O Apocalipse de Yohane Brasileira

Autor(a): Henrique Ferreira


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 22: Um bom Velhinho

Era início de tarde da véspera de Natal, e isso trouxe lembranças preocupantes para Emília. Yohane, tentando ajudar na cozinha, destruiu a Ceia do último ano e obrigou sua mãe a comprar um novo fogão. Por esse motivo, Jô prometeu que ficaria fora de casa enquanto sua mãe preparava os pratos da Ceia junto de Adam, garantindo que a garota não estragaria nada. Assim, a ruiva passara a manhã inteira na Academia, treinando junto de Maeve.

Seis meses após a batalha no Brooklyn, Yohane começou a se esforçar muito, treinando seu corpo e sua mente para que pudesse se tornar uma caçadora excepcional. Mas sua treinadora, Maeve Watson, era impiedosa e, como prometido por Hoffman, sua vida se tornou um inferno e havia vezes que ela desejava morrer rápido.

Na arena central da Academia, Pride lutava com Watson. A ruiva usava uma lança como arma, mas os ataques de Maeve com sua maça estrela eram tão brutais que a garota estava usando o cabo mais como defesa do que qualquer outra coisa.

— Não sei se já falei isso, mas você é bem teimosa, Pride — disse Maeve, desviando de uma estocada.

— Já falou sim... umas mil vezes. Mas, como eu disse, não vou desistir até conseguir te derrotar! — A menina sardenta usou a lança como vara para saltar por cima da adversária e lhe desferir uma rasteira pelas costas, mas a rival saltou para frente com maestria e sorriu. — Além do mais, eu tô proibida de ficar em casa hoje por causa do incidente do ano passado.

— Você tem que aprender a cozinhar, Pride. Sua situação chega a ser humilhante. — Maeve girou a estrela da manhã e tentou acertar a perna da ruiva, que desviou rapidamente o golpe com a ponta da lança.

— Acho que vocês estão exagerando. Eu não preciso, necessariamente, saber cozinhar. Existe delivery hoje em dia.

Yohane tentou dar outra estocada em Maeve mas, dessa vez, a treinadora prendeu a corrente de sua maça no cabo da lança e a puxou para cima com o outro braço, lançando a ruiva no chão com muita força.

— De onde eu vim, qualquer pessoa decente tem que saber cozinhar, no mínimo, arroz e feijão. Quase quinze anos morando aqui e eu ainda não acredito que vocês, americanos, não tem o costume de comer a base da alimentação humana.

— A base da alimentação no Brasil, né?... Ah, merda... Essa doeu.

— Se você comesse mais feijão e menos hamburguer, eu não teria derrotado você tão facilmente. — Maeve sorriu de modo travesso, estendendo a mão para a ruiva.

— Você ainda é insuportável, sabia? — Pegou a mão da treinadora e se levantou.

— E espero continuar. Mas, falando sério, você realmente evoluiu desde que começamos o treino. E olha esses músculos! Quem ver você toda definida assim hoje, nem pensa que era uma franga quando chegou.

— Valeu, eu acho. Mas ainda não consigo te derrotar no mano-a-mano.

— Devia ficar feliz só de conseguir ficar tanto tempo comigo na arena, de igual pra igual. Depois do Adam, você é a primeira pessoa dessa Academia a conseguir ficar mais de dez minutos em pé ali, e isso é uma vitória.

— Obrigada. — Jô ficou um pouco sem graça, mas se sentiu feliz pelo reconhecimento da treinadora.

Mas, de repente, um som alto cortou totalmente o clima amigável do pós-luta. Um barulho parecido com uma explosão, vindo do andar de cima, provavelmente ao lado da Igreja Santa Mônica. Todos ficaram curiosos, mas Maeve manteve a calma dos presentes e subiu apenas com Yohane para ver o que tinha acontecido.

Subindo as escadas e saindo pela porta lateral da Igreja, as duas viram, no canteiro de obras, destroços de madeira e metal em chamas, partículas douradas dançando pelo ar e o que mais preocupou as duas, um senhor de cabelos e barba brancos, vestindo um casaco cor de vinho. Os trabalhadores olhavam em choque para tudo aquilo.

— Meu Deus! — Jô não hesitou em ajudar e correu ao socorro do homem. Ele tinha ombros largos e braços musculosos, mas sua barriga parecia a de alguém alcóolatra. — Ele está inconsciente. O que diabos houve aqui? — Olhou ao redor. — Não é possível que tenha sido um acidente de carro.

De fato, seria impossível. O canteiro de obras ao lado da Paróquia era grande e ficava bem de frente para o cruzamento entre a 1st Avenue com as 79th Street e a 80th Street, mas as cercas que rodeavam o terreno estavam intactas. Se um automóvel tivesse invadido, aquele lugar estaria uma zona.

— Enfim, descobrimos isso depois, traga ele pra dentro. Melhor evitarmos que alguém grave isso e poste no Twitter.

— As pessoas já não vão fazer perguntas sobre esses destroços e fogo?

— Tá mais complicado se livrar da polícia sem a Parker na cidade, mas na dúvida... Acidente de obra.

A ruiva pegou o senhor nos braços e se surpreendeu com o fato de ter conseguido levantá-lo com facilidade.

— O que você vai fazer?

— Vou perguntar para os trabalhadores daqui. Relaxa, eles não sabem de tudo, mas são pagos pra ficarem calados.

A jovem de sardas concordou e foi para dentro com o homem desacordado nos braços. Após descer as escadas e chegar na Academia, foi ao escritório de Maeve e deitou o senhor com cuidado no sofá.

Após alguns minutos, Maeve voltou com a mão na boca, estava preocupada. Ela entrou no escritório e logo Yohane a questionou.

— E aí, o que eles disseram? Viram alguma coisa?

— Esse é o problema... Eles não viram nada. Me disseram que estavam trabalhando tranquilamente, quando de repente aquela coisa apareceu no meio do terreno, pegando fogo.

— Mas como isso é possível?

— Achei que, após todo esse tempo, você já estaria acostumada com todas as bizarrices sem explicação. — Maeve encarou o velho deitado. — De todo modo, imagino que só teremos respostas quando ele acordar. Quem será que é ele?

— Talvez o Papai Noel. Aqueles destroços podem muito bem ser o trenó dele que caiu. Só me pergunto onde poderiam estar as renas.

— Papai Noel é uma lenda, Pride.

— Ah! O Pé-Grande também e, advinha? A gente caçou um, no mês passado!

— Não, sério. O Papai Noel é uma das poucas lendas que não são reais. Ele foi inventado pra lucrar em cima do “Aniversário de Jesus”. Aniversário esse que nem é em dezembro.

— Urgh... — O velho resmungou.

— Oh, acordou mais rápido do que eu imaginei.

O senhor despertou lentamente, abrindo as pálpebras com dificuldade. Levantou seu torço grunhindo e colocou a mão na cabeça.

— Arg... Onde eu estou?

— Desculpa, senhor, mas aqui quem faz as perguntas sou eu — disse Maeve, sentando sobre a mesa e cruzando os braços. — O que você estava fazendo naqueles destroços? E como aquilo foi parar lá?

— Hm...

O senhor fechou os olhos e respirou fundo. Por alguns minutos ele ficou em silêncio, deixando a duas mulheres sem entender muito bem o que estava acontecendo. Até que, de repente, Maeve ficou paralisada. A ruiva não entendeu muito bem, mas quando observou além da janela do escritório, percebeu que todos na Academia estavam congelados no tempo. Ela encarou o velho, que sorriu de canto para a garota.

— Yohane Catherine Pride. Você cresceu muito desde a última vez que te vi.

— O que? Olha, eu não sei quem você é, mas é melhor desfazer essa bruxaria que fez com minha amiga, ou vai se arrepender. — A garota cerrou os punhos.

— Relaxe, eles estão apenas congelados no tempo. Quando voltarem ao normal, não lembrarão de mim.

— Aham... E por que não fez o mesmo comigo? — perguntou, desconfiada.

— Por que você ainda acredita em mim, então talvez possa me ajudar.

Yohane abaixou os punhos e arregalou os olhos. Ela enfim entendeu quem estava ali, parado na sua frente. O homem de ombros largos e barriga saliente, com cabelos longos e barba brancos era na verdade...

— Papai Noel?!

— Por favor, me chame de Nicolau. É esquisito uma garota do seu tamanho me chamar assim. — O velho parecia constrangido.

 — Então você é mesmo ele?! De verdade?! — perguntou a garota animada.

Ele assentiu. A ruiva, que por dentro ainda era uma menininha, ficou extasiada por conhecer aquele homem. O herói de todos os natais. Ela podia tentar esconder sua animação, mas estava estampado em seus olhos brilhantes o quão feliz estava.

— Tudo bem... — Respirou fundo e tentou se acalmar. — Então, Papai Noel... Sr. Nicolau, pode me explicar novamente o motivo de ter congelado todos na Academia, menos eu?

— Preciso da ajuda de um caçador, mas não qualquer um. Precisava de alguém que ainda acreditasse na minha existência.

— Isso é algo que também quero te perguntar. Por que as pessoas aqui acham que você não existe? Maeve falou que você era uma das poucas lendas que não eram reais e, mesmo que eu odeie admitir, a Maeve tá sempre certa.

— Caçadores acham que sou uma invenção humana porque eu quero que seja assim. Não gosto de ficar respondendo perguntas... Além de que isso evita a burocracia na hora de voar com as renas.

— Por isso disse que só eu posso te ajudar? Por que eu ainda acredito no espírito de Natal? — Yohane arregalou os olhos com animação e, subitamente, decepção e tédio tomou conta de seu rosto. — Que clichê!

Nicolau sentiu uma pontada de irritação, e uma veia em sua testa pulsou.

— Você continua sendo uma estraga-prazeres, garota. Enfim... — O velho respirou fundo. — Eu fui atacado assim que entrei no espaço aéreo americano pela Costa Leste. Estava acima de Coney Island quando aconteceu. Foi tudo tão rápido, as renas estavam assustadas, então resolvi fazer um pouso forçado na Academia mais próxima dali. O trenó caiu, as renas e eu desmaiamos e cá cheguei, pedindo sua ajuda para encontrar a pessoa que me atacou.

— Renas...

— Yohane!

A garota despertou de seu devaneio.

— Ah! Perdão! — Soltou um pigarro — Olha, Sr. Nicolau, eu me sinto honrada de ser escolhida para te ajudar, mas não tenho certeza se consigo. Meu treinamento mal completou um ano e tudo que eu rastreei nos últimos meses foi com a supervisão da Maeve... Tem certeza que não é melhor descongelar ela? — A ruiva estava insegura e nervosa, e com razão. O homem à sua frente não era qualquer um e o pedido não era simples. Se estragasse as coisas, nunca se perdoaria.

— Yohane, você parece ser a única a não reconhecer seu próprio potencial. Você derrotou um vampiro Branco e, em poucos meses, chegou ao nível de ficar em pé no ringue com Maeve Watson. Não te pediria algo que estivesse fora de seu alcance. Confio na sua capacidade e, mesmo ainda sendo esquisita, é uma pessoa admirável.

A garota arregalou os olhos, atônitos com as palavras de Nicolau. Seu rosto se aqueceu e seus olhos azuis ficaram marejados, mas não iria chorar na frente dele.

— C-certo, vou dar o meu melhor. O Sr. tem alguma pista?

— Sim. — Ele levantou levemente a barra da camisa social vinho que vestia, revelando um hematoma escuro, quase como uma mancha preta. — O ataque foi repentino, atravessou o casco do trenó e me acertou em cheio no abdome.

— Santo Deus, isso tá horrível... e parece estar se espalhando, contaminando seu corpo aos poucos através das veias e artérias. Mas...

— O que foi?

— Essa mancha me parece familiar... Sinto que já a vi em algum lugar... Vem comigo.

Nicolau acompanhou a garota para fora do escritório. Para ela, era estranho ver todos na Academia paralisados. Era como se o próprio tempo houvesse parado, mas Yohane e Nicolau fossem imunes aos efeitos.

Eles foram até uma porta e, quando a ruiva a abriu, foi revelado uma biblioteca com prateleiras e estantes em formato de circulo. Era um ambiente sereno, longe de toda a bagunça dos treinos com espadas e lanças.

— O que estamos fazendo aqui, exatamente, Yohane?

— Então, eu posso estar enganada, mas... — A garota puxou as escadas até uma das estantes com uma placa: “Magia e Ocultismo” e subiu levemente, procurando por um livro. — Em uma das várias aulas teóricas em que eu dormi, me lembro vagamente de ter visto uma imagem em um livro de magia que lembrava muito o seu hematoma. Cadê... Ah! Te achei! — A jovem pegou um livro de capa roxa com entalhes sinistros que se assemelhavam a animais. Na capa frontal estava talhado em alto relevo “Grimório de Magia Negra – Um guia para ocultistas iniciantes.” — Que título enorme!

Ela desceu da escada e abriu o livro em uma mesa que havia ali, o folheando. Quando passou pela metade do livro, seus olhos se fixaram em uma imagem e a garota bateu na mesa com as duas mãos.

— Sabia! É idêntica à na sua barriga.

— Ora, ora. Vamos ver...

— “Técnicas de maldição - Vodu.” Isso, agora me lembrei dessa aula. Maeve falou que o maior perigo do vodu é que se trata de um tipo de magia simples, que qualquer um pode usar, e que são poucos os seres que não são afetados por ela.

— Hm... de fato, é igual a meu ferimento. Isso me deixa nervoso, é a primeira vez que me sinto vulnerável... Quando o mundo pensa que você não existe, a gente esquece de se preocupar com essas coisas. — Nicolau comentou com a mão no ferimento.

— Me parece uma forma triste de viver.

— Ah, não. Imagine que eu estou apenas evitando os paparazzi na rua. Diferente do senso comum, eu não fico o ano inteiro no Polo Norte. Na verdade, eu passo de janeiro à novembro viajando pelo mundo como um aposentado comum.

— Uau... vendo dessa forma parece bem divertido.

— Esse mundo é muito bonito, Yohane. Meu trabalho no Natal é apenas trazer uma parcela dessa beleza para as crianças. Mas enfim, tem alguma ideia de como podemos achar o responsável?

— Bom, tem um charlatão que mora em Manhattan, representante de um clubinho estranho de mágica.

— O Coven Mundial de Magia? Sim, sei quem são. Eles possuem um representante na cidade?

— Sim... e ele é meu vizinho. — Um sorriso nervoso e cansado se curvou na boca da garota. Memórias nada agradáveis surgiram em sua mente.

— Perfeito! Vamos até ele.

— Parece que não temos outra opção...

Yohane não estava muito animada em encontrar seu vizinho, codinome: representante do Coven Mundial de Magia. Nas aulas, a jovem aprendeu que a sede ficava próxima da Times Square, mas o representante sempre era visto no prédio da ruiva, no apartamento de cima.

Os dois saíram da igreja e entraram no Impala de Pride. Ela ligou o motor, saiu do estacionamento e pegou a avenida para ir até a sede, torcendo para que ele não estivesse em seu prédio.

— Aliás, sr. Nicolau...

— Yohane, não precisa ser tão formal comigo. Me chame apenas pelo meu nome.

— Ah, certo... — Ela sorriu. — Então, o que você quis dizer quando falou que eu cresci desde a última vez que nos vimos? Eu acho que me lembraria se tivesse conhecido você.

— Não lembraria. — O velho falou encarando o trânsito. — Na noite em que te conheci você conversou tanto que eu quase atrasei a entrega dos outros presentes, mas foi divertido. Porém, depois que fui embora e você adormeceu, garanti que tudo não passasse de um sonho na sua cabeça. E, no meio de tantos pesadelos, deve ter caído no esquecimento.

— Então a gente realmente tinha se conhecido? — Olhou para ele rapidamente enquanto virava uma esquina, com surpresa no olhar.

— Você foi uma das poucas crianças que conseguiu ser boa por todos os anos da sua vida. Claro, não levando em conta o incidente em Amarillo no último ano do ginásio. Aquilo não foi sua culpa, de qualquer forma.

A garganta da ruiva secou. Lembranças de um dia sombrio que passou a vida tentando esquecer vieram à tona. Suas mãos suaram frio enquanto observava a luz vermelha no semáforo.

— C-como você sabe disso? — gaguejou.

— Eu sei de muitas coisas, mas não importa. Me desculpe por te lembrar daquilo... De todo modo, não havia como me esquecer de você.

Yohane se calou e continuou a dirigir ao seu destino. A lembrança daquela fatídica tarde lhe arrancou quaisquer palavras que pensasse em dizer.



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