Volume 1 – Arco 1
Capítulo 18: O Diário de Emma
Após alguns metros, encontraram uma porta colorida, com figuras feitas em papel emborrachado. Em letras coloridas, estava escrito “Brinquedoteca”, formando um arco.
— A Emma está aí?
— Só saberemos quando entrarmos. Mas, antes... Violet... Esteja pronta para qualquer coisa. Ela foi sequestrada há mais de um ano, então...
— Eu sei, Carol... Eu sei o que isso quer dizer, mas... Ela ainda é minha garotinha.
Os olhos da detetive ficaram marejados. Ela respirou fundo e Carol passou o cartão no leitor, liberando o acesso. O que a loira encontrou quando adentrou o local fez as lágrimas escorrerem sem permissão. Seu coração se acelerou e uma dor muito grande foi sentida.
Eram dezenas de corpos em um estado retardado de putrefação, todos do tamanho de crianças entre 10 e 15 anos. O cheiro era ruim, mas não tão forte como do lado de fora. Estranhamentre, não havia nenhum ferimento ou sangue.
Violet colocou a mão sobre a boca, não se importando com as lágrimas. Ela sabia que entre aquelas crianças, estaria sua filha amada.
— Elas...
— Morreram de fome. A sala estava trancada, não havia como nada entrar... Mas também não tinha como elas saírem. Como essa sala sempre foi bem preservada, deve ter deixado o processo de putrefação delas mais lento...
— E como vocês duas escaparam?
— Estávamos na sala de testes na hora do colapso. Foi a Doutora Cho que fez tudo acontecer, nos ajudou a sair do terceiro andar. Ela pretendia voltar para buscar as outras crianças mas... algo a pegou primeiro.
Violet escutava enquanto andava pelos corpos cuidadosamente. Procurava pelo corpo de sua filha, mas estava difícil. Todos os corpos pareciam iguais, com a diferença nas cores das roupas e dos números no peito.
— Nos chamavam de Projeto Alvorecer, mas eu nunca entendi o objetivo deles. Eles raspavam nossas cabeças, para as cobaias serem o mais homogêneas possível. — Notou a dúvida no rosto molhado de Parker. — Davam uniformes rosas aos meninos e azuis para as meninas. E nós não tínhamos nomes, apenas números. Eu era a 02...
Carol mostrou um pulso com um número marcado enquanto olhava para todos aqueles cadáveres. Seu estômago se embrulhou, pois sabia que se não fosse por Cho, ela poderia estar ali.
— Você foi uma das primeiras a chegar, então?
— É... Junto da 01... Nem como cobaia meu pai me colocava em primeiro lugar. — Riu tristemente.
Violet olhou com empatia para a garota. Tão jovem, e já havia experimentado tantas coisas horríveis. A detetive voltou a procurar e, após alguns minutos, algo chamou sua atenção. Um diário velho, sobre um corpo com roupa azul. Era uma menina.
Sem alternativas, se agachou e pegou o diário, começando a lê-lo. O nome escrito na primeira folha fez ela perder a força nas pernas.
“Para minha mamãe e papai, quando eles voltarem do trabalho. Emma Parker.”
— É dela... Emma, minha querida. — Olhou para o cadáver infantil, com o formato dos ossos sob a pele e chorou. Acariciou o rosto áspero e deixou a dor em seu peito consumi-la.
Não havia palavras que pudessem descrever a dor que Violet sentia naquele momento. Ela não conseguia falar. Virou a página do diário e começou a ler. A letra era disforme, como se espera de uma criança naquela idade, mas isso só fez Violet sorrir em meio as lágrimas, com a saudade.
“Dia um - Eu acordei longe da minha cama. Indo de carro com uns homens bem arrumados. Eles pareciam com os amigos policiais da mamãe e do papai, então não fiquei com medo. Eles me levaram para uma sala com outras meninas e meninos e rasparam minha cabeça e dos outros também. Mamãe vai ficar muito brava, ela gostava muito do meu cabelo. Mas agora eu pareço o papai, então não fiquei triste. Colocaram a gente numa sala cheia de brinquedos e todo mundo começou a brincar. Acho que o papai e a mamãe estão trabalhando, então vou ter que ficar na escolinha por alguns dias.”
— Ela era tão esperta... — Fungou.
— Mas ainda inocente — completou Carol.
“Dia três – A escolinha é diferente das outras, tem algumas brincadeiras estranhas. A gente brinca muito de médico, e as titias e titios são assustadores. Menos a tia Cho. Ela é fofa e engraçada, e da doce pra gente quando ninguém tá olhando. Mas eu tô com saudade de casa, da mamãe, do papai e do Spike. Ele era tão peludo e cheiroso.”
— Nós também sentimos sua falta, meu amor. Até o Spike. — Violet nem notou que, enquanto lia, começou a segurar a mão da filha ao lado.
— Cachorro? — Carol questionou, em dúvida.
— Sim, um labrador. Ele nunca mais foi o mesmo desde que a Emma sumiu... Nenhum de nós...
“Dia dez – A escolinha não é divertida mais. Os titios e titias são assustadores, a tia Cho também tá assustada. Eles tão machucando a gente com choque e falando palavras estranhas. Parece o que eu ouvi na igreja, mas do mal.”
Ela folheou o caderno mais rápido, lendo as coisas horríveis que Emma descreveu. As torturas que as crianças sofriam era algo desumano, e as que não se saiam bem iam para um lugar chamado “Cozinha”. De onde nunca mais voltavam.
— O que é essa “Cozinha”?
— Descobri que esse era o nome que os cientistas davam ao Salão Oval. As crianças que fracassavam nos experimentos, malcriadas ou as que tentavam fugir eram levadas para lá... e a gente sabia que elas não iriam voltar.
Violet continuou folheando até chegar em uma parte em que as folhas estavam em branco. Ela tinha parado de escrever. Voltou algumas folhas e encontrou o último capítulo.
“Dia... não sei mais. – Oi, mãe... pai. Vocês nunca vão ler isso, eu sei, mas acho que é justo eu escrever um último capítulo. Os tios disseram que nossos pais nos venderam, e que tinham esquecido da gente. No começo eu não acreditei, mas depois de todo esse tempo, não tenho como saber, né? Talvez vocês tenham me vendido por que eu não gostava da igreja, ou por que não limpei o cocô do Spike... Bom, não sei o porquê, mas desculpa pelo o que quer que eu tenha feito pra deixar vocês bravos.” — Havia manchas na página, como se gotas tivessem caído enquanto escrevia. — “Eu sinto muita saudade de vocês. E eu tenho muito medo das aulas e da Cozinha. A tia Cho falou hoje à noite que vai tentar tirar a gente daqui. Então, se eu for embora, vocês vão me desculpar? Eu vou poder voltar pra casa? Eu só queria voltar pra casa, pra minha cama... Queria que isso fosse um pesadelo.”
— Ela se culpou no final... — Passou a mão no rosto, esfregando os olhos molhados. — Achou que a gente odiava ela.
— Sim, mas ela amava muito vocês.
— O que?
— Lembro dela. Cobaia 512. Ela foi a última criança a trazerem. Ficou aqui por seis meses antes do colapso... Ela chegou toda animada, achando que estava numa creche e vivia escrevendo nesse caderno. Semanas se passaram e ainda acreditava que os pais dela estavam trabalhando. Ela só começou a se tocar de que isso não era um acampamento de férias após quatro meses, quando as crianças começaram a sumir em massa. Ela realmente achava que vocês tinham vendido ela, que odiavam ela. Mas nunca deixou de amar vocês.
Olhou para o cadáver da filha e acariciou seu rosto novamente.
— Me desculpa, amor. Me perdoa por não ter chegado antes. Mas eu vou te tirar daqui e te levar para casa.
Respirou fundo e limpou as lágrimas, pegando o corpo de sua filha e se levantando.
— Vai mesmo levar ela?
— É o mínimo que posso fazer. Vamos sair logo daqui, por favor.
— Certo, tem uma saída de emergência virando o corredor.
Elas saíram da sala e se preparam para sair daquele inferno. Violet encontrou sua filha, cumpriu seu objetivo pessoal. Naquele momento, elas teriam apenas que subir as escadas e ir embora daquela floresta.
Quando viraram o corredor, a frente estava a saída de emergência e, atrás delas, outra porta. Uma dourada, entalhada com joias e imagens de alimentos diversos.
— Que sala é aquela? — perguntou a detetive.
Carol olhou para a entrada e engoliu seco, dando um passo em hesitação.
— É o Salão Oval... A “Cozinha”. Vamos logo.
— Será que elas ainda podem estar lá? — Uma faísca de esperança brilhou nos olhos da policial.
— Olha para a garota nos seus braços, Violet. Você já tem sua resposta.
A estudante estava nervosa e caminhou apressadamente para a saída.
— Oi? Tem alguém aí? — Uma voz infantil, de uma garota, veio do Salão.
— Espera, Carolyn. Eu ouvi algo!
— Não! Não tem nada lá, Parker!
— Por favor, a gente ouviu alguém aí fora. — Outra voz infantil, de um garoto.
— A gente tá preso e com fome. Por favor, ajuda a gente. — Outra garota falou, sua voz declarava seu desespero.
— Elas estão vivas, pedindo socorro! Não posso deixa-las, Carolyn!
— Violet, não ouse ir até aquela sala! Não tem ninguém lá! — Carol gritou em nervosismo.
— Fica aqui com a Emma. Eu vou tirar aquelas crianças de lá.
A loira foi correndo ao resgate, sem pensar nas consequências. Carolyn implorou para ela não ir, pois era burrice, não havia nenhuma pessoa lá. Ela pensava isso, pois não tinha ouvido nada. Nenhuma voz sequer.
Parker correu e, conforme se aproximava da porta, a quantidade de moscas aumentava. Um cheiro podre podia ser sentido, ficando mais forte a cada passo.
As crianças continuavam pedindo socorro até que, enfim, Violet chegou à porta. Quando entrou no Salão, mal podia suportar o odor. Aquele cheiro de carne podre e morte agrediu violentamente seu olfato.
Mas o que surpreendeu a detetive foi que, apesar do cheiro, o lugar estava impecavelmente limpo. Ele tinha o formato oval, como esperado, e tudo tinha um aspecto frio e triste. Havia poucos armários e um deles era de vidro, possuindo algum tipo de espada dentro dele. Também não havia cadáveres ou qualquer pessoa ali, além de um silhueta grotesca à frente.
Estava de costas para Violet, fazendo algo sobre uma mesa. Suas costas corcundas eram preenchidas por grandes bubões. Neles, pequenos pelos estavam ali, em toda a superfície das bolhas. Também havia dois pares de asas, mas pequenas demais para levantarem voo.
Mesmo sem mostrar o rosto, a detetive conseguia notar que aquele era um monstro desprezível de se olhar. Ele tinha quatro braços. Dois alongados e finos, e outro par sendo pequenos, mas com garras afiadas.
— Mamãe? Você voltou? — A criatura falou em um tom de voz esperançoso e se virou. — Espera, você não é a mamãe... Quem é você? Como chegou aqui?
Sua voz era grave, mas claramente era tímido. Quando viu Violet, cambaleou e teve que se apoiar na mesa.
— Onde estão as crianças?
Violet perguntou firmemente. Aquele ser poderia ser nojento, mas não dava tanto medo quanto os lobos ou o próprio gigante que enfrentara antes.
— Crianças? Todas elas estão na Brinquedoteca, como sempre. Se bem que elas já devem ter morrido e apodrecidos após todo esse tempo. Você é alguma cientista do Sr. Reiner? Ele sobreviveu?
Ele parecia genuinamente preocupado, e começou a se acalmar, se aproximando da loira.
— Não chegue mais perto! — Colocou a mão sobre o coldre que estava na cintura, pronta para sacar a pistola a qualquer momento.
Daquela distância, pôde ver melhor o rosto da criatura. Ele era achatado, com olhos pequenos e tristes. Seu nariz era pequeno e gorducho, e sua boca era longa e tinha presas à mostra. Na testa, também havia um par de globos ovais enfiados na pele, que lembravam os olhos de moscas.
— Eu não sou cientista, sou detetive. E eu quero que você me diga onde estão as crianças que eu ouvi pedirem por socorro.
— Desculpe, dona Detetive, mas não tem criança alguma aqui. Ao menos, nenhuma inteira.
— O que você quer dizer com isso?! — Sacou a pistola e apontou para a criatura, furiosa.
— Calma, calma. — Ele levantou os quatro braços na altura que pôde, era ridículo de se ver. Mas estava assustado, claramente. — As únicas crianças que já entraram aqui foram as malcriadas, que o Sr. Reiner me entregava para eu poder me alimentar. Os ossos delas ainda estão aqui, olha. — Ele pegou um balde e o mostrou de longe para uma detetive enojada. — Juro, não tem nenhuma viva aqui. Se você ouviu alguma coisa, deve ter sido alguma alucinação causada pela picada dos meus mosquitos, peço perdão por isso.
O evento anterior com as aranhas então era explicado. Violet se sentiu culpada por quase ter matado Carol por causa disso.
Mas ele falava com tranquilidade, como se estivesse conversando sobre biscoitos na casa de uma avó. A falta de empatia em sua voz era chocante, considerando que ele parecia o ser mais inseguro e tímido do planeta.
— Você... devorou elas?!
— Sim... — Estava confuso com o questionamento da mulher. — Eu tinha que me alimentar pra poder ajudar nos experimentos. A mamãe pediu para eu ajudar o Sr. Reiner no que ele precisasse, mas eu sentia tanta fome... Fome... Que fome, faz muito tempo que eu não como nada decente. Aqueles lobos tem um gosto horrível, é amargo... Detetive, você pode me ajudar? Será que consegue me trazer uma ou duas crianças? A carne delas tem um gosto doce delicioso, eu iria ficar muito grato se...
Ela não o esperou terminar a frase. Puxou o gatilho duas vezes, o acertando na cabeça e o fazendo cair para trás. O sentimento de Violet naquele momento era indescritível. Como poderia alguém dizer coisas tão desumanas de um jeito tão natural. Ela se lembrou de alguns serial killers que conheceu em sua carreira, e aquele monstro era como eles, só que absurdamente mais feio e fedorento.
A loira se virou para ir embora, mas quando ouviu o som parecido com o de água borbulhando, se virou. O corpo do monstro estava se mexendo, como em convulsão.
— Arghhh! Sua vadia miserável!
O monstro começou a crescer, se transformando em algo maior, mais horrendo. Suas asas, antes pequenas, aumentaram, permitindo que ele se levantasse ao batê-las. Um enxame de moscas e mosquitos surgiu, rodeando a criatura como um tornado. Não era possível ver o que estava acontecendo, mas os sons grotescos que vinham dele deixavam a detetive ansiosa.
Quando o tornado se dissipou, os insetos começaram a voar aleatoriamente, permitindo a visão do indivíduo. Ele tinha ficado duas vezes maior, os bubões ficaram mais peludos e os globos que estavam em sua testa assumiram o lugar dos olhos, enquanto dois chifres retorcidos estampavam sua cabeça. O segundo par de braços, antes pequenos, agora eram mais longos que os principais, e as garras pareciam mais perigosas.
— Desgraçada! — Sua voz se tornou ainda mais grave, estava assustadora. — Você vem até a minha casa, me desrespeita e ainda ousa tentar me matar! Tudo bem então, você será meu alimento! Eu, Belzebu, o Guloso, vou devorar cada entranha desse seu corpo nojento e usar seus ossos para limpar meus dentes!
Violet puxou o ferrolho da pistola e engoliu seco. Sabia que daquela batalha não poderia escapar. De um jeito ou de outro, tinha que dar um fim àquele demônio.
— Pode vir com tudo. — Estava, obviamente, assustada. Mas também cansada após tudo que viu naquela noite. Iria lutar e vencer, de qualquer maneira.