Volume 1
— Capítulo 4: Marca do gato preto —
Como sempre, o dia amanheceu antes do esperado na cabana. Ainda nas sombras da madrugada, eu e Magnus já estávamos de pé. Eu, apressado, precisava terminar de arrumar as malas, afinal, o destino era Arcadya, e o dia de partir finalmente havia chegado.
— Tudo pronto, garoto? — comentou Magnus, ao meu lado, com a xícara de café fumegante nas mãos.
— Sim, acho que só preciso esperar o sol aparecer — respondi, enquanto fechava a grande mochila.
— Inclusive, Magnus… — comecei, hesitante.
Com os olhos semicerrados, Magnus me lançou um olhar que já dizia que sabia o que estava por vir.
— Você acha que dá pra eu levar uma garraf-
"BONK!"
— Ai!
Antes que eu pudesse completar a frase, o punho de Magnus encontrou minha cabeça com precisão. A dor era instantânea, como se uma nuvem de fogo tivesse se alojado ali.
— Seu pirralho dos infernos, já não te falei para não exagerar nessas coisas?
A voz dele era um misto de raiva e frustração, enquanto seu punho ainda emitia calor, quase tanto quanto o café que segurava.
— Qual é, você sabe que eu nunca exagero nisso — falei, rindo com confiança, enquanto me agarrava à minha cabeça, onde a dor começava a pulsar e o futuro galo se formava.
— Hehehe, eu concordo, garoto. Acho que dormir no telhado foi uma decisão muito sóbria da sua parte… hehehe.
Nesse momento, Cheshire apareceu ao meu lado, flutuando com aquele sorriso irreverente que sempre exibia. Ele não conseguiu segurar as gargalhadas.
— Aquilo foi um acidente, seu gato maldito! — falei, tentando esconder a vergonha que começava a brotar, mas não conseguia disfarçar totalmente.
Com os primeiros raios de sol iluminando a cabana, inspirei fundo o ar fresco da floresta. O cheiro do orvalho matinal era uma sinfonia silenciosa que preenchia meus sentidos, pura e revigorante. Sob o peso esmagador da mochila, que não deveria ter menos de cinquenta quilos, meus ombros já não se queixavam. Meu corpo, agora moldado por dois anos de uma rotina árdua, era outro.
Dois anos se passaram como um piscar de olhos. Quando cheguei a esta cabana modesta, perdido e frágil, não imaginava a transformação que me aguardava. Hoje, finalmente, estava pronto para escalar a maior academia já concebida pelo domínio humano: o lugar onde os pilares do futuro são erguidos. Mesmo sendo um acorrentado, jurei a mim mesmo que prosperaria. Não importa o preço, não importa o meio, eles saberiam da minha existência. Eu desequilibraria essa balança à força.
Ao olhar para trás, uma sensação estranha me percorreu. Era quase incompreensível lembrar que, não muito tempo atrás, eu mal via propósito em continuar vivo. Naquele casarão opressor e sob o julgo daquela família maldita, tudo parecia sem sentido. Se eu nunca mais visse a face deles, ainda seria cedo demais.
Um raio de sol refletiu no pingente que carregava ao redor do pescoço — um crucifixo prateado, o último presente da única pessoa que realmente importava naquela casa. Desde que ela partiu, nada mais lá fazia sentido.
— Ei, pirralho, tá tudo pronto? — A voz rouca de Magnus cortou minha linha de pensamento enquanto ele surgia da cabana, carregando uma estranha maleta.
— Claro que sim, velhote. Você já me fez revisar a mochila umas dez vezes — retruquei, franzindo as sobrancelhas.
— Se sua cabeça não estivesse presa no pescoço, esqueceria também, moleque de merda — respondeu ele, com seu habitual tom irritado.
— Porra, olha quem fala! Você esquece seu cantil quase todo dia. Eh?, o que é isso que você tá carregando? — perguntei, apontando para uma maleta que Magnus portava nas mãos.
Magnus ergueu uma sobrancelha e abriu o recipiente com cuidado, revelando um par de pistolas imponentes. Eram peças únicas, com um brilho que misturava prata e ferro negro, adornadas por gravuras douradas de uma delicadeza impressionante.
— Estas são Hati e Skoll. Me acompanharam em meus dias de mercenário. Agora só acumulam poeira. Melhor que você leve.
Meus olhos brilharam enquanto segurava as pistolas. O peso era reconfortante, prometendo potência e precisão.
— Caralho, haha! Qual é o calibre dessas belezinhas? — perguntei, incapaz de esconder o entusiasmo.
— .48. Na maleta tem uma receita básica para fabricar mais balas. Mas o divertido mesmo é experimentar com modificações interessantes. — Ele sorriu, como quem escondia segredos sombrios.
Em seguida, arremessou para mim um coldre duplo de couro negro.
— Você não pode ativar armazenamentos dimensionais, já que não consegue manipular éther. Isso deve te ajudar.
Coloquei o coldre sob o sobretudo de tecido e as vestes de inverno. Hati e Skoll repousavam perfeitamente ocultas.
— Já tá na hora de ir. E vê se não morre antes de fazer algo que preste, moleque — disse Magnus, cruzando os braços com um semblante sério.
— Não se anime, velho. Você ainda vai ter que me aturar durante as férias — retruquei, de costas, enquanto começava a caminhar para longe.
— Ei, garoto!
Suspirei, irritado, e virei a cabeça.
— Argh, o que foi agora? Não tô esquecendo nada!
Magnus sorriu, e o tom raro de gentileza em sua voz me surpreendeu.
— Boa sorte, Artemy.
Aquelas palavras me atingiram como um trovão. Naquele instante, me caiu a ficha de quem ele realmente era. Mesmo com as brigas frequentes, treinos infernais e castigos severos
Ele era o homem que me salvou no meu pior momento, que dividiu sua casa, sua comida, seus ensinamentos. Ele não era apenas um mentor. Era a razão pela qual eu ainda estava de pé.
Para esconder as lágrimas que ameaçavam escorrer, curvei-me profundamente, até minha testa tocar o chão.
— Obrigado por tudo, senhor Magnus. Eu juro que farei o possível para me tornar alguém que o orgulhe!
Magnus sorriu orgulhosamente, e disse apenas:
— Não poderia esperar menos, garoto.
Levantei-me, respirando fundo, e, com a cabeça erguida, caminhei para longe da cabana sem olhar para trás. Minha jornada havia começado.
Eu mal me lembro da última vez que deixei este vale. Um lugar tão isolado, cercado por montanhas imponentes que prendem a floresta em um abraço gelado e cruel, moldando as estações de uma forma extrema.
A cidade mais próxima é Yhona, a capital. Mesmo assim, alcançar seus portões requer dias de caminhada. É meu primeiro destino nessa jornada. A partir de Yhona, o caminho para Arcadya se torna mais claro. Contudo, há um empecilho: Arcadya repousa em Avalon, uma ilha imensa que abriga mais de oito mil pessoas — estudantes, funcionários, suas famílias. Toda a ilha é uma extensão da academia, com suas estruturas se erguendo como monumentos ao conhecimento e à vida que ela abriga.
Para chegar lá, preciso embarcar no Navio dos Calouros, atracado na cidade portuária de Clocktown. Mas a distância de Yhona até Clocktown promete ser um teste de resistência: vinte dias de jornada pelo desconhecido.
Assim, pus-me em marcha rumo ao horizonte. Durante os primeiros dias, Cheshire flutuava ao meu lado, despreocupado como sempre. Ah, que inveja de sua leveza! Ele não precisa de pernas para seguir adiante, enquanto eu mal sentia as minhas após cada dia de caminhada.
À noite, encontrar um local para acampar era sempre um desafio. Após alguma busca, avistei uma clareira que parecia acolhedora, afastada da estrada e protegida pela mata. Montar a fogueira foi simples; o jantar, improvisado com os mantimentos que levava. Enquanto rabiscava distraidamente meu caderno de anotações, Cheshire pousou ao meu lado, exibindo aquele sorriso misterioso que parecia ser sua marca registrada.
— Ei, garoto — chamou ele, com o olhar presunçoso de quem sabe mais do que deixa transparecer.
— Lembra quando te disse que só você podia me ver?
— Acho que lembro, sim — respondi, desconfiado.
— Bem, isso é uma meia-verdade. Normalmente, apenas quem eu permito consegue me enxergar.
De fato, durante todo o tempo na cabana, Cheshire havia permanecido visível apenas para mim. Quando mencionei sua existência a Magnus, ele me olhou como se eu tivesse perdido a sanidade.
— Mas... uma pessoa com alta percepção espiritual pode ultrapassar minha barreira, mesmo que eu tente me esconder. Embora, em situações normais, isso seja improvável.
— Afinal, para me perceber, a pessoa precisaria ser um espiritualista excepcional. E, convenhamos, talentos assim não brotam em qualquer esquina.
— Mas você está indo para a academia que reúne os maiores talentos da humanidade. As chances de eu ser notado não são nada pequenas.
O que ele dizia fazia sentido, mas uma dúvida persistia.
— Entendi. Mas por que isso seria um problema? Não é comum espiritualistas formarem contratos com espíritos? O que torna você diferente?
Ele fez uma pausa, esticando o sorriso ainda mais, como se antecipasse o impacto de suas palavras.
— Ora, meu pequeno Artemy, normalmente, isso seria comum. Mas você é um acorrentado. Alguém incapaz de manipular o éther, essencial para firmar um contrato com um espírito. Se alguém me perceber, você se tornará uma anomalia.
Aquilo me atingiu como um golpe.
— Mas... se é impossível formar um contrato sem éther, como nós conseguimos?
O sorriso de Cheshire alargou-se de maneira perturbadora. Seus olhos amarelos brilharam intensamente no breu da noite, enquanto sua risada ecoava sinistra.
— Hehehehe... quem sabe? — disse ele, com uma expressão tão enigmática quanto assustadora.
O suor frio escorreu por minha testa. O medo se infiltrava em meu peito, enquanto eu observava aquele gato preto, tão sinistro quanto intrigante. Quem era ele, afinal? E por que parecia se divertir tanto com os segredos que escondia?
— Mas sabe, garoto, estamos com sorte. Afinal, encontramos o esconderijo perfeito para minha presença — disse Cheshire, com aquele tom presunçoso que já era sua marca registrada.
— Sério? Onde? — perguntei, sentindo um calafrio percorrer minha espinha, como se uma sombra pesada me envolvesse.
Meu pressentimento se confirmou no instante em que ele apontou para mim com aquele sorriso enigmático.
— No seu corpo, é claro. Hehehehe.
Uma gota de suor frio deslizou pela minha testa, enquanto arrepios tomavam conta de mim.
— Normalmente, uma assimilação como essa destruiria sua mente e seu corpo, incapazes de suportar o peso dos meus poderes. Mas, convenientemente, você carrega um belo selo espiritual. Bem ali, no seu pescoço — continuou ele, indicando o crucifixo prateado pendurado em minha pele.
— Com esse selo, a assimilação será apenas parcial. Isso significa que poderei habitar seu corpo sem grandes problemas e, se tudo correr bem, você manterá sua sanidade intacta. Hehehe.
— Espera, calma aí! Por que um crucifixo selaria seus poderes? Você é algum tipo de demônio? E, além disso, como posso confiar em você? E se decidir tomar controle do meu corpo? — rebati, tentando manter a voz firme apesar do medo estranho que me consumia.
Cheshire começou a flutuar ao meu redor, seu sorriso se alargando como se estivesse se divertindo com a situação.
— Quanta ousadia, meu caro Artemy. Que tipo de criatura você acha que eu sou? Hehehe. Não é o crucifixo que sela meus poderes, mas o material de que ele é feito.
— Material? — inclinei a cabeça, minha curiosidade superando a tensão por um breve momento.
— Não sei quem lhe deu isso, mas quem quer que fosse, certamente se importava muito com você. Para conseguir um pingente de Soulrite, essa pessoa foi além do comum. Esse material é capaz de repelir espíritos de nível baixo e intermediário com facilidade.
— Além disso, mesmo que eu quisesse tomar conta do seu corpo, não poderia. O selo e a sua... condição especial como acorrentado me impedem de completar uma assimilação total. Pelo menos, sob circunstâncias normais. Hehehe.
Essa última parte não me inspirou muita confiança, mas, ao mesmo tempo, não parecia haver outra opção. Suspirei, resignado.
— Certo. O que eu preciso fazer?
— Nada demais. Apenas abra sua mente, e eu cuido do resto.
"Abra sua mente"? Não fazia ideia do que isso significava. Mesmo assim, me concentrei em esvaziar a cabeça, tentando pensar o mínimo possível. Cheshire, como de costume, não perdeu a chance de acrescentar um toque de humor sinistro.
— Ah, é verdade. Quase esqueci de avisar: talvez isso doa um pouco. Hehehe.
— Hã? Espera, o quê? ARRRGH, PORRA!
Uma dor lancinante explodiu em meu pescoço, enquanto minha mente era tomada por uma avalanche de memórias e conhecimentos estranhos, como fragmentos de um pesadelo. Senti que estava à beira da loucura, mas algo parecia desfocar esses pensamentos, como um véu que me protegia de um colapso completo.
A dor em meu pescoço era como se estivesse sendo marcado com ferro em brasa. Os segundos se arrastaram, cada um parecendo uma eternidade. Quando, enfim, a dor cessou, meu corpo ainda latejava, e minha mente parecia um campo devastado. Olhei ao redor, até encontrar uma bacia de água próxima. Algo havia mudado, eu podia sentir.
Quando encarei meu reflexo, entendi o motivo de toda a dor. Uma marca negra, como um estigma, se estendia do meu ombro até o pescoço. A vermelhidão ao redor lembrava uma tatuagem recém-feita. A figura, formada por linhas intricadas, era inconfundível: a imagem de um gato preto.
— Tranquilo, não é mesmo? Hehehe.
A voz familiar ecoou ao meu lado. Lá estava Cheshire, flutuando com aquele sorriso enigmático que sempre carregava um quê de diversão. Mas havia algo diferente nele. Sua forma parecia menos sólida, quase espectral. Era como se sua figura semitranslúcida distorcesse a realidade ao redor, lembrando uma miragem incerta.
— Como você... Não era para estar assimilado ao meu corpo agora? — questionei, franzindo o cenho, tomado por uma confusão evidente.
— E estou. O que você está vendo não passa de uma imagem projetada na sua mente. Eu não tenho mais forma física, então ninguém além de você pode me enxergar. Agora, finalmente, posso ser apenas uma loucura na sua cabeça. Hehehehe.
Maldito gato.
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