O Apocalipse de Yohane Brasileira

Autor(a): Henrique Ferreira


A1 – Vol.2

Capítulo 35: Uma promessa dolorosa

O jantar foi colocado à mesa: panelas com carne ensopada, batatas cozidas inteiras e uma salada de nabo com couve. Era totalmente diferente do que Yohane estava acostumada a comer no jantar, o cheiro forte da carne fazendo-a se questionar de que animal poderia ser.

A única que recebeu um prato especial foi Tera. Em uma pequena tigela, Bjorn, alguns minutos depois de sua esposa pôr o jantar, serviu um pouco de macarrão com um pedaço de carne escura afogado em uma sopa marrom, ao lado da mesa. A raposinha uivou de felicidade e avançou na tigela.

Yohane se serviu um pouco da carne e dos vegetais. Estava receosa, mas não quis fazer desfeita à sua anfitriã. Cortou um pedaço da carne, fincou no garfo junto com um pedaço de batata. Assim que levou à boca e mastigou, pôde sentir um sabor intenso e um leve adocicado na língua.

— Juliana, isso tá delicioso! — exclamou a ruiva, surpresa com aquele sabor. — É carneiro?

— Sim, nós os criamos aqui mesmo. Mas eles estão ficando dentro do estábulo, por causa do inverno.

Todos se deliciaram com o jantar feito por Juliana, e naquele momento, esqueceram de suas diferenças e intrigas. Conversavam, riam e se divertiam, tudo em uma agradável confraternização.

 

Após pouco mais de uma hora, a ruiva ajudava Juliana com as louças, enquanto Erik e Frida ajudavam Hilda e Adam a organizarem os colchões na sala.

— Obrigado, outra vez, por nos deixar passar a noite aqui, Juliana. Não sei se sobreviveríamos lá fora.

— Sem problema, Yohane. Nós devemos nossas vidas à Magda, deixar você e seus amigos dormirem aqui não é nada, sério.

— Como assim?

— Ela salvou nossas vidas.

Yohane olhou incrédula para Juliana, não conseguindo imaginar uma realidade onde Magda salvaria uma pessoa.

— Eu sei que ela pode parecer a garota que faz bullying com os outros no colégio, mas Magda Vernichter é uma das pessoas mais bondosas que eu conheço.

— Desculpa, Juliana, mas pelo que conheci dela, acho difícil de acreditar.

Juliana sorriu, secando um copo.

— Foi há alguns anos, eu ainda estava grávida da Frida. Era uma noite agressiva, chovia e trovejava muito. Bjorn e eu estávamos na sala, de frente à lareira, quando alguém começou a bater na porta, forte. Ficamos assustados, afinal, não esperávamos ninguém naquele temporal. E foi quando ele abriu a porta que uma jovem mulher caiu no nosso chão, sangrando muito, acompanhada de uma raposinha branca.

— Magda e Tera? — Yohane perguntou, secando um prato que tinha acabado de ser lavado por Juliana.

— Em carne e osso. Magda nem conseguiu falar, antes de desmaiar, tinha perdido muito sangue. Tera tentou puxá-la para dentro de casa pela gola, mas parecia muito fraca. Como não tínhamos escolha, limpamos e remendamos as feridas da Magda do jeito que podíamos aqui em casa e esperamos ela acordar. Demorou cerca de duas horas, e quando ela acordou… Deus sabe o susto que eu levei. Nunca tinha visto uma jovem tão irritada, angustiada e ao mesmo tempo tão triste. A gente explicou o que tinha acontecido, e ela quis embora na mesma hora, mas não deixamos. Bjorn falou que ela poderia passar a noite ali e, de manhã, seguiria viagem.

— Certo, mas o que aconteceu depois? Até agora, parece que vocês salvaram a vida dela, não o contrário. — Yohane colocou os pratos secos no armário acima de sua cabeça.

— Eu sei... é por que eu ainda não cheguei na parte ruim da história. — Juliana enxaguava um dos últimos copos na pia. — O problema é que minha bolsa estourou naquela noite, de madrugada. Eu estava sentindo a pior dor da minha vida, e o Bjorn teve que começar o parto ali mesmo. Magda acordou e começou a ajudar em tudo que podia, talvez pra compensar por termos deixado ela se abrigar aqui. Mas o pior de tudo veio depois... O temporal continuava, e naquele momento, no pior momento possível, um raio atingiu o telhado da casa… como você pode perceber, é tudo feito de madeira. O fogo se espalhou rápido. E pra deixar tudo ainda mais assustador, uma viga despencou e atingiu a cabeça do Bjorn, ele desmaiou na hora. Então lá estava eu, com um bebê pronto pra sair de dentro de mim; com um marido inconsciente no chão; e com uma garota, que deveria estar na faculdade, do meu lado. Eu não sabia o que fazer. Rezei pra Deus como nunca. Estava morrendo de medo, não podia morrer ali, deixar minha filha morrer, mas o que eu podia fazer além de rezar e desejar que tudo terminasse bem? — A mulher respirou fundo, encarando o telhado. — Foi aí que o impossível aconteceu. Eu não sei se as tábuas estavam fracas por causa do incêndio, ou algo assim, mas a Magda derrubou a parede com um chute. Então ela jogou Bjorn lá fora, me pegou nos braços e terminou meu parto sozinha, no celeiro. Eu não acreditei no que tinha acontecido, achei que tinha morrido e ido para o Céu..., mas quando ela me entregou a Frida, e eu a segurei nos braços, desabei em lágrimas. O Bjorn apareceu em seguida, e foi aí que me dei conta. — Juliana virou e encarou seus filhos, conversando com Adam na sala. — Aquela garota tinha salvado minha família. Graças a ela, meu marido continuou ao meu lado, e eu vivi para ver meus meninos crescerem. E eu nunca vou conseguir quitar essa dívida.

Uau… É difícil acreditar que essa é a mesma Magda que eu conheço… — disse Yohane, incrédula com a história que escutara.

— Ela é uma pessoa difícil, eu sei. Mas dentro daquela rocha bruta e mal-humorada, existe o diamante mais valioso desse mundo. Não é fácil lidar com ela, mas se você se permitir conhecê-la melhor, talvez se tornem grandes amigas.

— Entendi…

As louças terminaram de ser lavadas e Yohane deixou Juliana finalizar a organização da cozinha. A ruiva foi até Adam e perguntou onde estava Magda. Ele disse que não sabia, mas a raposinha que era acariciada por Frida respondeu, indicando que Vernichter saiu da casa para fumar um pouco.

Em uma decisão interna, a garota pensou em tudo que tinha sido aprendido naquele dia. Bjorn, Juliana, Tera, Hilda, nenhum deles tinham problemas com Magda, mas pelo contrário, a respeitavam e amavam ela. Por quê? Como alguém poderia respeitar um monstro sem coração como aquela mulher, que tira a vida dos outros sem pensar duas vezes? Essa era a dúvida de Yohane e ela tomou coragem para entender aquilo. Além do quê, fora Magda que fez a ruiva questionar todo o seu pensamento sobre os “monstros” que caçava, mesmo que isso tenha sido feito com uma espada em seu pescoço.

Ela respirou fundo e foi até o quintal, onde viu a silhueta de uma mulher ignorante e agressiva assim que abriu a porta. Magda estava com um cigarro entre os dedos, soltando fumaça da boca e nariz, enquanto encarava o céu noturno e gélido do inverno faroense.

— Nossa, tá frio hoje, né? — Yohane falou como quem não quer nada, abraçando a si mesma.

Vernichter olhou de canto para a ruiva, tragando novamente seu tabaco.

— Corta o papo furado, Yohane, eu sei que você não sente frio. O que você quer?

— Tá bom, eu vou direto ao ponto. Eu sei que a gente começou com o pé esquerdo… Pra começo de conversa, talvez eu nem devesse ter te perseguido lá em Londres, teria evitado uma baita bagunça.

— De fato, essa é a primeira coisa correta que você falou hoje — disse com frieza, sem olhar para o rosto da garota.

A ruiva respirou fundo, tentando manter a compostura, e continuou.

— Certo… Então, eu estava pensando… mesmo que a gente veja o mundo de formas diferentes, e eu ainda discorde totalmente da sua maneira de lidar com as coisas, você me fez questionar minhas atitudes hoje. É tudo muito novo pra mim, nunca tinha pensando nos monstros como algo além disso, e acho que isso foi um erro. E já que todo mundo aqui parece te achar um exemplo de ser humano, estou disposta a dar um voto de confiança e tentar trabalhar junto com você, sem mais julgamentos. Afinal, mesmo com métodos diferentes, imagino que temos o mesmo objetivo. Bem contra o mal e tudo que vem junto disso, né?

Magda tragou fundo seu cigarro e jogou a bituca na neve. Subindo o zíper de sua jaqueta, ela se virou para Jô.

— Sabe, Yohane, o seu problema é que você é muito ingênua, e isso vai acabar te matando um dia. Quando eu era mais nova, eu era igual a você. Tinha esperança no mundo, tentava tornar ele um lugar melhor. Mas depois de tantos anos fazendo esse trabalho, eu percebi que isso não vai acontecer, por que as pessoas que vivem aqui não merecem um mundo melhor. Eu deixei de ser caçadora porque os seres humanos não merecem ser salvos, pois percebi que eram muito piores que os “monstros” que eu caçava. É um fato que nós vemos o mundo de formas diferentes. Você ainda o vê como se vivesse em um conto de fadas, mas eu o vejo como ele realmente é: sujo, fedorento… perverso. Um lugar que massacra pessoas bondosas como você. Aqui, o bem não vence o mal. A gente só luta com todas as nossas forças e torce pra ter adiado a vitória dele por mais um dia. Esse é o mundo real, Yohane. Se você estiver disposta a entender isso, talvez possamos nos entender.

Magda se virou e fez menção de entrar na casa, mas a ruiva chamou sua atenção.

— Você está errada, Magda. — A mulher olhou para trás, por cima do ombro. — O mundo não é esse esgoto que você pensa. Existem sim pessoas horríveis, mas a maioria delas são boas, decentes, que se importam com os outros. Eu não vejo o mundo como se fosse um conto de fadas, eu só não enxergo ele preto no branco como você. E, se eu enxergava dessa forma, estou disposta a mudar isso. Sim, eu ainda tenho esperança e quero tornar o mundo um lugar melhor do jeito que for possível, isso por que eu amo esse mundo, e amo as pessoas que vivem nele. E eu vou defender isso, custe o que custar.

A mulher deu um sorriso de canto e falou, tocando na maçaneta:

— Tá certo, garota. Agora, vê se dorme. Temos uma longa caminhada amanhã…

Magda se virou e entrou na casa, deixando a ruiva em pé na neve.

— É… de fato, vai ser uma longa caminhada…

A garota respirou fundo e voltou para dentro.

Depois de Frida e Erik irem para cama, Juliana desejou boa noite a todos, e logo aqueles que estavam na sala caíram no sono. Estavam exaustos e precisavam de um bom descanso.

Naquela madrugada, todos dormiam confortáveis. Até Hilda, que era acostumada com os aposentos do castelo, não reclamou. Talvez por já ter dormido em lugares piores durante o Ragnarok, ou por medo da punição de Magda.

As três estavam nos colchões. Pride e Vernichter nas extremidades, enquanto a rainha dormia entre as duas. Adam roncava levemente no sofá, de bruços, enquanto Tera contava salmões em sua mente, sobre as costas do jovem. Estava tudo calmo. Calmo demais. Tão calmo, que até a mente atribulada de Magda se permitiu descansar.

Mas quando a única coisa que se podia ouvir era o vento gelado do lado de fora, uma figura encapuzada caminhava em direção à sala de estar. O manto cobria seu rosto, mas não escondia as suas curvas femininas e a espada branca em sua mão esquerda, emitindo uma fraca luz pálida da lâmina. Ela andou silenciosamente em direção aos colchões. Seus passos eram como veludo, não produziam um único som. Ficou de frente para Hilda, mas seu rosto se virou em direção a Magda. Quando viu o rosto calmo e sereno da mulher descansando, apertou o cabo da espada com força. Levantou a espada e respirou fundo, acalmando-se, pronta para apunhalar o coração da rainha.

— Você!

Antes que pudesse, contudo, um par de pés atingiu seu abdômen, lançando-a contra a parede, quebrando televisão e raque, no processo. Magda tinha ouvido a respiração da mulher de capuz e despertou de imediato. Não pensou duas vezes em atacar.

— Seus cachorrinhos não conseguiram fazer o trabalho sujo, então você veio resolver sozinha, Madame?

A encapuzada se levantou e encarou Vernichter. Seu rosto estava escondido, mas era possível ver o brilho lilás em seus olhos furiosos. Com aquele barulho, todos que estavam na sala acordaram assustados, tentando entender o que estava acontecendo.

— Fiquem fora disso. Ela é minha! — falou Magda, com seus colegas. Yohane e Adam se afastaram, protegendo Hilda junto de Tera.

— Ainda não chegou sua hora, Magda. Você não sofreu o suficiente — disse a adversária.

Magda rosnou e avançou contra a mulher, sacando suas correntes e tentando cortá-la, que se esquivou.

— Por que você quer tanto me ferir?! O que foi que eu fiz pra você?!

— Por sua causa ela me descartou, me renegou… Você destruiu a minha vida!

— Que barulho é esse?! — Juliana desceu as escadas e foi até o interruptor mais próximo, mas não pôde ligar as luzes.

— …E eu vou retribuir o favor.

— Não! — gritou.

Não pôde impedir. A inimiga lançou um projétil mágico de cor lilás que atingiu e atravessou o peito de Juliana, fazendo-a cair no chão.

Juliana! — A voz de Bjorn pôde ser ouvida em dinamarquês, seguida dos gritos de duas crianças apavoradas.

Mama! Mama! Levanta!

Em meio aos gritos de sua família, Juliana engasgava em seu próprio sangue e os encarava com lágrimas em seus olhos assustados. Não levou muito tempo para ela falecer ali mesmo. Erik e Frida balançavam sua mãe, na esperança inocente de ela despertar. Mas Bjorn apenas caia em prantos conforme olhava para as pupilas sem vida de sua esposa.

Yohane correu para atacar, irada, mas foi empurrada através da parede por uma bola de energia lançada pela encapuzada, fazendo-a cair na neve.

Percebendo que estava em desvantagem, a mulher lançou um segundo ataque em sequência, este sendo uma onda de energia mágica que lançou seus inimigos ao chão, impedindo uma reação deles.

— Quero que se lembre, Magda, o sangue dessa família, assim como o sangue da Mei, está nas suas mãos. Você os matou!

A inimiga lançou um raio mágico sob o teto acima da família de Bjorn, fazendo os escombros desabarem sobre os quatro. Num último esforço, o homem abraçou seus filhos e os colocou sob seu peito instantes antes de a madeira e o concreto caíram sobre suas cabeças.

Magda gritou com medo e tristeza. Avançou na mulher encapuzada com fúria em seus olhos marejados. Mas antes que pudesse desferir um ataque fatal no pescoço da inimiga, ela desapareceu em faíscas cor-de-rosa. Vernichter caiu de joelhos, encarando a mão sem vida que se destacava para fora dos destroços. Era delicada e tinha as unhas feitas, a mão de Juliana. Uma família inteira, uma família que Magda amava como se fosse sua, destruída em um piscar de olhos. A mulher não sabia o que sentir. O ódio, a tristeza, a ira e o luto. Tudo se misturava em seu peito enquanto lágrimas escorriam de seu rosto inexpressivo.

Quando a poeira baixou, Yohane voltou da neve e encarou a situação, sem palavras. Todos estavam em choque. Fora um ataque repentino e, em questão de minutos, civis inocentes morreram. De novo.

Yohane se culpou.

Magda se culpou.

— Maggie… — Após alguns minutos de um silêncio trágico, Tera se aproximou lentamente da amiga, sem conseguir pensar em palavras para dizer.

— Eu vou matar ela, Amaterasu. Não… quando eu puser minhas mãos naquela mulher, eu vou fazê-la implorar pela a morte.

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