Volume 2 – Arco 2
Capítulo 25: Sacrifício
A Times Square, pela primeira vez, estava silenciosa. Apenas o som da chuva e o choro da multidão podiam ser ouvidos. Muitos prédios estavam desabando e, no centro da avenida, uma cratera chamava a atenção, tendo um homem de asas esfareladas, inconsciente, no centro dela. Ao lado, o encarando com olhos irados e arregalados, a garota ruiva tentava recobrar a razão, tentando aceitar o que tinha feito. Seus punhos estavam doloridos e soltavam vapor. Sua regata vinho estava rasgada e seu corpo estava cheio de arranhões.
Mas antes que pudesse se mover para ir embora, ouviu uma voz chamando por seu nome. Um clarão branco surgiu em sua mente e seus olhos se abriram à força.
— O pesadelo mudou... — murmurou.
— Pride? Pride! Varou a noite, foi? Você ouviu algo do que eu disse?
— Ah, Maeve? Foi mal, não dormi muito bem... — A garota dizia, sonolenta.
— Eu vou mesmo ter que repetir tudo?
— Bom, veja como uma forma de se redimir por ter quebrado minha perna de propósito.
A treinadora revirou os olhos.
— Yohane, isso já faz seis meses. Supera!
— Enfim, o que você tava falando? E por que tá todo mundo indo embora?
A ruiva olhou ao redor. As poucas pessoas que ainda estavam na Academia recolhiam suas bolsas e saiam do local, com expressões tristes e zangadas.
— Argh... — A mulher apertou a ponte do nariz com os dedos. — Depois desse meio ano que se passou desde o fiasco com o Constantim, nosso pessoal diminuiu muito. Somos motivo de chacota lá fora. Por isso a Ordem decidiu que vai dar uma repaginada aqui, o que significa que eu não vou mais comandar a Academia de Nova York. Vão mandar uma Virtude pra cá.
— Uau. — A ruiva ficou genuinamente surpresa. — Eles devem gostar muito dos Yankees.
Maeve deu uma risadinha.
— É, quem dera. Mas a verdade é que Manhattan não é a Holanda. Nós precisamos ter uma Academia aqui, principalmente agora que o ninho da Gabriela tá sobre nova direção. Essa cidade iria pegar fogo sem a gente. Só que as poucas pessoas que temos não querem ficar caso eu saia do comando. Ninguém confia muito naqueles metidos a besta da Ordem.
— Então por que não fica? Enfrenta eles!
— Não é assim que funciona. A Ordem banca essa tralha toda. Se eu me emposse, iriamos ter que enfrentar monstros com hambúrgueres e pés de alface.
— Ah... Sinto muito, Maeve. Sei que esse lugar significava muito para você.
— É, eu vou sentir falta. Mas não vai ser de todo mal poder ser minha própria chefe.
— Mas tem uma coisa que não entendi. Tecnicamente, ainda não faço parte do grupo. Meu treinamento ainda não acabou. Por que eu teria que ouvir essa ladainha toda?
Uma veia pulsou na testa de Watson e ela rangeu os dentes.
— Sua língua tá ficando afiada igual à do Hoffman, né, fagulha? Seu treinamento comigo acabou ontem. Você tá pronta pra sua primeira missão.
— Espera, o que? Ontem?! Mas você mesma disse que era um treinamento de um ano.
— É, mas isso foi antes da Ordem querer limpar essa bagunça. Vai ter que se virar com o que aprendeu no último semestre. Você vai pra Londres amanhã, junto do Hoffman.
— O quê?!
Maeve passou a mão no rosto, não sabendo muito bem como falar com Yohane. No fim, decidiu apenas ser curta e grossa, como sempre.
— Tá surda? Vocês dois já estão juntos nessa há algum tempo, então vão continuar sendo parceiros. Mas...
— Mas? Watson, desembucha! — Jô estava nervosa, se perguntava o que diabos poderia deixar até a treinadora sem jeito para falar.
— Eu acho incrível quantos inimigos você conseguiu fazer sem nem terminar seu treinamento. Nós viajamos por toda a costa leste nos últimos meses, e agora toda vez que você sai na rua tem um prêmio diferente pela sua cabeça.
— Olha, eu sei que exagerei várias vezes, é que a maioria daqueles monstros me estressa. E eles mereceram cada pontapé que eu dei neles. Droga, sinto que voltei ao ginásio.
— Não, Pride, escuta. Esse não é o problema. Nesse trabalho, até sua sombra faz inimigos. A questão é que toda vez que você volta pro seu apartamento, também coloca um alvo nas costas da sua família.
— Mas o feitiço funciona, nenhum monstro com sangue demoníaco pode entrar no prédio. Você mesma colocou ele.
— Sim, mas aquilo é falho, tem limites. Principalmente se feito por alguém que não é um bruxo. — Ela respirou fundo e segurou os ombros de Yohane, olhando no fundo de seus olhos. — O que interessa é que a Emília e a Abigail estão em perigo perto de você. E nós nunca...
— “Nunca colocamos a vida de civis em perigo sem motivo”, primeira regra dos caçadores, eu sei! Mas é que...
Maeve suspirou em desistência e deixou cair os ombros, olhando para Jô com frieza.
— Pride, depois da missão em Londres você terá um encontro com as Virtudes, na sede do Vaticano. Eles têm muito interesse em você, e talvez a Ordem possa te ajudar a entender seu pesadelo, se você colaborar. Isso significa que você vai deixar sua família, sem “mas”. Você já adiou isso vezes o suficiente. Aproveite o dia de hoje com a Emília e com a Abby, porque vai ser o último que passará com elas.
Ela se virou e foi para os fundos da Academia, deixando Yohane chocada. A ruiva não estava irritada, pois lhe fora avisado que esse dia chegaria. Mesmo assim, ainda era surreal a ideia de ter que abandonar sua família para poder protegê-la.
No primeiro encontro de Yohane com Maeve, as duas tiveram uma batalha que quase levou a Igreja de Santa Mônica ao chão. Mas a nova líder dos caçadores era habilidosa, conseguindo nocautear a sardenta rapidamente. Após isso, o treinamento da garota começou de verdade. Ela aprendeu a usar diversos tipos de armas, mas se habituou a lutar com lanças.
Após dois meses, Watson decidiu iniciar seu treino em campo, e as coisas ocorreram muito bem... no limite do possível, claro. Yohane se sentiu mais solta em seu treinamento, trazendo à tona sua personalidade encrenqueira do ginásio. Com a desculpa esfarrapada de que conseguiu um emprego em que teria que fazer algumas viagens longas — o que, de certo modo, não era uma mentira —, a menina enganou sua mãe.
Adam ainda se recuperava da fratura, então Pride e Watson tiveram bastante tempo para se conhecerem e, mesmo que no começo houvesse certo rancor por parte da ruiva, não demorou muito para as duas se tornarem grandes amigas. Isso se deve, principalmente, ao fato de Maeve não julgar o jeito ignorante de Yohane ao lidar com as coisas. Na verdade, ela a incentivava.
Mataram lobisomens em Massachusetts, caçaram fantasmas na Philadelphia, deixaram alguns extremistas em coma na Virginia e tiveram muitas brigas de bar em ambas as Carolinas. Essa viagem ajudou muito no treinamento da garota, mas também firmou o laço entre as duas.
Quando voltaram para Nova York, eram como irmãs. Porém, isso não fazia a treinadora pegar leve e, graças ao fator de cura acelerado da ruiva, Watson tinha passe livre para fazer Yohane desejar a morte, mas não conseguir alcançá-la. Desde então, Jô tem saído de casa à noite para fazer rondas, junto de Maeve.
Saindo da igreja, encontrou um alemão de óculos escorado em seu carro. Mastigava uma maçã, como sempre. Quando viu a garota saindo do templo, alisou o capô do veículo preto e sorriu.
— Sabe, nunca parei pra perguntar. Por que você dirige uma velharia dessas?
Yohane olhou para Adam como se quisesse esquarteja-lo e jogar os pedaços para os cães da rua.
— Fala isso mais uma vez e vou quebrar seu outro braço. — Encarou com desdém o braço de Adam. — Cara, esse é um Impala 64, um clássico! Ele tem 140 cavalos, um banco mais confortável que aquele sofá fuleiro do seu apartamento e uma maleta que cabe o guarda roupa da minha família inteira!
O alemão ficou surpreso pela ruiva falar como uma expert e, como sempre julgou carros apenas pela aparência — já que não tinha conhecimento suficiente sobre o assunto —, apenas mudou o tópico.
— Ah, sua mãe ligou. Disse que quer que você vá pra casa o mais rápido possível.
— Você mexeu no meu celular?! — Encarou o jovem ao lado, ao entrarem no veículo.
— Eu adoraria ter visto o que você fala de mim para as suas amigas do Texas, mas não. Ela ligou pra mim. Agora vamos logo que eu quero passar no mercado.
— Maçãs?
— Maçãs.
A garota sorriu aliviada e soltou o freio de mão, dirigindo até o mercado mais próximo antes de voltar para casa. Se perguntava o que sua mãe queria, e tinha medo de que pudesse se tratar das suas escapadas noturnas.
Após alguns minutos, chegaram ao Upper West Side e subiram as escadas do prédio até o apartamento de Yohane. Quando estava prestes a girar a maçaneta, sua mão foi segurada por Adam, que a olhou seriamente.
— Lembre-se, você não tem mais escolha. Isso aqui vai ser uma despedida, não uma comemoração — finalizou e abriu a porta.
— Do que você tá falando-
— Feliz aniversário!
Três vozes embaralhadas gritaram assim que a ruiva atravessou a porta. Eram Abigail, Emília e Aisha, aguardando a jovem com uma festa de aniversário surpresa.
Sim, era o aniversário de Yohane. A garota estava completando dezoito anos e tinha esquecido completamente disso. Seu sorriso torto, na tentativa de não demonstrar que havia esquecido essa data, falhou, pois Emília logo notou a confusão da filha.
— Você esqueceu, não foi?
— Err...
— Yohane... — A mãe sorriu gentilmente e colocou a mão no ombro da outra. — Quem esquece o próprio aniversário?
— Os últimos meses foram tão corridos que acabei nem me preocupando com isso.
— Verdade. Você conseguiu esse emprego novo e agora mal para em casa.
Emília franziu a testa, preocupada, mas logo tentou tirar as preocupações da cabeça e entregou um copo de refrigerante para a filha, que aceitou de bom grado.
A festa começou. Era simples, apenas um bolo e alguns petiscos para não deixar a ocasião passar batida. Claramente, se dependesse da jovem de sardas, essa data nem teria sido lembrada naquele ano.
Abigail também convidou Aisha, já que as duas se tornaram extremamente próximas desde o coma mais recente de Jô, e estavam, inclusive, com penteados combinando.
Emília também contou que pediu para Adam distrair a garota até tudo estar pronto, ou seja, o alemão usou isso como desculpa para levar Yohane até à Igreja, para uma última conversa com Maeve.
Após cerca de uma hora, Emília chamou todos para acender as velas e cantar os parabéns. Notando que o fim da festa estava chegando, a ruiva se lembrou das palavras de Adam, dizendo que aquilo não era uma comemoração, mas sim uma despedida.
Todos cantaram os parabéns para a jovem, e, logo em seguida, ela apagou as velas em forma de dezoito que estavam sobre o bolo.
— Foto! Foto! — exclamou a pequena Abby, que era abraçada por Aisha.
As quatro mulheres que estavam ali se reuniram atrás da mesa para tirar a fotografia. Adam não queria aparecer, mas após muita insistência de Emília, acabou cedendo e preparou o temporizador da câmera, indo se juntar as outras. Cinco segundos se passaram e um clique foi ouvido.
Ao pegar a foto, percebeu-se que todos sorriam, mas Yohane, em especial, tinha lágrimas escorrendo por seus olhos. Sabia da decisão que lhe foi tomada meses atrás, e sabia também que não tinha outra escolha senão aceitar aquele sacrifício.
— Ruiva — chamou o jovem alemão, enquanto a garota limpava os cantos de seus olhos. — Aqui.
Ele entregou uma caixa preta para Jô, que recebeu o objeto atônita. Não esperava receber algo logo de Adam.
— Espera... Você tá me dando um presente?
— Sim. Pega logo.
Ele respondeu sem hesitação, mas a ruiva percebeu o gesto gentil do outro, e sorriu genuinamente.
— Obrigada, Adam.