Volume 1
— Capítulo 3: Diário de bordo —
No coração de uma cabana isolada, envolta pela vastidão gélida da neve implacável, um jovem de estatura imponente inclinava-se sobre seu diário. A luz amarelada e trêmula da lareira iluminava suavemente suas palavras, que fluíam como um reflexo de sua alma.
— Isso passou até que rápido, né? — murmurou ele para si.
Um sorriso contido escapou de seus lábios enquanto seus olhos percorriam as páginas rabiscadas. Faltava apenas um mês para o início das aulas em Arcadya, e, dado o tempo que a longa jornada exigiria, ele provavelmente partiria no dia seguinte.
"Slip."
Com uma pontada de nostalgia, começou a folhear seu diário, revisitando memórias que pareciam tão distantes e, ao mesmo tempo, tão próximas.
— Passei por bastante coisa, hein?
DIA 1
"Depois de quase morrer, fui salvo pelo velho Magnus. Isso reacendeu algo em mim: uma vontade de vencer que eu julgava perdida. Mas antes de qualquer coisa, preciso me recuperar. Magnus foi claro ao dizer que não me deixaria ficar de graça. E, honestamente, concordo com ele. Nenhum trabalho seria suficiente para pagar essa dívida.
Mais tarde, descobri algo intrigante: Cheshire, o gato preto sorridente que flutuava ao meu lado, não era apenas fruto da minha imaginação. Estranhamente, Magnus não conseguia vê-lo, e quando questionei, Cheshire apenas riu de mim. ‘Talvez você seja só um louco’, ele provocou.
Maldito gato
DIA 3
"Dois dias de repouso foram suficientes para que eu me sentisse quase totalmente recuperado. Porém, a rotina na cabana começa cedo... cedo demais. Magnus me arrancou da cama antes mesmo do amanhecer, resmungando enquanto me puxava sem piedade. Confesso que nunca tinha acordado tão cedo na vida.
Passei a manhã ajudando nas tarefas. Carregar lenha, esticar peles no curtume... atividades que consumiam minhas forças. Depois de três horas de trabalho, estava exausto, mas Magnus, aparentemente incansável, colocou um grande rifle nos ombros e me mandou segui-lo.
Ele caminhava pela floresta com um vigor que desafiava sua idade. Eu mal conseguia acompanhá-lo. Após um longo trajeto, ele me entregou algo: um revólver prateado impecavelmente limpo. Quando comentei sobre o estado da arma, ele disse que deveria mantê-la sempre assim.Eu não tinha ideia de como aquela arma funcionava, então Magnus me explicou de forma grosseira
Ele me ensinou a destravar o cão e soltar o tambor, me mostrou como carregar as balas e travar o mecanismo.Por algum motivo cada clique e estalo eram estranhamente satisfatórios.
Tentei entrar em posição de tiro, segurando o revólver com 2 mãos e chegando ele bem perto do meu rosto, enquanto olhava pela mira no topo do cano, eu achava que estava certo. Mas minha postura ao segurar a arma foi motivo de um longo suspiro e um tapa na testa dele.
Logo ele arrumou minha postura, esticando meu braço e distanciando a arma do meu rosto enquanto esticava minhas costas e separava meus pes, me fixando no chão de forma firme
Mais tarde percebi que se tivesse atirado na minha posição inicial teria possivelmente perdido um olho
DIA 7
Além das tarefas rotineiras da cabana, Magnus decidiu adicionar um novo elemento à minha vida: treino físico. Ele insistiu, e eu concordei. Afinal, meu corpo precisava de fortalecimento. Pensei que seria apenas mais uma parte da rotina, mas logo percebi o quão enganado estava. Não consegui sequer completar cinco flexões. Minha fraqueza era humilhante.
Magnus não disfarçou sua insatisfação. Cada falha nos exercícios era punida com voltas correndo ao redor da cabana. Ele só me permitiu parar quando já estava caído no chão, sem forças. "Que velho assustador do caralho", pensei, ofegante.
Como se isso não bastasse, ele também me incentivou a sair em pequenas caçadas sozinho. Sua ordem foi clara: "Não volte para casa sem o almoço em mãos."
Ainda tinha dificuldades para me locomover pela floresta, mas era inegável que estava melhor do que no primeiro dia. Após duas horas de caminhada, finalmente avistei meu alvo: um pequeno coelho vasculhando o chão em busca de comida, a cerca de 150 metros de distância. Para minha surpresa, distinguir algo a essa distância não foi difícil. Nos últimos dias, percebi que minha visão era mais aguçada do que eu imaginava.
Quando comentei isso com Cheshire, ele riu, como sempre. Já havia me acostumado com suas reações enigmáticas.
Mesmo enxergando o coelho com clareza, sabia que minha mira não era confiável para um tiro tão distante. Então, aproximei-me lentamente, reduzindo a distância para 50 metros. Respirei fundo e disparei. O som do tiro ecoou pela floresta, e o coelho caiu. O almoço estava garantido.
DIA 10
No início, achei que não estava progredindo com os treinos. Sempre terminava exausto, à beira do colapso. Mas logo percebi que Magnus me forçava a treinar muito mais intensamente do que no primeiro dia. Ele me levava ao limite, todos os dias, sem descanso.
Com o corpo cada vez mais resistente, decidi estabelecer meu próximo objetivo: a Academia Arcadya. Não gostava da ideia de usar a inscrição deixada pela minha família, mas era inegável que não havia lugar melhor para me fortalecer. Arcadya era o berço dos maiores talentos do reino humano.
Cheshire parecia radiante com a ideia de conhecer tantas "joias brutas", como ele mesmo disse. Magnus, por sua vez, aprovou minha decisão e revelou algo inesperado: ele próprio havia estudado em Arcadya, mas saiu por razões pessoais.
Fiquei impressionado. Embora Magnus fosse extremamente forte e resiliente, era evidente que ele não tinha talento algum para o controle de éther. Seu atributo era fraco, e sua quantidade de éther, insignificante. Mesmo assim, ele sobreviveu em Arcadya.
Isso me encheu de determinação, mas Magnus tratou de derrubar minha empolgação com um alerta sombrio: sobreviver em Arcadya não era tarefa fácil. Lá, os fortes devoravam os fracos sem piedade.
Ainda assim, o desafio me animava. Eu tinha dois anos para me preparar. E iria fazer valer cada segundo.
DIA 32
Já faz um mês desde que minha vida deu uma guinada completa. Os treinamentos, inicialmente exaustivos, tornara-se rotina. Com o tempo, meu corpo se adaptou, e as dores musculares que antes me atormentavam cederam lugar a uma sensação de força crescente.
Notei também que meu apetite disparou. Nunca havia sentido tanta fome antes, mas o desgaste constante exigia reposição, e meu corpo clamava por energia. Magnus não era diferente. Diariamente, devorávamos quilos de carne das caçadas que se tornaram um hábito. Ele parecia se divertir ainda mais ao acompanhar a refeição com álcool. Tentei experimentar por curiosidade, mas ele riu, chamou-me de pirralho e afastou a bebida de mim.
Cheshire, por sua vez, era peculiar. Ele parecia alheio à fome, mas sempre insistia que eu comesse mais, dizendo que eu ainda estava "em fase de crescimento". O tom irônico deixava transparecer que havia mais em suas palavras do que ele deixava claro.
DIA 185
Seis meses se passaram desde que cheguei aqui. Após as tarefas matinais e o treino com Magnus, fui enviado à floresta com uma missão específica: localizar a toca de uma matilha de lobos que habitava as redondezas. Segundo ele, a temporada estava chegando, e os lobos poderiam se tornar um problema.
A ideia de vagar por uma floresta fria e sombria, enfrentando feras capazes de me devorar, não me agradava nem um pouco. Lobos não andam sozinhos; sempre estão em grupo. Mesmo assim, Magnus entregou-me o equipamento e, sem cerimônias, praticamente me jogou floresta adentro. “Não volte até encontrar a toca”, ele ordenou, como se fosse fácil lidar com essas situações.
Nos últimos dias, Magnus me ensinara técnicas de caça fundamentais: identificar pegadas, evitar que o vento levasse meu cheiro até os animais, reconhecer comportamentos típicos. Essas lições ecoavam na minha mente enquanto avançava pela floresta.
Depois de algumas horas, finalmente encontrei pegadas. Pareciam frescas, mas havia algo estranho: eram de um único lobo, e os traços indicavam que ele mancava. Aquilo era inusitado. Lobos vivem em alcateias organizadas, com hierarquias e códigos de conduta. A ideia de um lobo solitário não era impossível, mas era rara.
Duas hipóteses surgiram: poderia ser um lobo sem matilha, vivendo sozinho — o que não me ajudaria na missão —, ou um fugitivo. Se ele fugiu, algo o obrigou a abandonar o grupo, e isso podia me levar à toca.
Decidi arriscar e seguir o rastro inverso. Era uma aposta, mas eu tinha um pressentimento.
Após cerca de meia hora de caminhada, um cheiro forte e metálico preencheu o ar. Sangue. Um odor inconfundível, presente em todas as caçadas com Magnus. Era quase nauseante, mas familiar.
Mais adiante, avistei uma caverna. Quanto mais eu me aproximava, mais intenso o cheiro se tornava. Meu olfato, que parecia estar mais apurado nos últimos tempos, tornava a experiência ainda mais desconfortável.
Ao entrar na caverna, o cenário confirmou minhas suspeitas: sete lobos jaziam mortos no chão. Dois eram fêmeas, cinco machos. Pela organização, parecia uma alcateia completa — um casal alfa, um casal beta e três ômegas.
Mas o que poderia ter causado aquilo? Outra matilha, talvez? Não. Aquilo não tinha sido um combate; era um massacre unilateral. As marcas de mordidas e arranhões eram desproporcionais, enormes. Algo muito maior havia passado por ali.
Um novo problema surgiu na floresta, e parece ser algo grande.
De qualquer forma, minha missão estava cumprida.
DIA 213
Os dias de verão nessa cabana são um tormento. Ela foi construída para reter o calor durante o inverno, mas, no verão, transforma-se em um verdadeiro forno. Decidi, então, unir o útil ao agradável: esta semana, vou tentar pescar e garantir a comida, aproveitando para escapar do calor sufocante.
DIA 215
Tive uma ideia: pescar com as mãos enquanto nadava, assim podia me refrescar e caçar ao mesmo tempo. Depois de cinco horas dentro d'água, voltei para casa de mãos vazias. Malditos peixes escorregadios! Eles pareciam zombar da minha tentativa patética.
DIA 217
Eu consegui. Depois de dois dias, finalmente peguei um peixe! Não tinha ideia de como isso seria difícil. Controlar meu corpo sob a água, nadar mais rápido que os peixes e agarrá-los enquanto eles se debatiam... Foi uma batalha que me deixou exausto.
Por algum motivo, o Cheshire não parava de rir durante meus dias de pesca. Ele me observava como se estivesse diante da cena mais cômica do mundo.
DIA 218
Quando contei ao Magnus que havia pescado meu primeiro peixe, ele pareceu estranhamente irritado e me perguntou, com certa impaciência, se era nisso que eu tinha gasto minha semana inteira.
Expliquei que pescar com as mãos não era nada fácil, que os peixes eram escorregadios e traiçoeiros. Magnus franziu o cenho, confuso. Então, perguntou como exatamente eu pescava.
“Com as mãos, enquanto nado,” respondi, com toda a convicção.
Ele colocou a mão no rosto e soltou uma risada estranha, como se não soubesse se me insultava ou me parabenizava. Por fim, disse:
“Eu não sei o que é mais impressionante: sua completa idiotice ou o fato de você ter conseguido pegar um peixe nessas condições.”
DIA 219
Ainda não superei o Cheshire. Aquele gato maldito passou a semana inteira rindo às minhas custas, vendo-me nadar feito um louco atrás dos peixes, e não disse uma palavra para me ajudar. Ah, ele vai me pagar por isso!
DIA 262
A floresta começa a vestir o manto frio e dourado do outono. As folhas caídas, tingidas de laranja, formam um tapete vibrante que parece sussurrar sob os pés. Acho que esta é, sem dúvida, minha estação favorita.
Aqui na cabana, o outono sempre foi um período de preparação para o inverno. Por algum motivo, o inverno neste lugar é feroz, quase cruel. Magnus partiu hoje, dizendo que levaria alguns dias para buscar suprimentos na capital, Yhona, que fica a uma boa distância daqui.
Antes de sair, ele me deixou livre, mas não sem um lembrete peculiar: “Desde que você não ponha fogo na cabana, tudo certo.” Confesso que me senti levemente ofendido. Que tipo de coisa esse velho pensa sobre mim?
Nos primeiros dias, segui minha rotina de trabalho e treino, mas o tédio não demorou a se instalar. Cheshire, geralmente está por perto quando estou caçando ou me ocupando com alguma tarefa. Porém, durante esses dias monótonos, ele desaparecia por horas, só para reaparecer de forma inesperada, com aquele ar satisfeito que só ele tem. Fico pensando se ele tem alguma forma secreta de se divertir.
Foi em um desses momentos de apatia que, enquanto estava deitado na cabana, a luz da janela refletiu em uma prateleira cheia de garrafas. Eram as bebidas do Magnus. Não sei se foi o tédio ou pura curiosidade, mas me senti tentado a experimentar. Magnus parecia gostar tanto daquilo... Seria o sabor tão bom quanto a expressão dele fazia parecer?
No primeiro gole, descobri que não. Nem de longe. O gosto era amargo, e a sensação queimava na garganta. Como o velho conseguia tomar aquilo todos os dias? Decidi que jamais beberia de novo. Mas, claro, a curiosidade venceu, e me peguei querendo só mais um pouquinho.
Bem,eu gostaria de relatar aqui tudo o que fiz, mas a partir do sétimo copo, minha memória se tornou um borrão.
Quando acordei, algumas horas depois, o sol da manhã atravessava a janela e me atingia nos olhos. Minha cabeça latejava, e uma gripe inexplicável parecia ter se instalado. Afinal, eu passei todo o tempo dentro da cabana, não fazia sentido. E para piorar, eu não lembrava de nada.
Cheshire apareceu do meu lado com um sorriso largo e provocador. Entre risadas, perguntou se eu tinha me divertido vendo as estrelas. Não entendi o comentário, mas ao olhar ao redor da cabana, não parecia haver nenhum grande estrago.
Tirando a dor de cabeça insuportável e a gripe, estava tudo sob controle. As garrafas de bebida estavam ligeiramente mais vazias, mas, para minha sorte, eu parecia ter misturado tudo para disfarçar.
DIA 264
Magnus voltou hoje da viagem, trazendo mantimentos. Ele parecia aliviado por eu não ter, de fato, incendiado a cabana. Porém, quando veio falar comigo, havia um tom de confusão em sua voz.
“Por que diabos tem um travesseiro e um cobertor no telhado?” ele perguntou, franzindo a testa.
Eu não fazia ideia do que ele estava falando. Mas Cheshire, ao meu lado, explodiu em gargalhadas. E aí, percebi que talvez houvesse mais do que imaginava para entender daquela noite “esquecida”.
DIA 365
Faz exatamente um ano desde que cheguei aqui. O tempo parece ter voado, mas a paisagem permanece congelada no mesmo instante em que deixei tudo para trás. A neve cai com uma fúria quase cruel, como se ecoasse o inverno que também carregava dentro de mim naquela noite em que fui expulso de casa.
Esta estação é insistentemente monótona. Aqui na cabana, há pouco o que fazer: caçar ou treinar são quase impossíveis nos dias de tempestade, quando sair ao ar livre se torna um desafio intransponível. Porém, quando o céu se abre e o vento amansa, Magnus me permite dar uma volta, com a condição de que não me afaste demais.
Hoje, durante uma dessas caminhadas, deparei-me com meu reflexo em um lago congelado. Foi a primeira vez que realmente me enxerguei desde que cheguei aqui, e a mudança me surpreendeu. Meu corpo, antes tão juvenil, agora carrega sinais de transformação: ganhei cerca de quinze centímetros, alcançando impressionantes 1,83m. Meu físico também mudou – músculos duros, marcados, quase como aço moldado, mesmo sem tanto volume.
É estranho pensar que ainda sou eu, mas ao mesmo tempo, já não sou mais o mesmo. Tenho apenas mais um ano de preparação. Apesar do progresso, sinto-me longe de estar pronto para Arcadya. Aquele lugar é um colosso que me observa à distância, esperando pela minha fraqueza. Preciso ficar mais forte.
DIA 423
Hoje, Magnus me contou algo que chamou minha atenção. Enquanto caçava, ele avistou um lobo alfa solitário que tem causado problemas na floresta. O comportamento do animal é intrigante – sem uma toca fixa, ele parece estar à procura de algo.
Instantaneamente, fiz a conexão: será que é o mesmo lobo que sobreviveu àquela matilha que encontrei no ano passado? Naquela época, estava ferido, abandonado à própria sorte, e eu tinha certeza de que não sobreviveria. Mas, aparentemente, ele se recusa a cair.
Magnus sugeriu que essa poderia ser uma boa oportunidade para uma caçada solo. Enfrentar uma matilha de lobos seria suicídio, mas contra um lobo solitário, talvez eu tenha uma chance.
Ainda assim, o velho me alertou sobre algo mais sinistro na floresta. Disse que há outra criatura por lá, algo que ainda não conseguimos identificar. Ele foi enfático: se eu encontrar qualquer sinal dessa fera, devo voltar imediatamente para a cabana. Enfrentá-la está fora de cogitação.
Concordei sem hesitar. A descrição que ele deu, da forma como essa coisa destruiu uma matilha inteira, é suficiente para me manter longe. Seja lá o que for, não é algo com que eu queira cruzar. Não agora. Não ainda.
DIA 424
Após cumprir as tarefas e o treino matinal, preparei-me para a caçada de hoje: um lobo alfa solitário. Levei comigo um rifle de caça, um revólver com algumas balas, uma faca e mantimentos básicos. Parecia uma boa oportunidade para testar minhas habilidades e, talvez, aprender algo novo.
Horas de caminhada pela floresta revelaram sinais claros de um predador em ação. Os corpos de javalis, coiotes e outros animais marcavam a trilha de destruição. Pelos dentes cravados nas carcaças, não havia dúvidas: era obra de um lobo. Porém, algo destoava. Lobos caçam para sobreviver, mas esse parecia matar indiscriminadamente. Não possuía uma toca fixa, tampouco seguia padrões. Era como se ele mesmo estivesse em uma caçada incessante.
Encontrei os primeiros rastros: pegadas que, embora não recentes, indicavam uma direção. Mantendo-me contra o vento para não entregar meu cheiro, segui os sinais até chegar a um lago. Ali, os rastros desapareciam.
Observei o entorno até que, na margem oposta, avistei a silhueta lupina. Um lobo cinzento bebia água calmamente. Calculei a distância: 200 metros. Algo alcançável. Posicionei-me, deitei no chão e apoiei o rifle em uma pedra. Meus olhos, precisos, dispensavam luneta. Engatilhei o ferrolho, mantendo a mira fixa na cabeça do animal.
Enquanto me concentrava, o pensamento do que ele poderia estar buscando me invadiu, e hesitei. Um instante de distração foi o suficiente. Ouvi um ruído à minha direita.
Meu corpo congelou. Por puro instinto, rolei para o lado, sacando o revólver. Onde eu estava segundos antes, uma pata gigantesca desceu, abrindo um buraco no solo.
E então, eu o vi: um urso pardo colossal, com mais de três metros de altura. Sua pele parecia uma armadura natural, adornada por dentes e garras afiadas. O medo primitivo me dominou.
Enquanto eu seguia o rastro do lobo, acabei deixando meus propios rastros pra tras, enquanto o vento revelava meu cheiro, no fim das contas, quando achei que estava caçando, eu era a presa o tempo todo
Era estranho, eu conseguia sentir uma irracional sede de sangue, o primitivo pensamento de lacerar e devorar, como se os sentimentos daquela fera colossal estivessem na minha cabeça, não sei que porra era essa, mas não tinha tempo para pensar, olhando em volta não vi nenhuma rota possível
Sem chance de fuga, a racionalidade prevaleceu. Disparei cinco vezes contra a fera enquanto recuava, acertando a cabeça e o pescoço. Um dos tiros cegou seu olho esquerdo, mas parecia apenas tê-lo enfurecido. Sua pele espessa resistia como se eu estivesse usando armas de brinquedo.
Quando a pata dele desceu contra mim, não consegui desviar a tempo. O impacto não foi tão mortal quanto imaginei, mas abriu uma ferida feia em meu peito. Reagi com um golpe superficial da faca, mas aquilo era inútil. Restava apenas uma bala no tambor, e eu precisava de uma abertura precisa.
Mas o urso não dava trégua. Ataques incessantes dilaceravam meu corpo. Quando a hora final parecia inevitável, um uivo cortou o ar.
Do meio da mata, surgiu um lobo cinzento. Ele mordeu a pata traseira do urso, distraindo-o. Aproveitei para me afastar, ainda que cambaleante. O lobo atacava com ferocidade, arrancando pedaços da resistente pele do urso, mas aquilo não seria suficiente.
Foi então que decidi arriscar. Gritei, atraindo a atenção da fera. Ela me encarou, furiosa, e avançou como um raio. Sua boca se abriu, exibindo dentes vorazes, e veio para me devorar.
No último segundo, enfiei meu braço direto em sua garganta. A dor era insuportável enquanto os dentes penetravam fundo no meu braço, mas não profundos o suficiente para arrancá-lo. Antes que o urso pudesse puxar e terminar o serviço, disparei.
Minha última bala atravessou sua cabeça de dentro para fora. A fera tombou, morta.
Mas meu alívio foi breve. O lobo cinzento ainda estava lá. Sem munição, exausto e ferido, caí no chão. Ele se aproximou, e eu me preparei para o fim.
Para minha surpresa, o lobo lambeu meu rosto, abanando a cauda como se tudo estivesse bem. Sentou-se à minha frente, os olhos amarelos brilhando em contraste com a ferocidade de antes. Naquele momento, o predador e a presa eram apenas sobreviventes, partilhando o mesmo silêncio.
DIA 425
Ontem foi um daqueles dias exaustivos que parecem sugar até a última gota de energia. Quando finalmente cheguei à cabana, carregando uma cabeça de urso como troféu e sendo seguido por um lobo que mais parecia um cãozinho alegre, Magnus não soube como reagir.
Ele me ajudou a tratar as feridas, insistindo que eu deveria repousar por um tempo. Havia um alívio visível em seu rosto, talvez pela segurança recém-adquirida ou pelo êxito que superou suas expectativas. Agora, toda a floresta ao redor da cabana estava protegida.
O grande lobo parecia encantado com a cabana, recusando-se a sair de perto. Magnus, com sua praticidade habitual, aceitou a presença dele com a justificativa de que um alfa como aquele manteria outros predadores afastados. Batizei-o de Loki, e pelo modo como abanava o rabo, parecia que o nome o agradava.
Mais tarde, Cheshire apareceu ao meu lado, flutuando com aquele ar enigmático que lhe é tão peculiar. Comentei sobre o quão estranho era um lobo ser domado dessa forma. Eu sabia que, de certo modo, tinha ajudado Loki a vingar sua matilha ao derrotar o urso, mas não achava que lobos fossem criaturas que demonstrassem gratidão desse jeito.
Cheshire, com seu sorriso eterno, ponderou que, de fato, lobos não costumam agir assim. No entanto, deixou escapar que, durante minha batalha com o urso, ele teve uma “conversinha” com Loki. Não sei exatamente o que ele quis dizer com isso — como sempre, suas palavras deixaram mais perguntas do que respostas.
DIA 472
O verão finalmente chegou, e com ele, a decisão de aprimorar minhas habilidades na pesca. Resolvi levar Loki comigo para a floresta desta vez. Ele parecia encontrar alegria ao se banhar no rio, mas, como sempre, seu entusiasmo afastava todos os peixes, tornando a tarefa mais desafiadora do que deveria ser.
DIA 491
Loki, ao que parece, aproveitou o verão ao máximo.
DIA 562
O outono se instalou, e Magnus, como de costume, partiu rumo à capital de Yhona para resolver pendências. Prometi a mim mesmo que, dessa vez, não cometeria nenhuma idiotice.
DIA 565
Após o décimo copo, minha memória se apagou. Como sou capaz de ser tão imprudente, às vezes?
DIA 570
Quando Magnus retornou, parecia satisfeito ao ver que a cabana ainda estava de pé e, milagrosamente, sem chamas. Contudo, seu semblante se fechou rapidamente ao perceber o estado das suas bebidas.
DIA 571
Magnus descobriu o que eu fiz e me prendeu na cabana por uma semana. Que tédio insuportável!
DIA 582
Loki roubou minha comida enquanto vagávamos pela floresta. imperdoável...
DIA 622
O inverno chegou, e com ele, a rotina novamente se tornou uma repetição monótona. Os dias na cabana se arrastavam em um tedioso ciclo. Magnus se dedicava a limpar suas armas, desmontando e montando novas peças ou fabricando balas, sempre em busca de alguma ocupação que não o deixasse entediado. Eu, por outro lado, resolvi criar um caderno de anotações para passar o tempo. Escrevia e desenhava tudo o que via, registrando as pequenas observações que me ocorriam. No entanto, minhas habilidades artísticas são, no mínimo, questionáveis. Talvez fosse hora de aprimorar esse talento.
DIA 632
Nos dias de nevasca, Loki era o único que parecia confortável, estendido preguiçosamente perto da lareira acesa, como se o frio não fosse mais do que uma brisa suave para ele.
DIA 640.
DIA 645..
DIA 658...
DIA 672....
DIA 683.....
DIA 693......
Já se passavam quase dois anos desde minha chegada aqui. Faltava apenas um mês para as aulas em Arcadya começarem. Depois de uma conversa com Magnus, cheguei à conclusão de que, para chegar a tempo, eu precisaria partir logo. Então, decidirei partir amanhã, ao amanhecer.
O dia parecia claro, uma calma peculiar pairava no ar, apesar da forte nevasca de ontem. Aproveitei a ocasião para dar uma volta pela floresta e clarear a mente. Ao passar por um lago congelado, fui atraído pela curiosidade de ver meu reflexo na superfície gelada. Quando o encontrei, mal me reconheci. O garoto baixinho e magrelo que chegara aqui há dois anos parecia tão distante quanto um sonho esquecido.
Em apenas um ano, creio ter crescido uns bons 10 centímetros, quase alcançando os 1,93 metros. Meu corpo, antes magro e sem forma, agora parecia mais forte. Não volumoso, mas com músculos densos e rígidos como ferro, cada fibra parecendo refletir o esforço de cada batalha vivida.
As marcas no meu corpo eram evidentes. Feridas acumuladas ao longo do tempo, a mais visível sendo a cicatriz de três garras, que atravessava meu peito de fora a fora, lembrança da luta contra aquele urso maldito.
Meu cabelo estava enorme e meio desgrenhado, afinal faz dois anos que eu não o corto, decidi amarrá-lo de qualquer forma e cuidar disso depois
Eu me via como uma pessoa completamente diferente. A sensação de fraqueza constante, que outrora me consumia, agora não me incomodava mais. Finalmente, sentia que estava pronto.
'Slip'
Finalmente, ao terminar a última página, o jovem sorriu satisfeito, esticando-se na cadeira, imerso numa sensação de nostalgia.
— Caramba, como passou rápido, né?
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