Volume 1

— Capítulo 5: Jornada para Arcadya —



Na manhã seguinte, já conseguia vislumbrar à distância o contorno imponente de Yhona, minha primeira parada. A cidade parecia maior do que eu havia imaginado, quase irreal, como se exalasse uma aura de fantasia. No ponto mais alto, erguia-se o castelo da família real, uma visão que me tomou de assalto: era a construção mais majestosa que eu já havia visto.

Adentrar suas ruas foi como despertar em um mundo esquecido. Era impossível não me sentir um tanto deslocado; fazia tempo que não via tanta gente reunida em um mesmo lugar. Havia algo desconfortável no burburinho constante, mas, ao mesmo tempo, era reconfortante caminhar novamente por uma paisagem urbana, com suas vielas sinuosas e seu ritmo pulsante.

Meu plano era simples: reabastecer meus suprimentos, encontrar uma pousada para passar a noite e, ao amanhecer, seguir viagem.

O passeio pelo centro revelou-se uma experiência agradável. Enquanto comprava o que precisava, deixei-me levar pelas cores e sons da cidade. Quando o céu começou a se tingir com os tons suaves do crepúsculo, procurei um lugar para repousar. Embora acostumado a dormir ao relento, não pude negar o prazer de uma cama macia após cinco dias de viagem árdua.

A aurora seguinte me despertou antes mesmo do primeiro raio de sol. Meu relógio interno não me dava trégua, e o desjejum foi a única companhia enquanto aguardava o sol surgir no horizonte. Assim que o dia começou a clarear, pus-me a caminho do portão leste, minha saída rumo à rota principal para Clocktown.

No entanto, ao me aproximar do portão, percebi uma agitação incomum. Dois homens discutiam em frente a uma carruagem: um deles vestia roupas elegantes, enquanto o outro, claramente um mercenário, carregava armas que falavam por si.

— Como pode cancelar a escolta tão em cima da hora? — bradou o homem bem vestido, a frustração clara em sua voz.

— Me desculpe, senhor Bloodrose, mas surgiu um imprevisto que não posso ignorar — respondeu o mercenário, defensivo, mas firme.

O homem elegante andava de um lado para o outro, visivelmente ansioso. Era um mercador, e a escolta que contratara havia cancelado no pior momento possível. Embora o trajeto até Clocktown não fosse considerado perigoso, um mínimo de segurança era essencial, especialmente para quem levava cargas de valor. Ele poderia encontrar outro guarda se esperasse mais um dia, mas temia que o atraso colocasse em risco a admissão de seu filho na prestigiosa Arcadya.

Quando sua esperança parecia esvair-se, avistou-me passando ao lado da carruagem. Minha silhueta, coberta pelas pesadas vestes de inverno, chamou sua atenção. Era evidente que meu porte avantajado transmitia uma certa intimidação, mas, para ele, eu era uma oportunidade.

— Ei, garoto!

Interrompi minha caminhada, virando-me na direção do chamado. Inicialmente, acreditei ser apenas mais uma discussão sem relevância, mas algo na insistência do homem despertou minha curiosidade.

Aproximei-me devagar, mantendo a postura tranquila, ainda que meu olhar carregasse certa gravidade.

— Algum problema? — perguntei, tentando soar casual

O mercador pareceu hesitar por um instante, mas logo se recompôs.

— Veja bem... — começou, tentando soar confiante, embora seu tom denunciasse um leve nervosismo. — Sou mercador e estou prestes a iniciar uma viagem. Contudo, minha escolta cancelou de última hora. Não é um trajeto perigoso, mas preciso de proteção. Não seria um trabalho difícil, a rota é tranquila, mas, ainda assim, indispensável. Você não estaria interessado?

A proposta parecia surgir do nada, e confesso que fiquei surpreso pela rapidez com que ele supôs que eu fosse um combatente. Não estava exatamente errado; minha experiência me dava segurança para aceitar algo do tipo. Ainda assim, tempo era um luxo que eu não podia desperdiçar.

Se eu me atrasasse alguns dias, não haveria chance de chegar a Arcadya a tempo. Por isso, infelizmente, teria que recusar.

— Agradeço a oportunidade, mas também preciso seguir viagem hoje. Não posso desviar da minha rota original — disse, em um tom seco.

— Ah, não tem problema, desculpe por tomar seu tempo — respondeu ele, num tom desapontado, como se já soubesse que a proposta não daria frutos.

Quando me virei para retomar o caminho, algo chamou minha atenção. Uma figura feminina, vestida com roupas elegantes, se aproximava. Atrás dela, quase oculto, um garoto de cabeça baixa parecia carregado de desconforto.

— Querido, conseguiu resolver a escolta? Não podemos nos atrasar. Clocktown fica longe, e não podemos arriscar que Mickey perca o dia da admissão — disse a mulher ao marido, num tom casual, mas direto.

Antes que ele pudesse responder, não consegui conter a pergunta que já fervilhava em minha mente:

— Perdão, mas vocês também estão indo para Clocktown? — Minha voz carregava um toque de esperança, temendo ter entendido errado.

— Ah, sim. Precisamos levar nosso filho para Arcadya antes do dia da admissão — respondeu a mulher.

Um leve sorriso se formou em meus lábios, quase imperceptível.

— Nesse caso, acho que posso aceitar o seu trabalho, senhor.

Os olhos do homem brilharam de alívio, e ele respondeu, quase sem acreditar:

— Sério mesmo? Que maravilha! Então, garoto, qual é o seu nome?

— Artemy — respondi, confiante, embora meu sorriso carregasse uma nota amarga.

— Muito prazer! Meu nome é Antony Bloodrose. Aquela é minha esposa, Amanda, e nosso filho, Mickey. Espero que tenhamos uma boa viagem juntos, Artemy — disse ele, estendendo a mão para mim.

— O prazer é todo meu — respondi, apertando sua mão com firmeza.

E assim me vi embarcando na carruagem da família Bloodrose, assumindo o papel de escolta para eventuais contratempos. No início, o clima era envolto por uma estranheza discreta; Amanda e Mickey mantinham-se um tanto cautelosos em minha presença.

Porém, os dias trouxeram mudanças. Aos poucos, a rigidez do ambiente cedeu espaço a diálogos mais descontraídos. Amanda revelou-se uma mulher animada, especialmente quando o assunto envolvia seu filho. Ela não poupava oportunidades para compartilhar histórias embaraçosas de Mickey, sempre com um brilho no olhar.

Mickey, por sua vez, era um garoto pequeno e retraído, carregando uma constante aura de temor. Era notoriamente apegado à mãe, mesmo que resmungasse, com um tom de vergonha, sempre que Amanda narrava algo sobre ele.

Antony, embora jovem, era um homem de negócios perspicaz e dono de uma ética irrepreensível. Às vezes, deixava-se levar por longas explicações sobre o mercado, apenas para interromper-se, constrangido, ao perceber que ninguém acompanhava suas divagações.

— Inclusive, Artemy, por que está indo para Clocktown? — perguntou Antony, suas mãos firmes conduzindo os cavalos.

— Ah, eu pretendo ingressar em Arcadya. Também sou um calouro.

Ao ouvir minha resposta, os três me lançaram olhares intrigados. Amanda e Antony demonstravam surpresa genuína, mas Mickey parecia tomado por um medo tão intenso que seu rosto quase transparecia lágrimas.

Na mente de Mickey, a revelação era aterradora. Para ele, eu parecia um gigante, alguém digno de liderar gangues. Descobrir que eu era apenas mais um calouro em Arcadya fez sua imaginação pintar quadros ainda mais assustadores sobre os outros alunos da academia.

— Tá vendo, mãe? Se o Artemy é um calouro, como eu vou sobreviver naquela escola? Todo mundo lá deve ser um monstro! — lamentou Mickey, agarrando a blusa de Amanda, os olhos marejados.

— Calma, meu filho. Tenho certeza de que Arcadya também tem jovens pequenos e frágeis como você. Além disso, não é como se pudéssemos desobedecer a uma ordem do patriarca, não é mesmo? — respondeu Amanda, com a mais pura inocência.

Mickey baixou a cabeça, claramente abatido pelas palavras da mãe, enquanto eu lutava para conter uma risada. A cena era hilária, embora não devesse ser.

— Não se preocupe, Mickey — interveio Antony, casual, enquanto os cavalos continuavam seu trote constante. — Meu pai pode ser severo, mas tenho certeza de que ele nunca mandaria seu neto para um lugar perigoso. Confie, Arcadya será importante para o seu crescimento.

Mas, ao invés de tranquilizar o garoto, as palavras de Antony só intensificaram o desespero de Mickey. Ele parecia à beira de um colapso, prestes a explodir em lágrimas, quando sentiu uma grande mão repousar em seu ombro.

— Relaxa aí, Mickey. Se alguém te encher o saco, é só descer a porrada neles — disse eu, com um sorriso confiante.

Mickey, então, parecia ter perdido completamente as esperanças.

Os dias que se seguiram foram repletos de uma descontração inesperada. Com o passar do tempo, me aproximei de Mickey, apesar de sua natureza tímida e reclusa. Curiosamente, ele se tornava surpreendentemente tagarela quando falava sobre algo que realmente gostava, como se o entusiasmo rompesse as barreiras de sua introversão.

Amanda continuava a mesma — sempre vibrante, trazendo o nome de Mickey para cada conversa com uma alegria maternal quase exagerada. Ela o colocava nas situações mais embaraçosas, e, ainda assim, havia algo de comovente nessas interações. Talvez fosse a forma como aquelas demonstrações de afeto evocavam em mim uma nostalgia dolorosa, uma lembrança agridoce do que um dia eu tive e perdi. Enquanto segurava meu crucifixo prateado, imaginei, por um instante, um mundo onde ela não tivesse partido tão cedo.

Em uma noite, perto da metade da viagem, terminei de montar o acampamento com a destreza adquirida pelo hábito. Sentado em um banco rústico de madeira, sob a luz trêmula da fogueira, comecei a limpar Hati e Skoll. A recomendação de um velho ecoava em minha mente: "Armas impecáveis são vidas poupadas."

— Oh, isso são armas de fogo? — Mickey surgiu ao meu lado, saindo de sua barraca com a curiosidade estampada no rosto.

— São, minhas fiéis companheiras. — Sorri enquanto erguia o par de pistolas, apresentando-as com um certo orgulho.

— Uou, que incrível! — Seus olhos brilharam com uma empolgação juvenil, aproximando-se ainda mais. — Posso segurar?

Com um aceno afirmativo, descarreguei Hati e travei-a antes de entregá-la.

— Claro, mas cuidado.

— Isso é muito lega—... eita. — Mickey tentou segurar a arma com uma só mão, mas o peso o pegou desprevenido. Ele mal conseguia erguer a pistola, quanto mais manuseá-la corretamente.

— Esqueci de avisar — disse, contendo o riso. — Cada uma pesa uns cinco quilos. Melhor usar as duas mãos.

Com dificuldade visível, Mickey ajustou a postura, tentando mirar em uma árvore próxima. Sua técnica era desajeitada, mas ele estava determinado. Antes que eu pudesse ajudá-lo, algo mudou. Notei uma leve oscilação ao seu redor — uma manipulação sutil de éther. Aos poucos, uma aura carmesim emanou de seu corpo. De repente, ele segurava Hati com naturalidade, como se o peso não fosse mais um obstáculo.

— Caramba, você é bom nisso! — comentei casualmente, um sorriso brincando nos lábios.

— Ah, não é nada demais, só uma técnica básica de fortalecimento... — respondeu Mickey, coçando a nuca com um gesto tímido. — Isso é brincadeira perto do que se faz em Arcadya.

Seus olhos ficaram distantes por um momento, a melancolia enegrecendo sua expressão. Mas para mim, era claro. Não havia nada de comum no que ele acabara de fazer. Uma técnica de fortalecimento perfeitamente executada sem usar encantamento e sem desperdício de energia.

Mesmo sem poder manipular éther, minha convivência com uma família de "monstros" me ensinara a reconhecer talento bruto. Mickey era mais especial do que ele conseguia enxergar, mas parecia cego pelo véu da baixa autoestima.

Antes que eu pudesse dizer algo, Cheshire surgiu ao meu lado, sorrindo com aquele ar enigmático e provocador de sempre.

— Que fascinante... — murmurou ele, enquanto observava Mickey. — Esse garoto parece frágil, mas quando afundado em sangue, deve se tornar um verdadeiro monstro. Hehe.

Balancei a cabeça, ainda encarando Mickey. Talvez esse realmente seja o nivel medio de arcadya, mas eu tenho a impressão de que ele vai acabar quebrando a cara

O tempo passou tão rápido que mal pude perceber. Em apenas dois dias, chegaríamos a Clocktown. As horas que passei com os Bloodrose foram, sem dúvida, agradáveis — quase como uma trégua para minha alma inquieta.

Quando o luar prateado ascendeu ao céu, Antony decidiu que era hora de parar. Encontramos uma clareira à beira da estrada, perfeita para montar acampamento. Era um lugar silencioso, banhado pela serenidade noturna.

— Ei, Artemy, pode me ajudar com a fogueira? — chamou Antony casualmente.

— Claro, deixa comigo.

A rotina noturna se desenrolava como de costume, e o clima tranquilo da viagem me trazia uma paz incomum. Na verdade, a jornada havia sido tão calma que meu papel como escolta parecia dispensável. Um pouco decepcionante, talvez, mas ao mesmo tempo, um alívio.

Enquanto me perdia em pensamentos, uma presença familiar surgiu ao meu lado. Era Cheshire, com um sorriso mais aberto que o habitual. Uma sensação de alerta percorreu minha espinha; algo estava errado.

— E então, Artemy, entediado? — ele perguntou, alargando ainda mais aquele sorriso quase predatório.

— Nao, só tranquilo mesmo.

Antes que pudesse dizer mais, um uivo gélido rasgou o ar, fazendo minha cabeça girar em direção ao som. No topo de um morro próximo, sob a luz pálida da lua, estava um lobo imponente, sua silhueta desenhada como a de um espectro antigo. Mas ele não estava sozinho. Atrás dele, mais figuras emergiram das sombras. Primeiro uma, depois três, seis... catorze... vinte. Vinte lobos.

A visão me petrificou por um instante. Era uma matilha colossal, maior do que qualquer coisa que já enfrentara. Em circunstâncias normais, eu talvez tivesse uma chance de lutar ou fugir, mas não estava sozinho. Tinha que proteger três pessoas.

Amanda e Antony suavam frio, seus rostos congelados pelo medo. Mickey, por sua vez, parecia à beira de um colapso.

— A gente vai morrer — murmurou ele, tremendo como uma folha ao vento.

— Atrás de mim, agora! — gritei, sacando Hati e Skoll do coldre e me preparando para o combate.

Cheshire, ainda ao meu lado, deixou escapar uma risada irônica.

— Poxa, que situação complicada, hein? Hehehe.

E então, com aquele tom enigmático que tanto me irritava, continuou:

— Mas, Artemy, que tal observar essas feras com mais atenção?

— Que diabos você quer dizer com isso? — rosnei, sem tirar os olhos da matilha. Minha mente corria, tentando calcular o impossível.

Os lobos avançavam lentamente, seus olhos faiscando na luz lunar, suas presas afiadas refletindo um brilho mortal. A hostilidade parecia palpável, como um nevoeiro denso que envolvia a clareira. Então, algo estranho aconteceu.

Ao focar minha atenção, um novo sentido despertou. Eu podia sentir... fome. Não apenas vê-la, mas senti-la como se fosse minha. Era como se estivesse conectado a eles, como se pudesse ouvir seus pensamentos. Sede de sangue, desejo por carne — eram instintos primordiais, tão claros quanto meu próprio medo.

E então, algo dentro de mim mudou. Uma nova sensação tomou conta da minha mente, uma superioridade inegável. O medo dissipou-se como névoa ao sol. Aquelas feras, tão imponentes segundos atrás, agora pareciam insignificantes.

Cheshire riu, com um brilho quase malévolo nos olhos.

— Então, garoto... Por que não dá a sua ordem?

Minha mente sabia exatamente o que fazer. Era como se uma voz antiga dentro de mim exigisse isso. Com passos firmes, aproximei-me da matilha. O ar ao meu redor parecia congelar, pesado com autoridade.

E então, com uma voz gélida e inquebrável, declarei:

Sumam.


Meus olhos encontraram os deles, e algo aconteceu. As pupilas de cada lobo brilharam em um amarelo sobrenatural. Suas presas recuaram, suas caudas abaixaram. O medo primitivo tomou conta deles, e a matilha inteira, como se obedecendo a um rei, virou-se e desapareceu na escuridão.

Cheshire sorriu, satisfeito.

— Ora, ora, parece que você consegue usar alguns truques, Hehehe.

O trio Bloodrose permaneceu em silêncio, seus rostos estampando incredulidade. Antony, ainda tentando encontrar as palavras, gaguejou:

— C-como você...?

Com um sorriso, guardei Hati e Skoll no coldre.

— Só fazendo meu trabalho.

Após o breve susto com os lobos, a jornada finalmente se aproximava do fim. Ao alcançar o topo de um morro, fui tomado por um êxtase indescritível: o oceano se estendia diante de mim, vasto e reluzente sob a luz suave do dia. No horizonte, uma ilha imponente se destacava, envolta em uma aura de mistério e grandiosidade. Não havia dúvidas — era Avalon, o destino final que tanto ansiara.

À beira do oceano, surgiu diante de nós uma majestosa cidade portuária. Apesar de ainda estarmos nos últimos resquícios do inverno, o clima era surpreendentemente ameno e agradável. No coração daquela paisagem urbana, um marco se erguia imponente: uma colossal torre do relógio, cuja sinfonia de sinos ecoava solenemente ao marcar o meio-dia, como se saudasse a chegada de viajantes e marinheiros.

Antony e Amanda, companheiros de estrada, exibiam sorrisos de alívio e satisfação, felizes por estarem próximos de concluir uma viagem tão extenuante. Mickey, contudo, parecia tomado por um ar de inquietação, seus olhos revelando um misto de fascínio e receio.

Enquanto eu contemplava Avalon, tão próxima após uma travessia longa e desafiadora, fui arrebatado por uma euforia singular, quase inexplicável. Era como se cada dificuldade enfrentada até ali tivesse sido apenas um prelúdio para este momento.

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