Volume 1

Natal à Dois


Quando a Mahiru chegou ao apartamento do Amane no dia seguinte, ela parecia um pouco inquieta. Teria sido perfeitamente compreensível ficar nervosa em visitar a casa de um membro do sexo oposto em um feriado, mas isso não parecia ser o motivo. 

Mahiru quer jogar. Ela provavelmente está apenas animada. Aparentemente, essa seria a primeira vez que ela jogaria um videogame. De certa forma, ela era como uma jovem de alta nobreza protegida que conhecia pouco do mundo em geral.  

“Antes de jogarmos, eu vou fazer o almoço, certo?” Mahiru confirmou. 

“Hum. Eu quero o meu bem passado, por favor.”, Amane respondeu de casualmente. 

“Eu sei; eu me lembro.” 

Nem mesmo o fato de lidar com um cliente tão exigente parecia abalar o humor da garota. Com um movimento em seu avental, ela se dirigiu para a cozinha e começou os preparativos para o almoço. Pelo modo como ela estava se comportando, a Mahiru parecia estar bastante satisfeita. 

Amane se sentiu um pouco constrangido e envergonhado por estar tão ansioso por isso.  Ele disse para si mesmo que era apenas porque ele estava ansioso para se divertir com os jogos, apenas isso. Certamente não era porque ele estava empolgado em passar um tempo sozinho com o anjo. Enquanto observava o rabo de cavalo da Mahiru balançando para frente e para trás, o Amane sorriu ironicamente para si mesmo.

“Como você deve segurá-lo?” 

Depois do almoço, os dois se acomodaram no sofá em frente à TV. Ambos estavam agora olhando diretamente para a tela. 

Quando o Amane havia perguntado a ela qual jogo ela queria jogar, ficou claro que a Mahiru não sabia nem por onde começar, então ele iniciou um jogo 2D conhecido e entregou a ela um controle. Infelizmente, a Mahiru ficou imediatamente nervosa, pois ficou claro que ela não tinha ideia do que fazer com ele. 

“Tudo bem, então você se move com este joystick e pula com este botão…” 

Mahiru, normalmente tão calma e controlada, estava olhando para trás e para frente entre o controle e a TV enquanto controlava seu personagem na tela. Era óbvio que essa era sua primeira vez. Ela atacou diretamente os inimigos sem se esquivar, morrendo várias vezes. Amane começou a se perguntar se talvez houvesse coisas que nem mesmo um anjo pudesse fazer, embora ela parecesse estar melhorando gradualmente, ainda que muito lentamente. 

“Eu não posso ganhar.”, Mahiru confessou. 

“Não importa limpar a fase— você nem sequer derrotou o primeiro inimigo.”, Amane observou. 

“Ah, cala a boca.”  

“Bom, é apenas uma questão de prática; você precisa continuar tentando. Adquira essa memória muscular.” 

Amane avisou a Mahiru que seria um desafio, mas ela não parecia disposta a desistir. Era encantador ver a garota enfrentar o jogo com uma expressão tão séria. Amane não pôde deixar de sorrir. 

Infelizmente, a Mahiru era muito iniciante e continuava perdendo. Eventualmente, ficou óbvio que ela estava ficando frustrada. Quando ela olhou de relance para o Amane, ele poderia jurar que ouviu um efeito sonoro parecido com o de um jogo acompanhando o rosto sombrio dela. 

“Ah, aqui, você precisa fazer assim…” Mahiru certamente perderia o interesse se continuasse a bater metaforicamente a cabeça contra a parede, então o Amane colocou a mão no controle que ela estava segurando e tentou mostrar fisicamente o que fazer. 

Amane havia zerado esse jogo em inúmeras ocasiões e, por isso, conseguiu ajudar a Mahiru a superar as dificuldades. Surpreendentemente, a Mahiru era, na verdade, pior do que a média dos jogadores. A maioria das pessoas não teriam ficado presas tantas vezes quanto ela, mas o Amane manteve esse pensamento em segredo. 

“Veja, esse inimigo se move a uma velocidade consistente em um padrão irregular, mas se você observar aqui, ele se move em direção ao seu personagem e acelera à medida que se aproxima. Apenas observe seu tempo e pule.” 

Amane colocou sua mão sobre a mão menor da Mahiru e segurou o controle para controlar o personagem na TV, mostrando a ela como fazer enquanto explicava. Na tela, o personagem do jogo se moveu como o Amane disse que faria, evitando o inimigo que se aproximava. 

Não foi um grande movimento, mas aparentemente foi o suficiente para impressionar a Mahiru, que soltou um pequeno suspiro de espanto. Seus olhos, cercados por longos cílios, se arregalaram e sua expressão se iluminou. 

Os dois estavam sentados mais próximos do que nunca, e o Amane notou pela primeira vez que os cílios inferiores da Mahiru também eram bastante longos. Sorrindo, ele observou a Mahiru jogar alegremente. 

Enquanto o Amane admirava seu belo perfil, a Mahiru se virou para ele, possivelmente por ter sentido seus olhos sobre ela. Ele precisou se aproximar para conseguir alcançar o controle, de modo que os dois ficaram muito mais próximos um do outro do que esperavam. Seus braços e mãos estavam até se tocando, e o Amane podia sentir a respiração da Mahiru roçando levemente sua pele. Amane se viu cercado de calor e de uma fragrância suave e doce. 

“D-desculpe…” De repente, o Amane percebeu que suas mãos estavam cobrindo quase completamente as da Mahiru e se afastou em pânico, enquanto os olhos da Mahiru percorriam ao redor da sala como se ela tivesse acabado de perceber que eles estavam se tocando. 

Piscando dramaticamente, a Mahiru respondeu, “Não… está tudo bem. Sou eu quem deve se desculpar.” 

As bochechas da garota ficaram coradas de escarlate e o Amane se arrependeu do que havia feito.  

Mahiru não era fã de contato físico. Por mais que estivessem acostumados um com o outro, ter alguém tocando suas mãos daquela maneira provavelmente foi demais para ela. Felizmente, embora parecesse bastante constrangida, ela não parecia chateada ou irritada. 

“De verdade, eu sinto muito.”, Amane disse novamente. 

“Hum, eu não estou muito incomodada com isso….”, Mahiru disse. 

“Você não odeia contato físico?” 

“Fiquei surpresa, mas não chateada. Não é como se você fosse um estranho.” 

Parecia que, hoje, o anjo magnânimo tinha achado por bem perdoar a transgressão do Amane. Aliviado com a facilidade com que a Mahiru deixou isso passar, Amane reiniciou o jogo. 

Fixando os olhos na tela da TV, o Amane se preparou para ajudar a Mahiru a progredir de verdade no jogo dessa vez. Então ele viu que o personagem dela tinha morrido na fase— um resultado bastante previsível. Amane estava começando a se perguntar se ele poderia fazer alguma coisa para ajudá-la a melhorar. 

No final, a Mahiru conseguiu passar um nível, choramingando otempo todo. Os dois concordaram que aquele era provavelmente um bom ponto de parada por enquanto. 

Se o Amane continuasse fazendo uma iniciante enfrentar a morte, isso teria um efeito considerável em sua motivação. O plano dele por enquanto era fazer com que ela tentasse outro jogo e se soltasse. 

“Mahiru, você está inclinando.” 

Para isso, o Amane havia sugerido um jogo de corrida, já que tinha alguma base no mundo real, mas a Mahiru estava se inclinando com todo o corpo. 

Não havia nenhum elemento de controle giroscópico no jogo, portanto, não havia absolutamente nenhuma necessidade de se movimentar fisicamente. Amane não tinha certeza se a Mahiru havia percebido o que ela estava fazendo, mas ela se balançava para a esquerda e para a direita cada volta que dava no jogo. 

Em contraste com o jogo anterior, esse era sobre dirigir um carro, e Amane achou que seria mais fácil, já que quase todo mundo entendia o conceito de dirigir até certo ponto. Jogar o tutorial também pode ter ajudado, pois, embora a direção da Mahiru fosse um pouco desajeitada, ela conseguiu lidar com a jogabilidade real. 

Ela estava se esforçando ao máximo para ter um bom desempenho. Seu corpo balançava para um lado e para o outro enquanto ela mantinha uma expressão muito séria. 

Isso é ridiculamente fofo, Amane pensou. 

Mahiru era estranhamente adorável, balançando para frente e para trás como um pêndulo. Seu foco e esforço intensos só a deixaram ainda mais fofa. 

A cada curva, o corpo da Mahiru se inclinava automaticamente para o lado. Eventualmente, ela caiu no colo do Amane, e ele foi forçado a engasgar com uma risada. 

“Você realmente não precisa inclinar todo o seu corpo, sabe?” ele disse. 

“N-não foi de propósito.”, Mahiru respondeu timidamente. 

“Sim, eu sei. Mas, mesmo assim, você estava se inclinando bastante.” 

Mahiru se recompôs, de alguma forma conseguindo conter seus lábios trêmulos e emburrados.  

 

A garota se sentiu macia e leve quando caiu acidentalmente sobre ele. Isso já era de se esperar, pois a Mahiru era de baixa estrutura, mas era tão magra que, às vezes, o Amane se preocupava que ela pudesse se partir ao meio. 

Levantada do colo do Amane, as bochechas da Mahiru estavam coradas e seu corpo tremia, provavelmente de vergonha. Era em momentos como esse que a garota realmente se assemelhava a um pequeno animal. Finalmente, Amane não aguentou mais e caiu na gargalhada. 

“V-você está tirando sarro de mim?” Mahiru exigiu. 

“Não, não. Eu estava pensando em você é encantadora.” 

“Então você está tirando sarro de mim!” 

“Você acha que eu tiraria sarro de alguém que está dando o melhor de si?” 

“Não, mas…” 

“Viu? Você estava muito fofa; só isso.” 

“Quando você diz fofo, tenho certeza de que quer dizer infantil.” 

As palavras da Mahiru tinham um tom um pouco irritadiço, e o Amane temia que ela ficasse deprimida se ele provocasse demais; assim, ele decidiu manter quaisquer outros pensamentos para si mesmo. Ele deu um meio sorriso para a Mahiru em resposta à expressão de desaprovação dela, e ela rapidamente se virou. 

Qualquer vestígio do humor sombrio do anjo desapareceu instantaneamente quando ela voltou ao jogo. Sua concentração intensa anulou tudo em seu rosto. Estava ficando claro que ela estava se acostumando com o jogo, pois estava conseguindo acompanhar os outros carros, embora de alguma forma um pouco desajeitada. Amane tinha razão ao supor que um conceito mais familiar, como dirigir um carro, era melhor para a Mahiru. No entanto, ela ainda se desviou do curso para a terra ou bateu em alguma parede algumas vezes. 

Amane estava preocupado que ela pudesse acabar fazendo todo o percurso para trás, já que ela nunca havia jogado um jogo antes, mas ele ficou aliviado ao ver que ela estava progredindo melhor do que ele esperava. 

Tentar jogar o jogo de corrida junto com a Mahiru se mostrou um pouco difícil, pois ela ficava distraindo o Amane sem perceber. Enquanto ela inclinava todo o corpo para frente e para trás com o jogo, ela ocasionalmente se inclinava direto para ele. A cada vez que ela fazia isso, um aroma adorável se espalhava sobre ele, tornando difícil manter a compostura. 

Mesmo com a desvantagem incomum, o Amane ainda conseguiu manter uma grande vantagem. Afinal, eles estavam competindo contra os bots mais fracos. 

“Como você é tão rápido?” Mahiru perguntou. 

“Prática e experiência.”, Amane respondeu. 

Depois de jogar tantas vezes, o Amane conhecia o campo de cor e sabia como navegar melhor pelas curvas. Mesmo com a interferência externa da Mahiru, ele conseguiu aproveitar todas as vantagens e manter a liderança sem muitos problemas. 

Olhando de relance para a Mahiru, que parecia completamente atônita, Amane silenciosamente mudou o jogo para o modo solo e saiu da competição. Mahiru não tinha experiência suficiente, então o Amane achou que seria melhor jogarem juntos depois que ele a deixasse praticar sozinha por um tempo. Era melhor que ela se sentisse confortável jogando contra personagens controlados pelo computador em vez de se sentir decepcionada por perder para o Amane. 

Felizmente, ficou claro que a Mahiru não tinha falta de determinação, e ela olhou com entusiasmo para a tela mesmo depois de jogar sozinha. Com uma atitude como essa, o Amane tinha certeza de que ela aprenderia rapidamente a se defender de um adversário computadorizado.  

Era óbvio o quanto ela trabalhava duro, mesmo com algo como um videogame. Essa perseverança era encantadora, mas sempre que o Amane deixava escapar um sorriso no rosto, a Mahiru percebia rapidamente e batia os joelhos em sinal de protesto. 

Se ele risse demais, divertido com os protestos dela, a Mahiru franzia a testa e resmungava, “Amane, seu idiota.” 

“Eu venci.” 

Após duas horas de perseverança, Mahiru cruzou a linha de chegada e as palavras FIRST PLACE apareceram na tela. Ela se virou para olhar o Amane, obviamente orgulhosa de si mesma. 

Depois de uma batalha árdua com o jogo de corrida, a Mahiru alcançou a glória de terminar em primeiro lugar. 

Apesar de ter ficado em último lugar em tantas tentativa anteriores, a Mahiru se recusou a desistir e continuou, melhorando sua classificação pouco a pouco até que, finalmente, venceu. Esse investimento provavelmente tornou a vitória bastante emocionante. 

A expressão da Mahiru parecia proclamar “Eu consegui!” e o Amane bateu palmas em sinal de admiração. 

“Isso é ótimo. Percebi que você se esforçou bastante.”, ele elogiou. 

“Sim!” Talvez porque a Mahiru estivesse gostando do elogio, seu comportamento habitual se suavizou e ela pareceu um pouco tímida. Ela não abriu um sorriso enorme e óbvio, mas em vez disso exibiu uma curva fugaz e tímida dos lábios que parecia ligeiramente satisfeita. Parecia tão doce que era difícil acreditar que pertencia à mesma pessoa fria e reservada. 

Recentemente, a Mahiru estava agindo mais como uma adolescente comum e menos como uma jovem perfeita. Hoje, acima de tudo, ela estava realmente agindo como uma criança. Seu sorriso angelical tinha algo de inocente e, olhando para ela, o Amane sentiu seu senso de razão começar a ceder quando o desejo estrondoso de abraçá-la cresceu dentro dele. A vontade de acariciar a Mahiru como um gato tomou conta de seu braço e, antes que percebesse, o Amane se viu estendendo a mão para ela.  

“Há algum problema?” Mahiru perguntou. 

Rapidamente, o Amane recuperou o controle de seu membro rebelde. “Ah, n-não, não é nada. Você realmente ficou boa nisso, n-né?” 

“Eu estou melhorando?” 

“Com certeza. Você está muito melhor do que quando começou.” 

“Obrigada. Foi muito divertido, então acho que fiquei bastante envolvida.” Mahiru riu para si mesma. 

Amane evitou fazer contato visual atravessando a sala e pegando uma pequena caixa de uma cesta na prateleira. “Digamos que este seja o seu prêmio pelo primeiro lugar.”, ele disse. 

“Ah, hum, isso realmente não é—” 

“Se você não gosta da ideia de um prêmio, pense nisso como algo deixado para trás por um velho robusto com uma barba branca e um terno vermelho.” 

Era um presente de Natal que o Amane havia esquecido de dar a Mahiru no dia anterior.  

Como o aniversário da Mahiru e o Natal não eram muito distantes, o Amane esperava alguma dificuldade para escolher esse segundo presente. Felizmente, ele também havia se familiarizado um pouco com a prática, então, surpreendentemente, acabou não sendo tãodifícil escolher um presente de Natal quando havia sido encontrar um para o aniversário da Mahiru.  

Mahiru piscou rapidamente, como se a referência a um presente de Natal tivesse acabado de lembrá-la de que hoje era de fato Natal, e aceitou a caixa com nervosismo. Por insistência do Amane, ela cuidadosamente desfez o embrulho. 

Bem, não é nada de especial, Amane pensou. 

Ela abriu a caixa e retirou lentamente o presente. Era um porta-chaves de couro. 

Esperando que a Mahiru se sentisse desconfortável se o Amane lhe desse algo muito caro, o Amane evitou comprar um item de marca sofisticado. Ele escolheu esse simplesmente porque o design parecia combinar com a Mahiru. 

Ele era simples, com flores e heras esculpidas no couro, tornando-o perfeito para o uso diário. Amane não era muito versado em flores, por isso não sabia exatamente quais estavam presentes no design, mas ele achava que suas formas delicadas combinavam bem com a Mahiru, e foi por isso que ele o escolheu. 

“Bom, eu lhe dei minha chave reserva e tudo mais. Se você quiser usá-lo, tudo bem também.”, Amane disse. 

“Não, eu definitivamente irei usá-lo, obrigada. Você tem um senso de estilo melhor do que eu esperava, Amane.”, Mahiru respondeu. 

“Como assim, melhor do que esperava?” 

“Quero dizer, normalmente você só usa calça de moletom ou jeans… Não é como se você gostasse de moda ou algo assim.” 

“Eu só tenho roupas funcionais, não tenho mais nada.” 

Se vestir com roupas mais bonitas era um tédio que o Amane evitava sempre que possível. Ele nunca teve a oportunidade de mostrar a Mahiru como ele era em roupas melhores, então ela só tinha o visto com o uniforme da escola e roupas casuais de casa. Não era de se admirar que ela achasse que ele não tinha senso de moda. Esse palpite foi certeiro, e Amane não parecia disposto a desfazer essa impressão desleixada tão cedo. 

“Se você se esforçasse, provavelmente ficaria muito bem, sabe? Você se preocupava com sua aparência no fundamental, não é?” Mahiru perguntou. 

“Isso foi porque minha mãe me forçou a… Espere, como você sabe disso?” 

“Shihoko me enviou esta foto e disse, ‘Aqui está como ele poderia se parecer caso ele tentasse’…” 

“Inacreditável.” 

Amane ficou chocado ao ver a foto da época em que sua mãe o vestiu e o levou para o trabalho. Em silêncio, o Amane amaldiçoou a indiscrição de sua mãe. 

“Esse estilo não combina comigo.” 

“Eu acho que você tem razão, Amane. Sabe, você nunca faz contato visual e seu rosto está sempre escondido atrás do cabelo, mas acho que você tem traços bastante distintos…” 

A pequena mão da Mahiru se estendeu em direção ao rosto do Amane, e sua palma branca roçou a testa dele enquanto ela empurrava a longa franja dele para cima. Ela estava olhando para ele com uma expressão curiosa. Ele não achava que seu rosto fosse algo para se admirar— era perfeitamente comum, nem muito feio, nem muito bonito. Amane começou a se perguntar o porquê da Mahiru estar olhando tão atentamente para ele. 

“O que é?” ele perguntou. 

“Nada. Seus olhos parecem mais vivos do que antes, só isso.”, Mahiru respondeu. 

Sem desviar o olhar, a Mahiru lembrou ao Amane que, meses antes, o rosto dele estava vazio como de um zumbi.  

Enquanto a Mahiru continuava olhando, o Amane estava começando a se sentir desconfortável com o fato de uma garota, sem mencionar uma beleza incrível, estar olhando para ele com tanta atenção. Ele se perguntou o que ela achava tão fascinante em sua aparência entediante.  

Por fim, ele não aguentou mais. Amane estendeu a mão lentamente e afastou uma mecha de cabelo do rosto encantador da Mahiru. Ele estava hesitante em tocá-la, mas ela havia estendido a mão e tocado seu cabelo tão casualmente que ele achou que ela provavelmente o perdoaria por fazer o mesmo. Seria apenas o mais leve momento de contato; certamente isso não faria mal. 

Mas, nossa, ela é realmente linda… 

Mahiru era muito mais bonita do que as modelos glamourosas das revistas que estavam espalhadas pelo quarto do Amane— e muito mais atraente. Alguma coisa nela era incrível toda vez que ele a olhava. 

De qualquer forma, Amane sabia que não se podia confiar em fotografias. Mesmo que pudessem capturar um momento de beleza, preservando-o no tempo, as fotografias podem ser feitas para enganar. A Mahiru, no entanto, estava diante dele em carne e osso. Sua beleza era real— não adulterada. Amane achava que nunca poderia se cansar de contemplar uma criatura tão encantadora. 

Enquanto o Amane continuava estudando suas feições, os olhos da Mahiru começaram a se desviar e ela se afastou dele, deixando cair o controle. Amane se perguntou o que a estava incomodando enquanto ela abraçava com força uma almofada do sofá próximo contra o peito. 

“Hum. Então… certo. Eu também tenho um presente de Natal para você.” 

“Hum, ah, obrigado.” 

Amane estava prestes a perguntar o que poderia ser, quando a Mahiru o interrompeu, tirando de sua bolsa uma sacola de presente bem decorada. Apressadamente, ela o colocou nas mãos dele. 

“Certo, eu irei preparar o jantar.” 

“Hã? V-você está…” 

Com essas palavras, a Mahiru se levantou rapidamente e foi para a cozinha. Amane ficou apenas perplexo com o desenvolvimento excessivamente rápido. 

Depois que o Amane terminou de lavar a louça do jantar, ele voltou para a sala de estar e descobriu que a Mahiru estava inquieta. Ela estava sentada do lado dele, da mesma forma que eles haviam se acostumado recentemente, mas, dessa vez, a Mahiru estava tendo dificuldadepara manter a compostura. Ela também desviou o olhar durante todo o jantar. 

Esse era um tipo de autoconsciência da qual a Mahiru parecia ser incapaz anteriormente, o que levou o Amane a se perguntar se algo havia acontecido. Talvez tenha algo a ver com o fato de ela ter lhe dado o presente? Quando o Amane deu o ursinho de pelúcia a Mahiru, ele também teve vontade de fugir e foi difícil se acalmar. Talvez a Mahiru estivesse sentido um tipo de ansiedade semelhante.  

“De qualquer forma, eu posso abri-lo?” Amane perguntou. 

“P-por favor, abra.” 

Amane pegou o presente de onde o havia deixado em cima da mesa de centro, e Mahiru assentiu com certa hesitação. Concluindo que ela estava mesmo nervosa em lhe dar um presente, o Amane desfez o laço que prendia a sacola. 

Imediatamente, ele percebeu, pela sensação e pelo peso, que se tratava de algo feito de tecido. Quando Amane o retirou e viu que se tratava de um pedaço de tecido xadrez preto e branco, ele não tinha certeza do que era. No entanto, depois de espalhar o objeto inteiro, ele entendeu imediatamente.  

“Um cachecol?” 

Ele parecia ser bastante macio e luxuoso. Certamente, isso o manteria aquecido se ele o enrolasse no pescoço.  

“Bom, você é indiferente à moda e sempre parece estar com frio no caminho para a escola, então…” 

“Eu realmente posso usá-lo; e uau, é uma sensação tão agradável.” 

“A qualidade é importante quando você escolhe algo que usará todos os dias.”, Mahiru explicou. 

Como a Mahiru era uma pessoa que só usava roupas de alta qualidade, o Amane tinha certeza de que ela sabia do que estava falando. Mahiru parecia ser do tipo que considerava perda de tempo comprar coisas baratas, preferindo usar produtos bem feitos que durassem muito tempo. Se esse cachecol estivesse de acordo com seus padrões, ele devia ser muito bom mesmo. 

Amane podia dizer, só de tocá-lo, que o cachecol tinha uma textura luxuosa e era macio o suficiente para não incomodar nem mesmo a pele sensível. 

Impressionado com os altos padrões da Mahiru, o Amane acenou com o presente para ela enquanto ela o observava com uma expressão rígida. 

“Eu posso experimentar?” Amane perguntou. 

“Eu o dei para você, então você pode fazer o que quiser.”, Mahiru respondeu secamente. 

“Entendido.” 

Amane sorriu com a resposta direta dela e enrolou o cachecol em volta de si mesmo. Ele podia sentir a qualidade do tecido ainda mais em seu pescoço, onde a pele era mais sensível. Ele manteve todo o calor sem deixar passar muito ar. A sensação do tecido era calmante e confortável. Como o Amane estava dentro do apartamento, era difícil dizer o quão eficaz seria o cachecol, mas ele confiava que, sem dúvida, o manteria confortável durante os meses de inverno. 

“Nossa, é super quente.” 

“Isso é ótimo.” 

Amane deu um sorriso gentil e a Mahiru respondeu com um sorriso aliviado. Recentemente, a Mahiru começou a mostrar ao Amane seus vários tipos de sorrisos com mais frequência, e ele se viu olhando novamente para suas feições encantadoras.  

…Quando ela está assim, ela realmente parece um anjo… 

Claro, todos na escola diziam que a Mahiru tinha uma aparência divina, mas o Amane achava muito mais atraente quando ela sorria assim e mostrava seu verdadeiro eu. 

“O q-que foi?” Mahiru notou que o Amane estava olhando diretamente para ela. Seus olhos se moveram para a esquerda e para a direita antes de se fixarem naquele que a olhava.  

“Nada; Eu apenas estava pensando que você parece muito mais relaxada do que quando a conheci.” 

“Então é isso?” 

Mahiru pareceu surpresa, e Amane riu um pouco. 

“Sim. Antes, você era toda esnobe e nada fofa.” 

“Isso foi terrível da minha parte, não ser fofa.”, Mahiru disse sarcasticamente. 

“Vamos— não fique de mau humor… Agora você está muito mais… Como devo dizer? Eu acho que você parece melhor. Eu estava pensando que o seu sorriso agora é muito mais bonito. É realmente uma pena que você não estivesse sorrindo assim antes.” 

Mahiru sempre foi bonita, mas uma parte dessa beleza mudou em como ela se comportava. 

O sorriso angelical que ela exibia na escola tinha a beleza de algo a ser apreciado à distância. Era uma coisa frágil que não podia ser tocada. 

O olhar frio que ela havia dado ao Amane pela primeira vez tinha o apelo de algo envolto em espinhos para impedir que os humanos se aproximassem demais. 

Agora, seu sorriso suave e inocente tinha um calor acolhedor que fazia o Amane querer acariciá-la e cuidar dela. 

Amane pensou em como a Mahiru havia mudado. Aos poucos, ela se acostumou a ficar perto dele e abriu seu coração. Ao se lembrar do tempo quepassaram juntos, o Amane sentiu uma sensação de cócegas subindo gradualmente pelo peito e chegando às bochechas.  

“Eu estou feliz por você conseguir sorrir tão naturalmente agora, e por ter se acostumado a ficar comigo, e… O que você está fazendo?” 

A frase do Amane foi fisicamente interrompida quando a Mahiru levantou o lenço em volta do pescoço dele para cobrir o rosto dele com o tecido. Ela não o enrolou com força, mas ficou um pouco abafado e quente, pois o material prendia a respiração do Amane. 

“Por favor, fique quieto um pouco.”, Mahiru ordenou. 

“Por quê?” 

“Nada.” 

Amane não entendia essa explosão repentina de comportamento excêntrico. Ele agarrou o pulso da mão dela que estava segurando o cachecol e o empurrou de volta para baixo. Com a visão recuperada, ele pôde ver os cabelos cor de linho da Mahiru e o tom de cor espalhados pelas bochechas dela, e ele notou que ela estava tremendo levemente. Ao olhar para ele, ela ficou ainda mais corada. 

Ele se perguntou o motivo dela estar fazendo uma cara tão estranha e, de repente, percebeu que só poderia haver uma resposta. 

“Não me diga que… Você está com vergonha?” 

“Cala a boca.” 

Mahiru se virou bruscamente, o que só serviu para confirmar o que o Amane havia dito. Sem querer, Amane sorriu ao pensar que o anjo poderia ser muito irritadiço sobre coisas assim. 

Mahiru gemeu e murmurou baixinho, “Vou sair para tomar um pouco de ar.” Então ela rapidamente foi para a varanda.  

Pela janela, o Amane podia ver que estava nevando como no  dia anterior, mas a Mahiru não parecia se importar e saiu para a varanda mesmo assim. 

O ar frio entrou no apartamento e Amane se arrepiou. Embora a Mahiru tenha fechado a porta imediatamente, um toque de frio ainda pairava na sala de estar. Amane soltou um suspiro silencioso. 

Não há problema em ela fugir para esconder seu constrangimento, mas ela poderia pelo menos fazer isso com uma roupa um pouco mais quente.  

Mahiru obviamente escolheu suas roupas presumindo que passaria o dia dentro do apartamento— ou pelo menos usaria uma jaqueta pesada se saísse. Ela claramente priorizou em detrimento do calor, e seu corpo esguio certamente esfriaria rapidamente no frio.  

Amane praguejou baixinho e pegou o cobertor que estava sobre o encosto do sofá.  

É muito perigoso ficar do lado de fora na neve usando roupas tão finas. 

Depois de vestir seu casaco, o Amane seguiu a Mahiru até a varanda e enrolou o cobertor em seus ombros. 

“Tomar um pouco de ar fresco é bom, mas você vai pegar um resfriado assim.”, Amane repreendeu. 

Mahiru se virou rapidamente para encará-lo. “Essa não é a minha fala?” Claramente, ela havia se acalmado, já que respondeu com seu comportamento e expressão habituais, embora houvesse um tom um pouco amuado em sua voz. Talvez ela estivesse se sentindo mal porque o Amane havia dito algo que remeteu à conversa de quando eles se conheceram. 

“Hmph. Isso apenas aconteceu porque eu não tomei banho e me aqueci como deveria. Simples negligência.”, Amane lembrou. 

“Da próxima vez que você ficar encharcado como um rato afogado, certifique-se de se aquecer bem. Se eu estiver lá, eu mesmo o jogarei na banheira.”, Mahiru rebateu. 

“O que você é, minha mãe?” 

Sem dúvidas, houve momentos em que a Mahiru disse algumas coisas bastante maternais.  

Com um sorriso, o Amane se lembrou de seu primeiro encontro com o anjo. Foi na época em que o outono geralmente começava a esfriar, mais ou menos na metade de outubro. Ele não esperava ficar com febre apenas por ter se molhado um pouco, mas o tempo estava esfriando muito mais rápido do que o normal em sua cidade natal. Pensando nisso, o Amane admitiu para si mesmo que talvez tivesse sido realmente descuidado. 

No entanto, a parte mais surpreendente de toda a situação foi, sem dúvida, o fato da Mahiru estar cuidando dele para que recuperasse a saúde. 

“Sabe, já se passaram dois meses desde que começamos a 
conversar….”, Amane disse melancolicamente. 

“Você está certo. E pensar que seu quarto estava tão sujo! Foi terrível… Agora isso só assombra minhas memórias.”, Mahiru brincou. 

“Ah, silêncio. Eu estou mantendo-o limpo agora, certo?” 

“E a quem você deve por isso?” 

“Ora, a Senhora Mahiru, é claro. Isso me faz querer me curvar em humilde gratidão.” 

“Você não precisa fazer isso, caramba.” 

Naquele dia chuvoso, o Amane nunca teria acreditado que ele e a Mahiru chegariam a um ponto em que pudessem conversar dessa forma. Tudo isso parecia ter acontecido há muito tempo, mas, na verdade, foi há pouco tempo. Muita coisa havia mudado nesses dois meses. O tempo realmente passou voando.  

Um silêncio se abateu sobre os dois e, de repente, tudo ficou quieto. 

A neve, que estava começando e parando aos poucos desde ontem, agora estava caindo suavemente do céu, pintando os prédios de apartamentos ao redor de um tom pálido. 

O prédio do Amane e Mahiru ficava em uma área residencial e, como era Natal, a área estava silenciosa. De algum apartamento próximo, os dois puderam ouvir fracamente os sons de uma música natalina, embora não o suficiente para decifrar a letra. 

Mahiru exalou uma pequena baforada branca e os ouvidos do Amane captaram esse som melhor do que qualquer outro.  

“É uma sensação meio estranha. No início, eu estava me perguntando ‘O que há com esse cara?’” 

“Bom, eu acho que isso não é surpresa. Qualquer pessoa ficaria desconfiada se alguém de repente forçar um guarda chuva em sua direção… O que você acha?” 

“Hmmm, vamos ver. Eu diria que… você dá muito trabalho.” Mahiru se virou depois de sua resposta ambígua.  

“Você não está errada.” Amane sorriu enquanto se encostava na grade da varanda. “Sabe, eu também nunca pensei que nos aproximaríamos o suficiente para fazermos refeições juntos dessa maneira. Sendo sincero, eu sempre pensei em você como alguém a ser admirado à distância. Nunca pensei em me envolver com você.” “Isso foi certamente honesto… embora eu já soubesse disso. 

"É exatamente por isso que eu confio em você.”, Mahiru disse, e seu corpo tremeu de tanto rir.  

Amane sabia que a Mahiru apenas o aceitava em sua vida porque ele não se sentia atraído por ela e, aparentemente, ela sentia o mesmo. 

“Mesmo assim, eu estou feliz por tê-la conhecido assim. Minha vida realmente melhorou muito, estou feliz porque posso comer alimentos deliciosos todos os dias e me sinto à vontade quando estou com você.”, Amane declarou. 

“Você realmente acha isso?” 

“Eu acho. Sou incrivelmente grato por esses últimos dois meses. Obrigado.” Amane não poderia ter sido mais sincero mesmo que tentasse. Foi graças à Mahiru que seu padrão de vida melhorou e que ele passou a desfrutar de uma refeição deliciosa todos os dias. Surpreendentemente, o Amane também descobriu que poderia gostar de conversar com uma garota sem nenhum tipo de expectativas incômoda. Isso até se tornou algo pelo qual ele ansiava. Melhor ainda, a Mahiru ocasionalmente lhe mostrava reações adoráveis quando o Amane a provocava, e ele nunca se cansava delas.  

Recentemente, ela também começou a rir mais.  

Como o Amane havia percebido antes, a Mahiru de fato começou a demonstrar uma gama mais rica de emoções, uma mudança que só a tornou mais cativante. Amane nunca agiria de acordo com seus sentimentos, é claro, mas… apenas de olhar para ela, ele se sentia em paz. 

Os olhos da Mahiru estavam arregalados, e Amane não sabia dizer se o leve vermelhidão em suas bochechas era por causa do frio ou porque ela estava envergonhada.  

“Não, muito obrigada.”, ela disse. 

“Mas eu não fiz nada.” Do ponto de vista do Amane, a Mahiru foi a pessoa que fez tudo por ele. Ele tinha certeza de que não havia dado nada em troca à garota, mas ela balançou a cabeça lentamente em sinal de discordância.   

“Eu sou grata por coisas que você não sabe, Amane.”, Mahiru explicou. 

“Hmm… Cada um de nós dizendo ao outro pelo que somos gratos tem uma espécie de vibração de fim de ano. Eu acho que isso não é tão estranho assim, já que o ano está prestes a terminar.” 

Curiosamente, tanto o Amane quanto a Mahiru agradeceram um ao outro por certas coisas, apesar de o ano novo ainda estar a seis dias de distância.  

Os olhos da Mahiru brilharam com a menção do final do ano, e ela deixou escapar uma pequena risada.  

“Ha-ha, é verdade. Ainda é um pouco cedo, mas… Feliz Ano Novo, Amane. Vamos torná-lo bom.” 

“Sim, Feliz Ano Novo.” Amane assentiu e sorriu com a proposta celestial da Mahiru.  

Então a Mahiru disse de repente, “Eu estou congelando; vamos entrar, certo?” Ela se virou e abriu a porta de vidro que dava para a sala do Amane. 

Amane viu de relance as orelhas dela, que haviam ficado vermelhas com o ar gelado, e concordou que era melhor entrar para não pegar um resfriado.  

De uma forma ou de outra, eu acho que também estou gostando desse estilo de vida. Provavelmente é por isso que meu peito está tão quente.  

Enquanto ele seguia a Mahiru de volta para dentro do apartamento, o Amane observou o suave balançar de seus cabelos macios de linho e sorriu secretamente para si mesmo.

Ele esperava que, nos próximos dias, continuasse a ver mais do anjo que morava no apartamento ao lado. 



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