O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 18: BERSERKIR

 

BANG!

Milan foi arremessado no chão feito um saco de cimento. Caiu duro, mole, cansado e suado.

– O estado Berserkir exige concentração, Sgaard, coisa que você claramente não está fazendo.

Milan se apoiou nos cotovelos, apertando bem os olhos. Teve alguns dias para se recuperar do embate contra os canídeos e, quando Cildin teve certeza de que estava bem, introduziu-o num treino bastante absurdo para seu gosto.

Cerca de uma semana havia se passado desde o início, e não tiveram nenhuma melhora. O mau humor de Milan só cresceu.

Talvez fosse pela dor do machucado, que era recente. Ele sequer conseguia olhar para o próprio braço sem conseguir conter a bile que subia pela garganta. Não estava tão feio, o processo de cura utilizado por Cildin conseguiu recuperar boa parte da carne perdida. O duque também disse que pelo fato dele ser um despertado, sua resistência era maior, bem como a força e dureza da pele. Isso evitou que os dentes do canídeo afundassem mais.

Mas ainda havia uma cicatriz, e doía sempre que ele olhava para ela. O pior mesmo era o ombro; sempre que Milan erguia o braço para manejar a boken, uma pontada percorria por todo seu corpo. Em dado momento, Cildin disse que ele deveria se acostumar com a dor, pois ela nunca mais iria embora. Isso o irritou.

A irritação de Milan também poderia ser pelo simples fato do elfo não medir esforços para humilhá-lo. Era um treino suicida. O pior de tudo era que sequer usavam espadas de verdade. Aparentemente o duque élfico não confiava em Milan para manejar uma.

Milan sequer tinha treinado sua aura. Cildin disse que esse treinamento iria molda-la. O menino teve duvidas mas se absteve de perguntas.

Era final de tarde e as pernas de Milan tremiam, bem como seus braços. Ele lutava para não apagar, mas estava bem difícil. O que o mantinha acordado era a voz irritante e irascível de seu mestre. O elfo sabia ser chato quando queria.

– Tem que acessar toda aquela raiva, Milan, lembrar do ponto que o fez despertar essa habilidade. Só assim poderá evoluir.

– Só não entendo – iniciou Milan, enxugando o rosto. – Como isso pode me ajudar. Afinal, Berserkir é uma habilidade que só se usa com bastante raiva, certo?

O duque cortou o ar, como se fosse impossível manter-se parado. Abriu brevemente um olho.

– Há muito, muito tempo, em tempos remotos onde a guerra assolava todo lugar onde houvesse terras e um povo para viver nela, surgiu um guerreiro forte – o duque soltou o boken no chão e abriu e fechou a mão, checando a palma avermelhada. – Ele vivia com ódio de tudo e todos, e uma habilidade surgiu. Berserkir vem de Berser, “Ber” era como o guerreiro se chamava, e “Ser”, significa, numa língua mais antiga que o luin, primitivo. Ber conseguiu acessar uma força inerte, um gene adormecido dentro da sua raça, Milan.

– Ber era humano...

Cildin assentiu.

– Somente vocês conseguem acessar essa habilidade, pois como bem acredito, são detentores da Intensidade. Tudo seu é mais intenso: raiva, tristeza, felicidade, ódio, amor... vocês não são o tipo de raça que vira a página, que segue com a vida. E eu os admiro por isso, admiro. Talvez seja pela curta vida de vocês nesta terra, ou pela consciência de que podem ser mais se quiserem; mas o seu cerne é lindo, e alguns de vocês não percebe isso.

“Berserkir não serve somente para acessar o estado de fúria, ele intensifica as emoções que já estão intensificadas. Todos os sentimentos citados podem ser a fonte para suprir essa habilidade, só resta o usuário escolher. Pegue essa habilidade para si, controle-a, melhore-a, seja detentor de algo que eles não possam tirar.”

Mil apertou os olhos.

– Eles quem?

Cildin pigarreou e cuspiu algo no luin antigo. Abaixou-se e pegou o boken.

– O que se passou pela sua cabeça quando Berserkir foi ativado?

Milan suspirou, empertigando as costas. Resolveu ignorar o fato de que o duque ignorou sua pergunta.

– É nebuloso. Pensei na minha família, no desespero que senti quando Ema – ele parou e limpou a garganta. Os olhos ficaram molhados, mas ele não deixou o elfo perceber. – quando Ema quase morreu. Mas tudo se resume ao fatídico acontecimento em minha vida, não é? Tudo mudou ali, naquela merda de lugar.

Milan levou a mão ao rosto, tentando sufocar a respiração que saia em intervalos nada lentos. Seu peito inflou e o coração acelerou, com palpitações por todo o corpo. Se lembrou das noites com Droner. Sentiu-se sujo, imundo, como nunca tinha se sentido antes.

Cildin notou a mudança no comportamento do rapaz, e viu pequenas quantidades de orka saindo do corpo do rapaz como vapor. Tinha um tom esverdeado, mas bem imperceptível. Só via quem se concentrasse. Contudo, era forte, opressor e duro. O próprio Cildin teve dificuldade para resistir.

Ele nunca tinha visto algo tão impressionante. Conhecia vários guerreiros, dentre humanos, elfos e orcs. Todos mais fortes que Milan. Mas já treinara muita gente pra saber que isso era absurdo pra alguém no início.

Um pensamento brotou na mente do duque, e ele riu consigo mesmo. Seria possível?

– Isso! – Sua voz surgiu como uma agulha, tentando controlar tanto a emoção de seus pensamentos quanto a falta de ar ocasionada pelo orka de Mil. – Use isso a seu favor, Milan. Pegue sua espada.

O menino continuou exasperado, mas logo tomou conta de si. Ele já sabia um pouco de controle de orka para perceber o que emanava dele.

Não foi nada reconfortante quando se tocou de algo que vinha o atormentando.

“É mais fraca do que aquela, mas tenho a mesma sensação...”

Com uma onda de renovadora estamina, Milan apertou firme o cabo do boken e forçou-se a se levantar.

A adrenalina corria em seu sangue, e ele se perguntou se isso era o modo Berserkir. Sentia-se mais forte, mais corajoso, mais poderoso. Mas mais entristecido e irritado. Mais feroz.

Ignorou as pontadas e os alertas de seu corpo acerca das feridas. Era irrelevante.

O orka saindo de seu corpo era quente e acalentadora, e ele viu quando o duque se posicionou com um braço nas costas e o outro para frente segurando a espada de madeira. Viu quando seu orka, saindo em anéis feito onda encostava no corpo do elfo e repelia, e via a careta que ele fazia quando acontecia.

– Libere seu orka também.

O duque ergueu um sorriso amarelo.

– Você não aguentaria.

Mil sorriu e correu, percebendo pela visão periférica que seu orka agitava as árvores e até as modificava. Viu esquilos correrem e roedores-lépidos tão velozes que sua mente só foi capaz de captar a cor de sua pelugem.

Ele era destro, mas ergueu o boken com a mão esquerda. Cildin ficou em guarda esperando o choque. Quando aconteceu, o estalido foi mais alto que o esperado, e orka voou por toda parte feito vendaval.

Se afastaram e os braços de Milan tremeram quando ele reforçou o aperto. Cildin abriu um sorriso; era a primeira vez que Mil viu esse.

O duque diminuiu o espaço, fazendo uma finta para o lado e cortando horizontalmente. Mil previu e desviou por pouco, arqueando as costas para trás. Trouxe a espada com tudo novamente em diagonal, mas o duque já tinha se recuperado e também ergueu-a vindo de baixo.

As armas se chocaram, produzindo outro som inquietante, mas com um toque da energia de Cildin, que fez Milan dar dois passos para trás.

Trocaram vários golpes de novo, e a cada um deles a raiva e a emoção de Milan aumentavam. Sua força ficou maior ao passo em que ele compreendeu a fundo a própria habilidade, e isso somou-se ao fato dele mesmo compreender uma luta contra outro mais forte que ele.

A emoção acumulada em seu peito, o regozijo daquilo que ele imaginava ser o ponto alto de uma batalha, a raiva sentida por Droner, o medo de ser fraco, tudo isso junto fizeram com que sua força se elevasse mais e mais.

Eles continuaram num ritmo intenso, as espadas de madeira produzindo um som seco e agudo, e a energia de Mil vazando cada vez menos; isso porque ele compreendeu que liberava muito orka e isso era prejudicial para seu controle de aura.

Cildin orgulhou-se disso, pois viu como se aluno se adaptava fácil. A agilidade, a rapidez, a força. Tudo isso aumentou gradativamente, e a própria aura de Milan começou a escapar.

O duque desviou de um chute horizontal, inclinando-se para baixo e girando no eixo. Deu uma rasteira em Mil, que caiu com tudo no chão. Ele não esperou cair, se projetou rapidamente num movimento anormal para alguém pouco flexível e se afastou de seu mestre.

Cildin tinha os dois olhos abertos, energia vazando dele. Suspirou fundo e controlou a aura que vazava lentamente. Milan, que sentiu um pouco desta aura, ficou sufocado e permaneceu sobre um joelho, fingindo recuperar o fôlego.

Fitou as próprias mãos, comedido demais para encarar seu mestre. Sua mão tremia, sangue brotando pelo cabo do boken e cheia de calos, avermelhada. Isso não mudou o que ele sentia: uma vontade incontrolável de mais. Sede de lutar.

Milan se ergueu, ciente que sua vitalidade estava chegando ao fim e que os espasmos ficaram maiores. Ignorou tudo isso, só queria saber de lutar; era a primeira vez que seu mestre lhe dava tanta liberdade.

Ele deu um passo e seu corpo travou. Suas pernas tremiam, e seus braços espasmavam tanto que ele acreditou que fossem cair.

– Você foi excepcional, Milan. – Disse o duque, com um tom de voz sutil e lento. Ele sorria, sem mostrar quaisquer sinais de cansaço. Estava resoluto e austero.

O garoto não compreendeu o que acontecera até olhar para baixo e ver seu boken se despedaçando em milhares de pequenas partes, e uma energia esverdeada fluindo por entre essas partes. Logo não conseguiu segurar os olhos e apagou.



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