.

– Então acredita, né?! Eu sabia que você era esperto, já tinha começado a me perguntar como dividimos a mesma placenta.

– Sabe, seria impossível dividir a mesma...

– Tá, tá. – atalhou Emma com um aceno, como se estivesse espantando uma mosca. Milan odiava quando ela fazia isso.

– Mas... – ele continuou. – Se há uma besta de mana aqui, quer dizer que há um despertado... ou até um aventureiro.

Emma não disse nada, mas Milan tinha certeza de que ela estava se perguntando o que raios o irmão queria dizer com aquilo.

– Você é bem burra pra certas coisas. Au... – Milan foi interrompido com um beliscão. Após um tempo esfregando o braço com sofreguidão, determinou: – Cientistas tem a teoria de que os monstros ou bestas de núcleos são atraídos por aqueles que despertaram o quinto gene. Quer dizer, tem relatos de que já atacaram vilas repletas de civis, mas a maior parte deles acha que o quinto gene é como um imã, que atrai os bichos. Por isso a grande maioria dos despertados vão para academias, treinar suas habilidades e tal.

Emma pôs a língua pra fora e fingiu que ia enfiar o dedo na goela.

– Tá bom, nerd. Vamos deixar de blábláblá.

Milan a encarou enquanto ela se afastava.

– Às vezes me perguntou se temos a mesma idade.

– Sim, você com essas esquisitices e tal...
 
– Conhecimento não é esquisitice, Em.

Emma soltou um bufo; Milan imaginou que fosse um riso sufocado.

– É quando o sujeito tem apenas oito anos.

Antes de ter a chance de treplicar, eles ouviram um barulho. Um galho se quebrou um pouco longe, fazendo com que Milan segurasse no pulso de sua irmã e corresse para trás de uma enorme sequoia. Ficou encarando por detrás da árvore, respirando ofegado e olhando de soslaio para o lugar da zoada. Os segundos pareceram minutos, e os minutos pareceram horas.

Aos poucos, três sombras surgiram. Imediatamente, Milan ficou grato ao mesmo tempo que praguejou. Estava feliz e irritado.

As três sombras pertenciam a três garotos gordinhos. Os irmãos Finell.

O maior deles, e mais velho, era Jorge. Parecia ter 15 anos, ao passo que tinha apenas 12. Suas bochechas eram severamente cheias e vermelhas, como se um esquilinho tivesse enchido sua boca com várias nozes. Tinha um cabelo curto e bege, todo emaranhado. Seus olhos eram castanhos e seus dentes eram bem tortos. Seus irmãos não eram tão feios, apesar de serem bolotinhas também.

– Ora, ora, ora – bradou este, quando viu Milan e Emma saindo de trás de uma sequoia. – Se não são os irmãos aberração. Que estavam fazendo aí escondidos? – seu rosto tomou um tom fingido de surpresa. – Não me digam que... uau, quatro olhos, não pensei que você era capaz disso, logo com sua irmã. Se bem que ela é bonitinha.

Emma o encarou com desdém.

– Primeiro: que nojo. Segundo: só eu posso chamar meu irmão de quatro olhos, sua chupeta de baleia.

– Do que você me chamou, sua vadiazinha? – irritou-se Jorge, ficando tão vermelho que poderia explodir a qualquer momento.

– É isso mesmo que ouviu, cérebro de noz.

– Que quer dizer com isso? – atalhou ele.

– Se você precisa me perguntar, significa que minha acusação é recíproca.

Um dos gordinhos à direita franziu a testa, os olhos irados.

– Ela está lhe chamando de burro, irmãozão.

– Parece que o projeto de tampa de bueiro não é tão burro quanto... – Sussurrou ela.

Jorge virou-se para ela, iradíssimo.

Milan ficou enjoado com o linguajar de Jorge. Quer dizer, ele era uma criança como eles. Não deveria ser sujo e imoral como tinha sido há pouco. Mas tinha entendido muito bem a insinuação que o garoto fizera ao vê-lo sair detrás da árvore. Ele apenas não demonstrou, estava ocupado demais ficando tonto.

Enquanto sua irmã discutia com Jorge, suor frio descia por sua testa e espinha. Seu corpo esquentou de repente, vibrou. Era como se um alerta tivesse sido ligado na sua nuca. Suas pernas fraquejaram e sua respiração ofegou.

Milan caiu sobre um dos joelhos e uma enxurrada de imagens apareceram na sua cabeça. Era como nos sonhos. Imagens reais, insights proeminentes de uma outra vida. Uma que ele não sabia se tinha vivido.

Fechou os olhos fortemente e, ao abri-los de novo, era como se estivesse em outro lugar. Estava de pé no topo da ameia de uma varanda. Vestia uma armadura negra, uma capa espiralando em suas costas. Uma espada pendia junto à sua cintura. No céu roxo e nublado, criaturas aladas pairavam com o bater de asas. Ele olhou para baixo e uma multidão de pessoas batia escudos e lanças, como numa continência. Eles gritavam em uníssono. Flamulas e bandeiras espiralavam, dando imponência nunca sentida antes por Milan.

A imagem mudou e ele estava sentado num trono. Mudou novamente e novamente. Ele viu tudo de olhos abertos, era um caos. Nada era entendível. Até que ele se viu parado no meio de um espaço negro. Era um infinito de breu, sem nada acima ou abaixo. De repente, como se estivesse numa correnteza submersa, seu corpo começou a se mover. Orbes gigantes apareceram a esquerda e a direita, como reflexos na água. Mostravam diversos lugares, diversas pessoas. Pessoas que ele nem sabia que podiam existir. Subitamente, tudo parou.

Ele estava de novo na neve, respirando ofegante. Seus óculos estavam no chão. Ao lado, Emma cravava suas unhas em seu braço. A voz dela foi voltando ao normal. Tudo foi ficando mais nítido.

– Mil, que foi? Você está bem? – Estava tensa, preocupada.

– Não... algo aconteceu... algo não está certo.
Ela ficou quieta, como se escolhesse as palavras certas a dizer. Quando falou, sua voz estava tensa.

– Levante-se, temos que correr.

Antes que Milan pudesse perguntar o motivo, a resposta ficou clara. Emma era realmente muito forte para sua idade, ela tinha suprimido qualquer desejo de gritar, chorar ou sair correndo. Até mesmo sua voz havia saído suave ao pegar seu irmão nos braços.

Milan ergueu os olhos e entendeu, finalmente.

A cena era um horror. Havia um monstro humanoide de uns três metros de altura. Ele era todo esquelético, sua pele era cinzenta e peluda. Seus braços e pernas eram enormes e haviam galhos tão grandes quanto no lugar de seus dedos. Os braços, no entanto, tinham uma espécie de tecido de pele embaixo que ligava ao dorso, como asas. Seu rosto era medonho; os olhos eram negros e grandes presas saltavam de sua boca babosa. O focinho era como de um porco, mas bulbo e sulco verde lhe escorria face abaixo.

O monstro segurava o dorso de Jorge com uma das patas, a cabeça do menino tinha sido completamente devorada. Ele comia feito uma pessoa que mastiga uma fruta. Na outra mão, havia espetado um dos gêmeos. Sua cabeça pendia para trás, uma feição de horror e medo em seus olhos.

Kevin, que Milan supôs que fosse, estava de joelhos no chão, olhando seus irmãos serem devorados.

Se esforçando para não olhar, Emma envolveu o braço na cintura de Milan e saiu andando.

– Me desculpa, me desculpa, me desculpa, me desculpa... – ela dizia baixinho, provavelmente se culpando por ir até ali.

Mas como ela poderia se culpar? Eles eram crianças, nada disso poderia acontecer. Não deveria...

– E Kevin...? – Quando Milan olhou para trás, o monstro devorou metade do corpo cheinho do último dos irmãos.

Ele virou-se para frente. De algum modo, não sentia tanto medo, sentia preocupação. Era seu dever proteger Emma. Um perigo avassalador foi sentido por ele, se aproximando. Bem no momento em que ele empurrou Emma para o lado, o monstro pousou, arrastando a mão lateralmente e aberta. Ele ainda conseguiu arranhar as costas da menina, que caiu no chão, desacordada.

Milan caiu sentado, a criatura lhe encarando. O sangue escorria de sua boca.

A criatura abriu a boca para morde-lo. Ele com certeza seria devorado que nem pãozinho de mel, mas alguma coisa agiu dentro dele. O menino se moveu inconscientemente, se esquivando para o lado bem quando a fera mordeu onde ele estivera um segundo atrás. Ela lançou um olhar curioso para ele.

Milan já tinha ouvido falar sobre aquilo; lido, na verdade. Se o que estava acontecendo com ele era o que ele imaginava, então esses sentidos aguçados não seriam uma surpresa.

Mas o que um menino de oito anos poderia fazer contra um monstro daquele tamanho?! Ele pensou que o melhor seria se afastar de Emma, que estava acordando. Por sorte, as garras não entraram tão fundo na capa, que foi feita sob medida por Jorin. Não atoa o pai era um ferreiro requisitado por aventureiros experientes.

Emma ergueu o rosto, ainda aturdida, apenas para ver Milan feliz ao saber que ela estava bem.

– Em, fuja. Esse monstro é uma Múmia-Morcego, é pelo menos rank A, mas não tenho certeza. – Ele engoliu em seco. – Vá e chame um aventureiro de rank B.

– Eu não vou te deixar, imbecil. A culpa é minha. – Berrou ela.

– Não seja burra, Emma. Eu acho... acho que despertei o quinto gene... por favor, me ouça.

O quinto gene? Emma se perguntou. Se aquilo fosse verdade, então Milan era praticamente um gênio. O quinto gene só era despertado por pessoas entre onze e dezoito anos. Mas não era hora para aquilo. No momento de distração e conversa dos dois, o monstro avançou em Milan.

Ele foi rápido o bastante para perceber a investida do monstro, mas não para desviar. Era agora, ele morreria. Não queria! Afinal, quem quer? Uma enxurrada de imagens começou a aparecer em sua mente outra vez, que ficou nebulosa.

Milan notou poucas coisas numa fração de segundos. Os olhos cheios de lágrimas de Emma enquanto corria para a frente com os braços esticados. Ela tinha medo, ele via agora. Não por sua vida, mas medo de perder seu irmão. E ele a amou; faria qualquer coisa por ela, mesmo perder sua vida. Daria sua vida pela irmã e por qualquer um dos seus familiares.

Mas, droga... e tudo aquilo que sonhou? Queria conhecer mais da província que tanto lera... nunca saíra de Kaltsmeade, a vila artesã ao norte de Pressard, uma das maiores províncias do reino de Kampefeltt.

Não poderia conhecer as academias do reino, repletas de jovens ascendentes, o futuro da nação. Não sairia numa excursão, não seria um aventureiro. Não presenciaria batalhas épicas cheias de drama e suspense... cheias de aventura.

Não veria de perto os seus piores temores, isto é, monstros de quase dois metros que poderiam devorar alguém como quem mastiga uma bala de goma.

Milan sufocou uma risada irônica. Onde estava toda aventura agora?! Não presenciara tudo agora pouco?! Era louco por acaso?! Mas morreria feliz. Isso sim.

Apesar da crescente onda de lamúria e um sentimento de raiva no peito, um sentimento que nunca presenciou antes... somente em sonhos. Mas não era um sentimento seu, ele tentava se convencer.

O motivo da raiva não era porque ele nunca mais veria os pais ou a irmã, ou por não poder se tornar um aventureiro nem nada no tipo... a raiva parecia bem mais ancestral, mais tempestiva. Mais agressiva. Era ira!

Notou a bocarra do monstro, um bocado de dentes afiados e o bafo fedorento. Milan poderia estar agradecido por morrer protegendo sua irmã, mas aquilo não era honra, não poderia.

Nesse momento, uma força irradiou de sua mão. Era como se pegasse areia com as mãos e ela escorresse por entre os dedos.

Tudo aconteceu num único segundo. Uma areia negra espiralou para fora de sua mão, envolvendo a ele e o monstro. Pelo menos parte dele.

E tudo acabou. O espiralar da areia negra revoando a neve branca. Sulcos fundos se formando onde o monstro estivera junto do menino. Pássaros alçando voo sobre a copa das árvores e o vento ficando, pela primeira vez naquele frio inverno, calmo.

Quando a areia sumiu, os pássaros se afastaram e o único som a ser ouvido era o de Emma, nada restara. Isto é, junto do tronco da criatura, Milan também sumiu.

A parte inferior caiu na neve, sangue verde escorrendo de um corte limpo, os músculos espasmando.

Tudo sumiu! Exceto o tronco inferior do monstro e os gritos de Emma ecoando pela floresta invernal.



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