O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 16: ESTADO MAIS PRIMITIVO

 

Mil se ergueu lentamente, buscando não perder os predadores de vista. Tinha a leve impressão de que se desviasse o olhar pelo menor centímetro que fosse, seria devorado.

Os olhos deles eram de pura ansiedade, evidenciando sua sanguinolência e sede por carne, o sabor de quero mais. E seria apetitoso. Milan seria como um belo cordeiro servido no dia de Júlio I.

Baba escorreu pela boca das criaturas, e elas também buscavam não perder ele de vista. Isto é, ele era tão apetitoso aos seus caninos. Tão suculento, tão macilento. Tão verdadeiramente inofensivo.

Seus pelos se eriçaram e, em conjunto, deram um passo perfeitamente milimétrico. E mais outro, e outro.

Droga! Pensou Mil Não há nada que eu possa fazer... nem aqueles merdinhas corredores conseguiram escapar. Que é que eu poderia fazer? Escalar a árvore de novo?

GRAAA

Como se ouvisse os pensamentos de Mil, o pássaro grasnou.

Nada do que aprendi surtirá efeito. Finta de esgrimista, pezinho para trás uma ova. Preciso de algo mortal!

Droga! Estava de novo naquela sinuca de bico. Naquele marasmo, entre a vida e a morte. Por que de repente essas coisas começaram a acontecer? Por que de repente com ele? Isto é, todas essas coisas perigosas e situações de risco.

Não era assim que Mil imaginava ser a vida de um herói. Quer dizer, se é que ele era um herói. Se é que viria a se tornar um.

Tudo de novo.

Não! Tudo de novo não! repudiou Mil a si mesmo Desta vez eu tenho conhecimento e prática, e posso usá-lo a meu favor.

Era verdade. Das outras vezes, Milan não sabia se corria ou se chorava. Quando enfrentou a Múmia-Morcego, só correu em disparada, lutando para salvar sua irmã. Agora ele tinha de se salvar. Não era bem a mesma situação, antes estava disposto a dar sua vida, agora estava disposto a arrisca-la para ter uma chance. É, ele também já não era o mesmo.

Mesmo tremendo por dentro, tentou não transparecer. Tinha lido em algum lugar que predadores feito esse – isto é, se isso fosse um canídeo – sentiam o cheiro do medo de longe.

A criatura se precipitou, e por pouco tempo Mil achou ter visto um rastro de inteligência nos imensos olhos caramelizados. Os dentes molares ficavam a uma distancia curta uns dos outros, e sua mandíbula mordiscava o ar, sem que os caninos se encostassem.

Foi aí que Mil percebeu algo muito estranho, que não deveria ter esquecido tão facilmente. Este não se tratava de uma besta de núcleo, era apenas um animal comum. Isto é, bestas de núcleo não tinham qualquer traço de personalidade ou inteligência, eram criados, por quem quer que fosse, somente com o fim de destruir os despertados; mas esse não queria destruir um despertado, ele queria apenas comer. Mesmo que por pouco, Mil se tranquilizou.

Antes, ele foi capaz de matar uma besta de núcleo de Rank B, mas a um grande custo. Sim, até hoje ele sentia o preço; a conta veio com juros e sem recibo.

Mas havia uma chance, e ele a fisgaria sem sombras de dúvidas.

Esperou até que a criatura se aproximasse um pouco mais, e esticou o braço, roçando a base da mão no focinho dele. O bicho se assustou, pois não esperava que o garoto, até poucos instantes assustado, agisse assim.

Ele choramingou, indo para trás. Milan se levantou e circundou a árvore às suas costas, correndo em disparada.

Ouviu o som do mesmo canino rosnando e o uivando. E pôde ouvir também os outros dois correndo em disparada atrás dele.

Não tinha chances, sabia disso, mas diante da péssima situação, deveria usar tudo que tivesse a favor de si. E lembrou de algo que por pouco tempo se esquecera: sua força.

Cildin havia dito que um recém-despertado era um pouco mais forte que um orc verde; isso se mostrou ser verdade quando, apesar de ter usado seu primor, derrotou facilmente e com maestria aqueles orcs de antes. Até mesmo chegou a ferir o maldoso Droner. Então, em tese, ele tinha sim uma chance de derrotar os canídeos.

Sim, ele tinha uma chance, só precisava fazer bom uso disso. Isto é, de sua força, da situação e do ambiente. Na verdade, não precisava de arma letal alguma, transformaria a si mesmo em uma.

Pulou algumas raízes que, estranhamente, surgiram ali. Mas ele lembrava daquele percurso, ficou a manhã inteira por ali; mesmo assim, não se recordava de haver tantos obstáculos, afinal, o espaçamento entre as árvores era bom para uma pessoa pequena como ele andar ou correr; e até mesmo as raízes, musgos e pedras ao redor do lugar, não dificultavam tanto; várias vezes ele encontrou facilmente o roedor-lépido se escondendo por ali, afinal. Mas então o que estava acontecendo?  

Ele tornou a saltar, desta vez sobre um musgo e, ao aterrissar, seu pé afundou numa cova rasa. Será que o terreno estava sendo modificado para retarda-lo? Se sim, somente uma pessoa poderia estar fazendo isso, e ele, Milan, não gostou nem um pouco disso.

Olhou por cima do ombro e um dos canídeos se precipitava em uma alta velocidade.

Milan tentou, numa vã tentativa, puxar seu pé; mas o animal se precipitava com bastante velocidade, e Mil só encarou enquanto ele pulava sobre o arbusto em grande estilo e abria a bocarra.

O garoto virou o rosto e fechou os olhos; ergueu o braço direito e sentiu os enormes caninos fincando-se na carne de seu antebraço, adentrando as três camadas da pele; uma pontada irradiou por todo seu tronco.

– AAHHHHH! – Ele berrou, lágrimas brotando de seus olhos.

Finalmente abriu os olhos e viu a criatura mordiscando o braço dele como um cão sarnento chupando um osso. Sangue caia em cascata e sua visão ficou turva, mas ele estava elétrico demais para desmaiar, pois a visão de seu braço sendo moído era demais para ele.

Ele apertou o punho direito, sentindo a força do braço se esvair. Tentou balança-lo, mas a criatura era maior que ele e bem mais forte.

Àquela altura, Mil ficou surpreso por sua resistência. Tinha certeza de que se fosse um pouco antes de despertar, o osso já teria se partido, o braço já teria virado picolé.

Mas ele tinha a sensação de que o bicho só tinha conseguido perfurar a carne, tendo dificuldade para chegar ao osso.

Isso deveria ser fruto de três coisas: o corpo subdesenvolvido por causa do despertar; Milan ter se molhado na cascata todos os dias durante as últimas duas semanas e meia, e o treinamento severo que Cildin emplacou nele.

Mesmo que estivesse sendo feito de chupeta, ficou satisfeito com o próprio desempenho e, melhor, com as horas gastas com Cildin. Ainda que o duque fosse o responsável pela sua dificuldade na floresta, ele, Milan, agradeceria corretamente caso sobrevivesse.

Com uma explosão de entusiasmo e ódio, Milan buscou no fundo de seu âmago força e raiva, lembrando-se dos dias passados na brigada de Droner. Toda a raiva contida, guardada no fundo de seu coração, poderia ser explorada agora. E ele tinha raiva, sabia disso. Tinha um ódio de doer os ossos, que remoía suas entranhas e subia por seu estômago feito bile, borbulhando e chamuscando.

Ora, com toda a força que tinha, ergueu o braço esquerdo e veias saltaram por ele; ainda apertando seu punho direito, forçou a criatura a ir ao encontro de seu outro braço.

Com um berro estridente, cravou os dedos nus no músculo cleidocefálico. Era o pescoço, ele lembrava bem a anatomia dos membros da família canídea; houvera lido quando aprendeu a ler.

O bicho choramingou, mas não tirou os dentes de seu antebraço. Enquanto sangue e lágrimas rolavam, Mil gritou mais e apertou mais sua mão entorno do animal. Numa rapidez absurda, soltou a mão do pescoço e cravou-a no axis, isto é, a segunda vértebra cervical.

E então apertou, buscando soltar os dentes do bicho de seu braço. O pescoço da criatura era muito largo, e os dedos de Milan sequer preenchiam 1/3 da largura, mas a força e a pressão exercidas ali eram demais, e ele sentiu que o animal enfraqueceu sua mordida.

Milan gritou mais à medida que sua raiva crescia e seus dedos afundavam no pelo fedorento do animal; ele afundou e afundou, e a mordida cedeu. Puxando o braço direito da boca do bicho, ele mudou a estratégia; o bicho havia perdido um pouco da consciência, e isso foi o suficiente para que ele, Milan, pegasse, com cada mão, as partes de cima e de baixo da boca da criatura.

Esta voltou a si, e começou a rosnar e choramingar, mas Milan estava com muita raiva. Ele trouxe o bicho para perto, ignorando as enormes unhas que criavam fendas em suas pernas, barriga e braço. A língua da criatura batia feito chicote nas mãos de Milan, mas ele também ignorou.

Os choramingos da criatura aumentaram ao passo em que Milan, com toda sua força, quebrou a boca do bicho. Assim dizendo: ele segurou bem a mandíbula do canino, ignorando os dentes afiados rasgando seus dedos e criando cicatrizes profundas demais para serem esquecidas; fez o mesmo com a parte de cima.

O canino estava claramente desesperado, mas Milan nem ligou; seus olhos estavam escuros de uma fúria incontrolável. A pressão subiu, seu orka lentamente sendo esvaído. Isso deu força para ele.

Com um último urro, Milan quebrou a mandíbula da criatura; isto é, separou a mandíbula da parte que a encimava, ignorando ainda mais os protestos ferozes da criatura.

Seu orka escapuliu ainda mais, e ele, Milan, se encontrou numa situação devastadora.

Com a adrenalina a mil, o corpo todo ensanguentado e lágrimas escorrendo, conseguiu sair da cova bem a tempo em que os lobos chegavam. Teve certeza de que as criaturas eram de fato inteligentes, pois eles pararam por um segundo e observaram a cena diante deles.

O garoto repleto de sangue, suado, chorando rios, e o corpo da sua igual, isto é, do canino que Mil sequer tivera a capacidade de descobrir a espécie, morto, a mandíbula pendurada.

Ora, os lobos, como o menino decidiu que seriam, portanto, avançaram e ele, Milan, permaneceu parado. Um dos lobos seguiu por cima, visando a parte do pescoço do menino.

Foi um salto bem bonito, apesar de seu tamanho. Ele buscou cravar os dentes no pescoço de Milan, mas o ergueu o ombro, e isso causou um movimento inesperado para o astuto animal. Ele cravou os dentes no ombro do garoto, que berrou; mas era o que queria.

Com a força ainda pulsando, Milan sentia que poderia fazer qualquer coisa. Poderia escalar montanhas, derrubar árvores, escavar fossas, matar lobos.

Mesmo que estivesse fraco, era notório que sua estamina estava lá no alto, e ele aproveitaria esse salto de energia, essa elevação da força tão descabida e, mesmo assim, tão bem recebida.

O braço direito não tinha força alguma; ele pendia entre carne revirada, cartilagem e veias. Sangue jorrava, e a ferida começava a inchar. Mas Milan não desistiria; abraçou o lobo, ficando num modo pouco confortável.

Foi a mesma história: os braços do menino eram tão pequenos que mal conseguiam dar a volta no dorso da criatura. Mas isso não o fez desistir. O lobo se debateu dentro do abraço de Milan, sem saber se largava o ombro ou se arranhava.

Milan ergueu o rosto, quase desmaiando, a dor irradiando por todo seu tronco, mas não desistiu. Seu ódio só aumentou e, consequentemente, ele se sentiu mais forte. Era como se mesmo que ficasse mais fraco, a raiva, o ódio e o ressentimento fossem seu melhor combustível. Sua força era inigualável, e ele sentiu como se pudesse tocar os céus.

Ora! Milan apertou o tronco do lobo, gritando e chorando, ignorando o próprio urro e choramingo da criatura. A esta altura já nem ligava mais para o outro, que sequer atacou.

Milan apertou e apertou, até que ouviu um estalo e um choramingo. O lobo, que era muito maior do que ele, pendeu a cabeça por cima de seu ombro; a esta altura já havia parado de morder. Estava morto.

Mas o ódio de Mil não cessou, e ondas avassaladoras surgiram de seu subconsciente, o mar de consciência começara a se agitar.

Uma forte intenção surgiu, abalando tudo ao redor, agitando os seres com mais sensibilidade para tal. A floresta começou a ficar num estado de enervar, sem saber de onde vinha toda aquela sede de sangue, toda aquela raiva incontrolada.

Milan largou o corpo do lobo, que pendeu, imóvel. Caiu sobre os joelhos. Mas ele não caiu, ficou exatamente como estava: de joelhos, o rosto irritado, os globos oculares totalmente brancos, e a intenção vazando incontrolável. 



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