O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 17: MUNDO DOS SONHOS

 

Milan não sonhou imediatamente. Só ficou estagnado num mar de consciência amplo, escuro e solitário.

Durante boa parte do tempo em que esteve lá, vagando nas naturezas inóspitas de seus pensamentos, fora acometido pelo sentimento sombrio de tristeza profunda, sem ter noção de onde estava e o porquê.

Não tinha totais capacidades cognitivas de chegar a um resultado coerente. Não pensava nada com nada, só sabia que estava triste e que seu corpo doía. Só sabia que uma melancolia perturbadora lhe assombrava, crescendo mais e mais em seu peito. A consciência finalmente ganhou vida, bem como os entornos ganharam cores.

Ele iria vagar novamente e, como sempre, não se lembraria de nada ao acordar. Ainda não tinha essa capacidade, nem estava pronto.

Havia um imenso campo arado, ele via, enxergava. Sentiu a brisa do mar bater em seu rosto, os ventos uivando por seus ouvidos. O cheiro acalentador de frutas silvestres, trazidas com um toque de sutileza disfarçada pelos ventos que outrora castigaram seus lindos olhos lacrimejantes.

Ora, ele observava tudo a uma distância aérea considerável. Via como um lindo álamo se dispunha e, para além de suas portas convidativas, hortas cresciam. Pereiras, macieiras, limoeiros, cajueiros, cajazeiras etc.

Outro vento soprou, trazendo consigo o aroma de terras negras e férteis, prontas para entregar mais alimento jovem e ansioso por sua colheita. Mas nada é bom o tempo todo. Se você é feliz por muito tempo, se a tristeza nunca bateu na sua porta, se você nunca sentiu os dedos nodosos da ruindade humana e do mantra cármico de que todos sofrem e se regozijam na mesma intensidade, se prepare. Isso não é verdade. Não para pessoas como Milan.

Ele não se entregou ao riso agudo e gostoso que soprou em seus ouvidos, convidativos e elucidativos; ele não se entregou ao aroma de jasmim, nem ao gosto agridoce de uma fruta que ele sequer chegou a provar. Não se entregou a nada disso, pois sabia que por trás dessa fachada, estava a tristeza, a mortalha aguardando para fincar suas garras sujas, afiadas e mortais. O sentimento depressivo de não poder ter, de não poder rever. Aquele era um sentimento seu. O sonho, não.

Tudo foi devastado. As árvores reduzidas a cinzas. Uma tempestade envolvendo o mundo. O riso um choro. O solo tornou-se seco, banhado a sangue, merda e mijo. E corpos. Corpos antes vívidos e alegres, agora vis e sem emoção. Olhos tristes, de quem viveu uma vida plena e alegre; de quem nunca sentiu o cheiro e a faca afiada do desespero. Olhos tristes, de quem perdeu tudo isso.

O homem asqueroso, curvando-se sobre incontáveis guerreiros, subjugando-os. A personificação da maldade, da ruindade escancarada. Roubava o brio dos homens, engolia-os, tornando-os seus. Seu riso era retumbante, e sua imensa aura, sua imensa vontade devastadora, capaz de aterrorizar até o mais corajoso dos homens, sondou Milan.

E ele não se sentiu triste ou temeroso. Era como se essa aura fosse sua, mesmo que o sonho não. Mas não era sua, pois aquele era um e ele era outro, e não podem haver dois do mesmo ao mesmo tempo ou em épocas diferentes, pois a morte é o fim, pelo menos para aqueles com o dom da vida.

Mas, de alguma forma, ele reconheceu aquela aura, ou parte dela. E se aterrorizou mais por conhece-la, por chama-la de amiga. Temorizou-se não com o que poderia lhe acontecer, mas o que ele, Milan, poderia causar.

E viu os incontáveis homens arranjarem um pouco de força para combater aquela aura maligna, que mataria um homem fraco de elo e mente. Viu os homens prostarem força e decência, imaculados contra os desejos ruminantes do outro. O outro. Vestindo negro da cabeça aos pés. Era inumano, alheio a qualquer sentimento bom que esta raça poderia portar.

Apenas seu olhar era mais perverso que o mais vil dos orcs. Somente sua presença era mais impiedosa que a de um elfo. Somente seu riso era mais nojento que o de um gigante. A sua astúcia, mais imperiosa que a de um anão. E sua ambição, sua extrema vontade de ter, possuir e destruir, de não se contentar com o pouco e de querer mais e, ao ter, querer mais do que o que queria. Ambição, desejo e perversidade. Ganancia. Facínora. Humanidade.

Foi espetado por armas comuns e riu quando seu sangue, para a surpresa de todos, vermelho, caiu. Sua risada rimbombou. O eco maldoso, produtor de trovões, do mais puro medo. Da ânsia imoral do medo; da vergonha comumente escondida. E com um varrer de sua longa espada, maior que seu braço e corpo, levou vários a uma morte transtornada. E o medo em seus olhos, observando os esforços inúteis. Dor, tristeza, arrependimento. E nos olhos do Usurpador, maldade, ânsia, felicidade, regozijo. Tristeza.

Milan acordou com seu corpo doendo. Seu peito inflava e seu coração batia acelerado. Milan pensou que ele fosse saltar do peito, correr por sua garganta, precipitar-se boca afora. Mais do que isso, seu corpo inflamou do desejo desesperador de extravasar. Ele queria mais; lembrou da hora em que matou os lobos. Sentia o peso nos braços, a força que não possuía surgindo de seu âmago. Queria mais daquilo.

Cerrou os dentes, se erguendo. Seu braço estava enfaixado, e uma pontada no seu ombro o fez conter um grito, mordendo os próprios lábios. Só se deu conta de que os mordia quando sangue escorreu. Mas as dores sequer eram comparáveis.

– Você sonha, não é?

A voz de Cildin soou em algum lugar daquele lugar. Estava escuro, e não havia fogueira. Milan se virou para onde pensou que a voz tinha vindo.

Demorou até que sua resposta saísse.

– Todo mundo sonha, é natural.

Todo mundo não – A voz de Cildin soou desta vez de trás. Milan se virou. – Elfos não sonham. Mas não é sobre esse sonho que estou falando.

Milan engelhou a testa, confuso sobre as palavras de seu mestre. Ele foi bem cuidadoso ao dar ênfase em ‘esse sonho’. E Milan sabia como o duque era cuidadoso com as palavras.

– Estou falando sobre o vagar, habilidade rara de andar livremente dentre os sonhos, visitando o passado, presente e futuro. É desse tipo de sonho que estou falando.

Sua voz soou mais próxima, mas perto do fim, soou mais distante.

– Portanto é importante que me diga a verdade: você vaga?

Milan notou a habilidade de Cildin fazendo efeito. Ele não estava pedindo uma resposta, exigia. E Milan não se conteve, lutou, é fato, mas não aguentou e, por fim, cedeu à pressão.

Levou a mão à cabeça, irritado.

– Já pedi que não usasse isso em mim.

– E eu disse para não esperar nada de ninguém. Agora responda! – Mais imposição. Cildin estava nervoso e Mil não sabia o porquê.

– Eu não sei! São... são fragmentos indistintos, por vezes sou um guerreiro antigo em batalhas e guerras, sempre vencendo-as. Mas não são apenas... sonhos, é como se eu sentisse cada coisa. Eu de fato vivo aquele momento.

Cildin se calou, e seus passos ecoaram pelo lugar. Tornou a falar após longa pausa.

– Quantas vezes isso aconteceu?

– Não sei...

– Quantas vezes...?

– Sempre que adormeço.

Cildin ficou calado. Parecia nervoso.

– E alguma vez teve a sensação de que estava vigiando o presente?

Mil apertou os olhos, buscando saber a localização exata de seu mestre.

– Houve uma vez... estava numa sala escura, e havia uma pessoa conversando com uma figura pequena sobre uma mesa redonda... era o luin antigo, mas não entendi muito, pois a voz e o modo do idioma ser dito eram confusos... então o sujeito soube que eu estava vendo e ouvindo sua conversa e, de alguma maneira, esticou a mão para me tocar.

Os passos de Cildin pararam, e Mil teve a sensação de estar sendo fuzilado pelos olhos do elfo. Ele tornou a andar, e os passos se tornaram mais distintos. Ele se aproximava.

Mil sentiu um sopro em seu rosto e o som de chama acendendo. Queimava. O rosto de Cildin estava bem próximo, irritado, os olhos bem abertos.

– Quando?

Milan manteve o olhar fixo do elfo sobre si. Tremia por dentro, e sabia que algo estava errado.

– Quando usou o Sussurros pra me fazer dormir.

– Deveria ter me dito – a voz dele era penosa. – Discípulo tolo. Deveria ter me dito!

Ele se afastou de novo.

– O quê?

Cildin se afastou mais e mais.

– O QUÊ? – Gritou Milan, para ter certeza de que era ouvido. O duque parou e se virou.

– É cedo para que descubra, mas por ora precisamos retesar isso.

– Retesar o quê?

– É cedo.

– Droga, Cildin, me diga. Espera que eu lhe siga cegamente sem saber o que tá rolando? Me fala, porra.

– É o vagar, Milan, como eu lhe expliquei. Mas é cedo para que continue vagando, pois coisas ruins podem acontecer.

– Que tipo de coisas ruins? – Indagou ele, apertando os olhos a fim de enxergar melhor naquela escuridão toda.

– Apenas saiba que durante o sonho, coisas acontecem e o dano vai para sua mente. É chamado Oneirocinese, manipulação de sonhos. Mas no seu nível... nunca vi algo parecido.

– O que? Por quê?

– Só saiba que os usuários dessa habilidade conseguem apenas dicas do futuro e coisas pertinentes do passado, e não podem controlar suas vontades dentro dele. Você é diferente. Consegue ir ao futuro, ao passado e ao presente, mesmo que inconscientemente. Mas tem certo controle sobre seus sonhos.

A mente de Milan vagou pelas coisas mais absurdas possíveis.

– Isso é Primor? Tenho duas habilidades aprimoradas?

– Não sei ao certo, mas é algo perigoso que, sem controle e treinamento, pode causar sua ruína.

– E com ruína...

– Algo pior do que ser banhado por energia estagnada, Sgaard. Precisamos parar isso até que esteja pronto o bastante para controlar.

– E como paramos isso?

– Deve que falar com o ser mais poderoso que conheço, pelo menos no mundo dos sonhos.

– Como assim ‘deve’? Eu vou falar?

Cildin assentiu, respirando fundo.

Ele gosta de pessoas que resolvam suas situações por si mesmos. Não vai querer um intermediador, e é por isso que preciso te treinar antes.

Milan respirou fundo. Não sabia ao certo se isso seria bom ou ruim. Contudo, precisava de respostas.

– Certo, por ora aceito essa explicação, mas há coisas que preciso saber, e ficaria grato se você respondesse.

Cildin apertou os olhos, surpreso pela audácia do garoto.

– Não seja arrogante...

– E você não seja prepotente. – Mil ficou surpreso com o próprio tom. – Explica as coisas e espera que eu o siga feito um cachorro. Eu já falei que não sou um fantoche, e que preciso estar a par da situação. Então seja claro no que me diz respeito, por favor.

O duque se virou. Quantas crianças de oito anos tinham um gênio tão forte? Ou melhor, quantas crianças de oito anos conheciam a palavra, o uso e o significado de prepotente?

Mas em se tratando de Milan, Cildin aprendeu da pior maneira que ele não era um garoto comum. Podia ser inocente e não saber de muitas coisas, mas lidava com tudo com maturidade e maestria advindas de um amadurecimento precoce.

Cildin conhecia elfos duzentos anos mais velhos que esse menino que sequer sonhariam em falar nesse tom com ele. Ele se aproximou.

– Se você quer ser tratado feito um adulto, então o será. Que é que quer saber?

Milan respirou.

– Como descobriu sobre essa habilidade?

– Elfos não sonham.

– E como-

– Durante sua saidinha noturna, a força e a magia foram demasiadamente descomunais. Tudo em você parece ser demasiado. Isso causou um rebote estranho: eu sonhei.

– E elfos não sonham...

– Exato. Ninguém pode saber que você possui essa habilidade, Milan, não agora.

– E deixe-me adivinhar o motivo: é cedo demais.

Cildin assentiu.

– Só não entendo o porquê.

– Um dia você saberá. No entanto é crucial que trabalhemos outras de suas habilidades. Sua aura fez um grande estrago, e o protetor da floresta está bravo.

Milan coçou a cabeça, buscando as memórias, lutando para se lembrar. Não lembrava.

– Durante seu probleminha com o canídeo, você entrou em um estado primitivo e incontrolável. Quase morreu novamente. Não preciso dizer que tem uma capacidade anormal de buscar complicações para casos simples. Lembro perfeitamente de pedir para pegar o roedor-lépido. Fui outra vez desobedecido. Que aluno rebelde arranjei.

Milan suspirou. Não queria ouvir essa ladainha. Ignorou a alfinetada do elfo.

– O que aconteceu exatamente? Que estado é esse?

– Berserkir. Um estado de fúria e poder incontrolável em que o usuário perde a consciência. Devo dizer, mesmo um recém despertado, você é alguém com dotes surreais para um humano.

– Não para uma criança?

– Sejamos modestos.

Milan pigarreou.

– Sua força superou e muito da vez em que matou aqueles orcs, e sua aura estava mais poderosa também. Teve uma melhoria considerável, e matou dois predadores com as mãos nuas. O outro apagou devido a pressão exercida. 

– Isso o irritou? 

– Pode-se dizer que sim. O protetor luta para que a paz seja mantida nestes jardins e além dele, e você perturbou essa paz, fez mal a outras criaturas com seu péssimo controle sobre a aura. Entendo que foi um despertar, e que você tem passado por muitos ultimamente, mas precisamos reverter essa situação. 

Milan ficou pensativo. Era coisa demais. Coisas estranhas continuavam a lhe acontecer, e ele sequer sabia o motivo. 

– Enfim – prosseguiu o duque. – precisa trabalhar essa habilidade e outras mais. Quando eu tiver a certeza de que está pronto, então o levarei até aquele que pode nos ajudar na outra questão.

– Onde ele vive? É muito longe? Quem é ele? 

Cildin sorriu.

– É engraçado você perguntar isso. Você conhecerá o Rei Onírico, protetor desta floresta.  



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