Nisōiro Brasileira

Autor(a): Pedro Caetano


Volume IV – Arco 13

Capítulo 118: Tarde Demais

Era um entardecer comum em Oásis, com o último resquício do Sol visível da varanda da torre central, onde um pai e uma filha disputavam uma partida de xadrez. A jovem criança coçou suas bochechas, criando jogadas na sua cabeça até mover a sua peça. Seu oponente, no entanto, não tirava os olhos dela, exceto quando reparou no cavalo inimigo, posicionado na frente do rei indefeso.

— Pretende sacrificar seu cavalo? 

— Era ele ou a dama. 

— Então ela é mais importante que o cavalo agora, ou sempre foi? 

— Todas as peças são importantes, porém nenhuma é versátil como a rainha.

— Depende. Você ainda precisa de casas abertas para mover a rainha. O cavalo — fazia o movimento com a peça — pode pular sobre outras peças. É por esse fator inusitado e improvável que torna difícil ler sua próxima jogada, por isso é minha peça predileta. 

— Eu perdi? — olhava para o tabuleiro incrédula — Mas eu…

— Está pensando muito nas regras, e pouco em como seu oponente vai dobrá-las contra você. O tempo todo pensou que queria sua rainha. As suas prioridades podem ser diferentes da do seu oponente.

A porta da varanda se abriu. Yasukasa pôs a cabeça para fora: 

— Aí está você. Jogando de novo? Minha mãe tava te procurando. Obrigação, primeiro. Joguinhos depois.

— Eu sei — se levantou da cadeira, acenando para Hoshizora — Já volto…

A princesa Hoshizora chamou a irmã, que fechava a porta depois que o pai a acompanhou. Tentando segui-los, a garota abriu a porta para o corredor da torre, mas tudo estava preto. De repente, um homem de preto mascarado surgiu naquele breu. Não havia mais torre, varanda, cidade ou qualquer outra coisa. Ela gritou por socorro, mas sua voz ficou presa na garganta.

"Isso é...", refletia, enquanto perdia a consciência naquele breu. 

A lembrança da garota sumia com sua consciência. O brilho do poder sumia num instante, o calor tomava conta daquele fim da manhã, os arcos no céu começaram a se fragilizar, cedendo espaço para nuvens que começavam a se aglomerar no céu. Do topo da encosta era possível ver uma névoa abafada cercando toda a região da base, escondendo o que havia restado dos corpos. 

Um fedor exalava pelo topo da fortaleza conquistada pelos Kuro, onde Suzaki ignorava o odor guiando seus olhos pela princesa que caia com a testa no solo sem consciência.

“Você também não mudou nada, princesa”.

A reflexão do antigo príncipe era frustrada por um brilho verde vindo de trás. Ao se virar, viu uma série de homens de preto brotando da fenda. Alguns tossiam, outros gemiam de dor na medida que arrancavam suas armaduras quase derretidas.

—  Foi o máximo que pude resgatar antes da explosão — Seth explicava.

— Uma centena — Nobura calculava — Para avançar contra a capital, traga a Guarda Pacificadora real, em vez de escravos.

— Sua loucura já foi longe demais, garoto — apontou Junichi — partir para a capital depois do que fez? Aposto que irá trazer mais homens para matá-los novamente, eu me recuso a desperdiçar meus recursos para…

— Você mesmo não queria estes homens há três dias atrás — o mascarado se aproximou do general — Eram débeis, sucumbiam ao peso da própria armadura. Fiz uso deles e depois eles encontraram com o destino inevitável, como será com os reforços e quem quer que seja.

— Está com pena dos escravos, General? — Seth não escondia a risada.

— Cala a boca — Junichi cobria o nariz — Isso… É demais até para você. Escravos ou não, eles eram Kuro. Você os abateu como ratos, que nem os mestiços imundos. Ao menos… mande-os para procurar sobreviventes lá embaixo.

— Ninguém sobrevive a aquilo  — Mayuri interviu — essa névoa se assemelha com o poder daqueles cavaleiros, não fazem muito bem para a gente. A menos que queira matar o pouco que sobrou. 

— Temos preparativos a fazer e reforços a chamar. Nosso prazo para partir para a capital Kiiro é amanhã.

— Você vai mesmo até a capital sem mais nem menos?! O Cônsul Pontifício deveria ser consultado a respeito! — berrou Junichi. 

— Cale a boca e obedeça, foram as ordens de Itoshi para você. Tenho certeza que se lembra disso — apontou Nobura em sua face — então, não me obrigue a usar outros métodos com um general das tropas! — virou-se, reconhecendo Hoshizora atrás de si — joguem a princesa no precipício.

— O controle é seu, moleque — contornou o mascarado, ficando entre ele e a garota — Mas não seja juvenil. Ela representa o centro político Kiiro, eles não vão desistir sem uma luta. Agora, com a princesa dela em risco. Eles guardam as espadas no mesmo instante.

— Esta não é uma guerra de barganha. Ela é inútil para mim da forma que está. 

— Você só pensa no agora. Mas eu me responsabilizo por isso— tomou a menina nos braços, arrancando-lhe o colar no pescoço — Algum de vocês, imprestáveis, pegue uma das carruagens sobrando destes animais. Levem-na para depois das muralhas.

Enquanto os subordinados obedeciam às ordens de Junichi, Seth conjurou outro portal. Desta vez, um corpo desacordado chegou até eles.

— Está respirando melhor depois de ontem — explicou o feiticeiro — Devemos levá-lo para nossa próxima batalha?

— O Aprimorado servia para compensar a nossa falta de força no exército em terra, mas fracassou. Com os verdadeiros oficiais da Guarda Pacificadora, isto não será necessário. 

— De volta para as muralhas, então?

— De onde nunca deveria ter saído.

Enrolando o corpo do homem em seus tentáculos, Seth o depositou na mesma carruagem de Hoshizora. Tirando os olhos daquilo, Suzaki voltou a vagar pela beirada da encosta. Pelo caminho, viu Nubi encolhida na única tenda que não fora destruída pela invasão. Já Mayuri, ele a via se aproximando de longe, com as duas mãos cheia de comida:

— Ei, Zeta. O dia foi dureza, achei isso nos suprimentos deles, posso dividir um pouco com você mas estou faminta então…

— Estou sem fome — chutou uma pedrinha morro abaixo.

— Qual é a dessa cara? — engolia o alimento — Tá com vergonha de ter matado menos que o Alfa. Vá se acostumando.

— Da última vez que o Sol Reluzente foi usado, pude impedir que ativassem resgatando a princesa. Isso acalmou a raiva do Patriarca na época, porém não impediu que várias vidas fossem perdidas na tentativa de pará-lo. Uma vila inteira nos Aka foi incendiada.

— E agora quase o dobro de gente deve ter morrido lá embaixo só com essa explosão — bateu na cabeça dele com um saco de pães, antes de sair andando — Salva num dia, para morrer no outro. Tem sempre alguém mais barra pesada, brigar por esse mundo é inútil. 

Deixado aos seus pensamentos, Suzaki permaneceu ali acompanhando pelo abismo, quando as nuvens tamparam o sol sob o cânion, deixando a metade do dia completamente nublada.

Em uma das pontas do cânion, próximo de onde as autoridades Kuro passaram os primeiros dois dias, surgiu um portal negro. Atravessando ele, estavam dois homens, rolando pelas areias.

O cavaleiro pessoal de Yasukasa esperneou-se até se livrar do Kuro, mas o gêmeo sequer se movia. Quando finalmente se libertou, tirou o sangue do rosto, viu ao seu redor a quietude, e na distância os arcos do Sol Reluzente:

— O que você fez?! — pegava o gêmeo do chão — me leve de volta agora, eu exijo! 

— Eu não… Consigo… — Nagajiyu puxava ar — você… ia morrer.

— Eu não pedi pra ser salvo — bateu o sujeito contra o chão — Agora a princesa está em risco. Se ela morrer, será o fim de todos nós!

— Já… é o fim…

Ofegante, as mãos de Nagajiyu tremiam, seus olhos viravam a cabeça. Seu rosto já com olheiras, começou a exibir rugas. Seu corpo também esticava alguns centímetros de altura, ao mesmo tempo que seus cabelos perdiam a cor na raiz, se gerando fios brancos.

Quando sua convulsão encerrou, Kotaru correu para reanimá-lo. Após pressionar seu peito algumas vezes, o gêmeo, agora não tão jovem, soltou um suspiro forte, embora tenha permanecido inconsciente. Descendo as orelhas até seu peito, o cavaleiro escutou seu coração bater. Ele estava vivo outra vez.

Kotaru logo se levantou ferido carregando Nagajiyu consigo para o marco zero da catástrofe, enquanto raciocinava:

“Esse poder parece aqueles portais feitos por aquele tal de Seth. Bom isso não importa agora, só preciso voltar o mais rápido possível!”

Com o clarão e ruído visto do topo da duna que percorria, Kotaru trincou seus dentes e se apressou castigando suas botas no solo arenhoso.

O poder se desintegrava na região delimitada pelas bandeiras do Sol Reluzente dentro do cânion, não havia sobrado nada. O cânion mergulhou num silêncio absoluto. O lugar fora preenchido somente pelo vapor do rio cozido pela técnica Kiiro.

Foi então que uma mão brotou da terra, na passagem entre o rio e o topo da encosta, escavando a pedra até abrir um buraco grande o bastante para que seu próprio corpo passasse. Dali o homem saiu cambaleando, completamente sujo e desnorteado até cair no chão arfando. A espiral de vento que usara para perfurar o chão perdia velocidade até se dissipar no ar, assim como sua aura amarela enfraquecida.

Do mesmo buraco, rastejavam mais Kishis, em circunstância igual ou pior: sufocados, feridos, às portas da morte. O último corpo que saiu era carregado por Tsuruta nos braços. As manchas de sangue se camuflaram em seu traje de Senshi e seu rosto tinha queimaduras até os cabelos. Tsuruta o deitou ao lado de Raijin, quando ouviu o chamado de Riki: 

— Raijin, está bem? 

— Vou viver, mas o meu corpo… — sussurrou, lutando para se erguer somente para cair de novo — não responde mais.

— Somos imunes à energia solar, só não ao fulgur explodindo — olhava ao redor Tsuruta — os que estão aqui estão seguros mas…

— Com exceção do Aka — Raijin olhou para Yato — Ainda tem energia solar residual. Ele não vai sobreviver por muito tempo.

Tsuruta concordou com a cabeça, trazendo areia para cobrir todo o corpo do comandante, inclusive sua boca, ouvidos e nariz, por onde os grãos fizeram um filtro improvisado. Junto com os outros Kishis, eles caminharam pela passagem.

— Ele deve conseguir respirar. Meu iro deve protegê-lo do efeito até sairmos — o cavaleiro passou a suar frio — Mas também estou no limite 

— As tropas Kuro que estavam ao redor foram erradicadas — apontou Riki, colocando Raijin nos ombros — sendo um plano deles ou não, o Sol reluzente é nosso! Temos que ir até a princesa pra já.

— Se alguém sabe o que aconteceu é a Matriarca. Sugiro irmos até ela — tentava olhar através da fumaça — droga, toda essa bagunça nos deixou espalhados. 

— A evacuação não estava completa. Se o Sol Reluzente foi ativado antes do tempo  — se sentou Raijin — é possível que a princesa e Kotaru estejam… 

— A matriarca nunca deixaria as coisas chegarem a esse ponto! — interrompeu Riki — A luta não acabou. Afinal, o que te garante que este ataque não foi ativado pela própria Hoshizora? 

— Há alguns instantes podia sentir meus homens fugindo pelo rio — Yato acordou em meio às tosses — agora, sumiram como se nunca tivessem existido. 

— A-As coisas podem ter saído do controle e… — Riki olhava de um lado para o outro — a princesa decidiu sacrificar alguns pela vitória. Eu entenderia.

— Se conhece a Hoshi, sabe que ela nunca faria isso — dizia Raijin — além disso, tem aquelas súditas. Elas saíram bem na hora, como se soubessem, pouco depois de destruírem as rotas de fuga. Riki, nós fomos atingidos com nosso próprio poder, admita. 

— O sol não nos condenaria dessa forma, a Matriarca com certeza está viva! — Tsuruta cortou o pensamento da cabeça, enquanto erguia Yato do chão — Não pode estar achando que perdemos a…

— O que importa é que nossos inimigos ainda estão por aqui — Raijin concluiu — E nós, não temos condições de batalha. O Sol Reluzente terminou. Pro bem ou pro mal, temos que evacuar. 

— E abandonar a Matriarca?

— Eu entendo o conflito entre vocês, mas temos um plano para isso — indagou Yato, tossindo areia e sangue — até em caso de captura da princesa, a recuada era indiscutível.

O grupo havia chegado no local do deslizamento provocado pelas súditas. Não havia caminho para frente, exceto ao nível do rio que secou. Eles desceram vagarosamente, os mais saudáveis ajudando os mais debilitados. Assim que atingiram o fundo e a névoa se dissipou, tudo que Yato encontrou foi projeções de corpos desintegrados.

Uma das sombras de uma vítima da explosão tinha seu braço nitidamente estendido para o caminho da fuga. 

— Então era isso — agachou até as areias. 

— Isso não está certo, Hoshizora nunca… — Riki tentava se explicar, quando Raijin tocou seu ombro — Eu sinto muito, Yato. — mudou a postura. 

— Temos que continuar — o comandante Aka apontou para frente — Vamos aproveitar o restante da névoa para despistar nossos inimigos. 

— Está armando chuva — percebia alguns chuviscos — a névoa vai se dispersar mais rápido e é uma viagem e tanto para a base mais próxima — disse Tsuruta — Temos que correr.

Atravessando o pequeno mar de morte e destruição, os Kishis prosseguiram pelo caminho estreito do rio como puderam.

A primeira fortaleza Kishi no deserto depois do cânion que fazia fronteira com os Kuro recebia a tarde do terceiro dia de batalha com vigilância. Arqueiros patrulhavam das ameias e cavaleiros revezavam-se em rondas periódicas ao redor da vila militar. Apesar de tudo, nada os podia preparar para o que um Kishi montado encontrou no caminho de volta.

O grito do vigia noturno acionou os alarmes e abriu os portões frontais. A guarnição recebeu ele e um número expressivo de Senshis. Tomio estava a frente do grupo:

— O Sol Reluzente foi ativado. O cânion não é mais seguro para nós.

— Comandante Tomio — o sentinela olhava por cima da pequena multidão — Estes são todos das forças Aka?

— Não. Alguns… Ficaram pelo caminho. Devem chegar em breve, embora com algumas horas de atraso. 

— O que se passa aqui — uma voz ecoou de dentro atrás dos Kishis na base — agora entendi o motivo de tanta desordem, Senshis já estão aqui?

O homem que se revelou tinha baixa estatura e cabelos loiros bem cortados, além de vestir um longo traje marrom, amarrado com uma corda na cintura. 

— E você é? — Tomio perguntou.

— Eu… Como você ou… — se interrompeu, cruzando os braços — Perdões pela minha inquietude. Eu sou Kenkushi, um dos conselheiros da Dinastia. Homem de confiança da Matriarca Yasukasa.

— Ela nunca mencionou você.

— Ora, seu… Bem, a Matriarca não precisa revelar todos os detalhes de sua intimidade. Ainda mais para um estrangeiro — ficou de lado apontando o caminho — Por favor, sintam-se à vontade. O jantar está servido.

Nos fundos da base havia um refeitório a céu aberto. Mesas distribuídas entre os homens, porém pouco preenchidas devido à vigia noturna naquela hora. Quando os Senshis se instalaram, todo o grupo inundou o pátio. Tomio tomou duas mesas para si, chamando os mirins para junto dele.

— Ai, a gente nem viu a tal explosão que a Masori falou que teria — Emi puxava uma cadeira — Todo esse segredo só para não ver a parte legal.

— É o Sol Reluzente, Emi, não fogos de artifício — balançou a cabeça negativamente — Alguma notícia do segundo grupo de evacuação?

— Não — Tomio respondia, vendo o olhar de espanto nos olhos de seus alunos — Yato está com eles. Duvido que algo tenha dado errado.

— Os inimigos nem nos seguiram afinal — complementou Usagi — Se ficaram por lá, foram pegos pela explosão. E se forem pegos, vencemos.

— A batalha, mas não a guerra — Nakama enchia a boca de comida — Eles ainda tem exército nas montanhas esqueceram? 

— Se perderem aqui, a coisa fica muito ruim para eles — Effei partiu o pão em suas mãos — Assim, pro nosso caso também, né?

— A preocupação de vocês é resultado da inexperiência — alertava Tomio — Os Kuro não teriam declarado uma guerra contra todo o continente se não tivesse os homens para sustentar um conflito a longo prazo. Quem me dera fosse o caso, mas julgando pela força do inimigo que vimos nestes dias, esta guerra… Chegou para ficar.

Os mirins abaixaram a cabeça, voltando suas atenções para seus pratos. 

— Em guerras, é sempre complicado projetar o futuro. Não pensem no tempo que isso vai durar — Tomio prosseguiu — no que diz respeito ao campo de batalha, vivam um dia de cada vez. E este aqui acabou. Agora descansem, porque com certeza vamos receber Katsuo, Etsuko e os demais amanhã pela manhã.

Com o ânimo restaurado, os mirins terminaram suas refeições com sorriso contentado nos rostos antes de se recolherem para dentro da fortaleza.

Trovões ressoavam pela região tomada por um céu escurecido., quando Yasukasa fazia seu caminho de volta para o lugar onde a batalha aconteceu. Após descer da encosta onde enfrentou Suzaki, ela fez para si uma plataforma de areia, por onde desceu ao nível acima do rio, seguida por sua antiga professora:

— Para onde vai com tanta pressa, menina.

Em vez de responder, a matriarca correu para a névoa de poeira e vapor que nublava a passagem do rio. Caminhando pela área, a primeira coisa que pisou foi em um corpo negro e oco. A julgar pelas bandeiras e equipamentos que sobraram, eram do exército Kuro.

— Ativaram no inimigo — Mutaiyo alcançava sua antiga aluna — O plano foi bem-sucedido.

— Não — ela seguiu andando — Os números do inimigo estão menores do que vi entrando pelo lago.

— Tem pelo menos algumas centenas aqui. Eu não entendo.

A garota seguiu névoa afundo, procurando com as próprias mãos no solo. O que foi revelado na passagem por onde o rio corria foram as silhuetas de incontáveis homens, algumas sobrepostas, com restos de suas peles e vestes amarelas no chão. Todos corpos desintegrados e inscritos nas paredes do cânion em cinzas.

Os resquícios de fulgur após o impacto, incendiaram trechos da passagem, mas não havia nada para alimentar as chamas que já se extinguiram.

— Foram levados juntos ao poder do sol — Mutaiyo sussurrava.

— Somos imunes ao calor e à energia solar da cúpula — a voz de Yasukasa falhava — Eles só não conseguiram conter o aquecimento do fulgur. Deve ter sido tudo tão rápido…

— Devem ter ficado para impedir a fuga dos Kuro. Os Senshis daqui ficaram como cobertura para a fuga do restante, para conter o avanço das súditas. 

— Quantos… Senshis evacuaram quando você saiu?

— Quase todos — respondeu a professora.

— Por que você não ficou? — se curvou na areia, segurando a cabeça.

— Você disse que voltaria até o amanhecer, eu já expliquei isso — fechava os olhos — sem você não poderíamos vencer. 

— Com as suas habilidades, mais pessoas teriam evacuado — levou as mãos às areias.

— A questão não foi essa, e sim o que aconteceu com a matriz — elevou os olhos ao céu — o Sol Reluzente começou a agir sozinho. Alguém o ativou.

— Eu caí direitinho… e-eu devia estar lá — pingos de lágrimas atingiam a terra. 

— Era uma distração — tentou se aproximar — Não tinha como você saber. 

— Cala… a boca — limpou o rosto —  Só… cala a boca.

— Yasu — Mutaiyo agachou para perto dela — Esta batalha ainda não acabou.

— Ah é? — se virou, exibindo sua maquiagem borrada — Então o que é tudo isto? Riki, Tsuruta, Raijin estavam todos aqui. Você sabe de muita coisa pra quem sumiu e apareceu do nada, então me diga onde eles estão?

— Eu não quis parecer…

— Basta, olhar ao redor. Isso não foi o plano — ergueu as mãos — E se aquele homem dos portais recolheu o verme do Suzaki, com certeza salvou às súditas daqui também.

— Me parece um ataque coordenado sim, mas ainda estamos de pé — desviou o olhar. 

— Kotaru está morto e… Hoshi também — caiu de joelhos, socando o chão — Não sobrou nada! Eles terminaram de tirar tudo que eu tinha! Tudo! — engolia as lágrimas que molhavam seus olhos. 

Mutaiyo agachou para consolar a matriarca, porém foi recebida aos tapas:

— Eu deveria ser a Matriz! Apenas eu deveria carregar isso! Por que todo mundo quer me impedir de morrer por quem eu amo?! 

— Se controle, menina — defendia-se dos ataques com os braços — Nem tudo é sobre se sacrificar! Depois do seu pai, se perdermos você…

— Isso é algo que ele diria… É sempre cedo demais. Sempre tenho que esperar a minha vez. Vocês me deixaram quando eu não estava pronta, e agora tudo isso acontece — dava o último soco, com os braços pesados — por minha culpa. 

— Seu pai morreu porque queria assumir tudo para si — segurou as mãos da aprendiz — o que sua morte teria feito hoje? Está fugindo dos seus problemas. Eu não posso permitir isso — abaixou o punho da garota — Eu não vou deixar a história se repetir.

— Então… Por que foi embora? 

A pergunta fez Mutaiyo entristecer sua face, no momento em que Yasukasa encostou sua testa no peito de sua professora. Uma chuva caiu como uma enxurrada sobre elas, apagando as chamas e dispersando a névoa, ao tempo que a matriarca deixava suas lágrimas escorrer junto a chuva, concluindo a pergunta:

— Por que nos deixou, Mutaiyo?! 

— Você é a Matriarca agora  — acariciava seus cabelos — Alguém que tem a Dinastia em suas costas, não pode depender das falhas dos outros. Deve reconhecer a importância disso, antes que seja tarde.

— Já é tarde demais.

— Não é — pegou a Rainha pelos ombros, encarando-a nos olhos — os Kuro não podem ter ativado o poder sem que a princesa estivesse viva. 

— Mesmo que seja verdade, Hoshi nunca teria ativado ele assim.

— Então você concorda que essa história está mal contada, né?

Tirando as mãos da filha de Osíris, Mutaiyo ficou de pé. Com as areias, ela preparou outra plataforma, agora para subir para a encosta esquerda, na direção da matriz do Sol Reluzente:

— Ainda que a Matriarca tenha perdido muitos homens e cavaleiros, você ainda pode salvar uma irmã. Eu vi pessoas demais partirem na minha ausência. Só para variar, gostaria de salvar quantas mais eu puder. 

O pilar de areia erguia Mutaiyo para o alto, ao passo que Yasukasa permanecia ajoelhada, recebendo a chuva como um batismo.

“Agora entendo o peso, do que sentiu aquele dia”, ergueu a cabeça para o céu, percebendo a mão estendida da antiga professora. “Mesmo que só tenha uma chance de você estar viva, por você, eu irei continuar dando tudo de mim Hoshi.”

Erguendo-se, Yasukasa puxou pilar de areia, que a elevou para junto de Mutaiyo:

“Pois sem você… eu não vou conseguir mover um grão de areia sequer!”


Ilustradora: Joy (Instagram).

Revisado por: Matheus Zache e Pedro Caetano.

 

 



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