Volume IV – Arco 13
Capítulo 108: Peças no Cânion
Na direção norte de Oásis, entre as cidades mais próximas do reino Aka, havia um estádio. Uma pista de areia circundava uma arena de concreto onde duas pessoas lutavam para uma plateia composta por poucos Kishis, espalhados das arquibancadas, e o Sol escaldante bem acima deles.
A discrepância física entre homem alto de olhos dourados como suas braçadeiras e a garota de cabelo amarrado com luzes era tamanha. Cada golpe do homem a jogava dois passos para trás. A velocidade com o qual ela se recompunha e atacava pelos lados era tão impressionante quanto. Deslizando entre as pernas do oponente, ela saiu nas costas dele apenas para ser afastada por outro golpe giratório que fez seus pés rasgarem a areia três passos para trás.
O homem presenteou a tentativa com um sorriso. A filha, apesar de retribuir o gesto, olhou para céu e trocou a postura da espada, de modo a refletir a luz solar contra o metal reluzente:
— Te peguei!
Um clarão o cegou, mas antes que a garota pudesse se mover, a areia mordeu seus tornozelos e projetou braços que prendiam seus pulsos. Antes de cair, ela ainda arrancou um caderno do cinto de seu oponente.
— Boa tentativa, Yasu — desfazia suas construções de areia — uma pena que esses truques funcionam apenas contra desavisados.
— Mas eu fiquei com isso — mostrava um livro em seu colo — Senhor Patriarca.
O alegria deixou o rosto Osíris, que procurou rapidamente em seus bolsos antes de tomar o caderno de volta:
— Me devolva isso agora! Isso não é brincadeira.
— Não devia dar brechas com isso se é tão importante. Por que se importa com algo tão velho? — cruzou os braços.
— Um dia vai entender o valor das vozes do passado. Apenas três tocaram nessas escrituras até hoje. O diário de Amón estará em suas mãos, quando a hora certa chegar.
A imagem daquele caderno de couro, fechado por um cadeado, pairou sobre a cabeça de Yasukasa, agora mais velha. O livro estava em suas mãos agora, cadeado aberto, folhas à mostra, tudo sob o conforto do memorial coberto e sustentado por colunas onde agora estava.
Seus olhos já atravessavam as páginas como um raio, seus dedos transcorreram as páginas sem parar até atingir o fim. A mesma garota agora com os cabelos passando de seus ombros, olhou para frente e viu um busto de bronze e cobre recém instalado. Na base, um nome: Osíris.
“Quem diria que aqui seria a última vez que lutamos”, pensou reparando em um templo. “E mesmo assim não te venci”.
Entrando no santuário, uma mulher de véu caminhou pelos bustos. Yasukasa ouviu seus passos, mas deixou que se aproximasse.
— Sei que não gosta quando atrapalham seu momento a sós. Mas eu como mãe não poderia deixar vocês partirem sem me despedir — retirava a véu que cobria seus cabelos — e me desculpar.
— Na última vez que estive com ele, tentei convencê-lo a esquecer o passado e focar no presente — levava as mãos até as da escultura de seu pai, que guardavam uma peça de xadrez entre elas — dessa vez sou eu que estou diante dos túmulos.
— Filha, eu sei que as coisas viraram do avesso em sua vida — juntou suas mãos a dela — não precisa carregar isso tudo sozinha.
— Se não preciso — se erguia mostrando o livro no bolso — porque ele me escolheu?
— Mas que pergunta — conteve uma leve risada.
A expressão brincalhona de Kasa logo se desfez ao reparar no rosto sério da filha, que guardava o diário:
— Está falando sério mesmo?
— Você mesmo disse daquela vez que ele fez de tudo para me preparar o quanto antes. Disse que eu deveria ser a primeira a entender seu sacrifício — olhava ao redor para as outras esculturas — Você já entendeu, Hoshi já entendeu. Faz quase um ano e eu não…
— Seu pai tinha um orgulho imensurável de você, Yasu. Ele nunca mudou de ideia sobre a sucessão nem por um minuto, mesmo que eu ainda estivesse aqui depois que a doença o levasse.
— Se é assim, por que ele mesmo disse que faltava muito para mim ainda? — abaixou a cabeça — Eu não deveria estar pronta?
— Após a derrota na Vila da Providência, seu pai se abateu. Ele nunca falava daquele dia, mas sempre ficou claro para mim que ele pensava sobre o tempo todo — ergueu a cabeça da filha com uma das mãos — A primeira vez que Osíris falou abertamente daquele dia foi sobre você. Sua atitude de ir salvar sua irmã sozinha, deu certeza a ele de que você seria uma fabulosa matriarca no futuro.
— O futuro pode não ser o hoje — olhou ao redor — Meu pai se arrependeu daquilo tudo, ele não queria essa guerra.
— Eu nunca entendi o apelo do seu pai por conflitos, mas respeitava as decisões dele. A situação que você está é diferente — acariciava o rosto da filha — está se defendendo do conflito em vez de iniciá-lo. Mesmo assim, vendo de perto é muito assustador. Seu pai, você… até mesmo Hoshizora partindo. Não tem outro jeito mesmo?
— Eu tentei — pegou na mão da mãe abaixando-a — a batalha que está por vir é para evitar algo ainda pior que guerras — colocou as mãos em seus ombros — o que vou te prometer é que vou trazer minha irmã comigo de volta para casa!
As duas firmaram seu compromisso com um abraço, assistido apenas pelos bustos da sala, ao tempo que a Matriarca afastava sua mãe com um sorriso:
— Não sou muito disso, mas é minha forma de dizer que as coisas ficaram para trás.
— Está tudo bem, minha filha.
As duas voltaram para a entrada, pela janela de uma das carruagens Hoshizora via elas se aproximando dos grandes veículos. A princesa abria um sorriso ao perceber as pazes feitas entre sua mãe e irmã.
Embarcando em transportes diferentes. Ao receber seu cetro do condutor, Yasukasa era cercada pelos guardas que auxiliam as duas.
— Tem minha permissão para governar enquanto estou fora — se encaminhou para a porta — Cuide bem das coisas e não se esqueça do plano.
— Falando em plano — juntava suas mãos — vocês vão fazer aquilo mesmo?
— Sim, nossa resposta precisa estar à altura. Para vencermos precisamos de tudo e mais um pouco — colocava um pé pra dentro — por isso encarreguei um dos meus cavaleiros para receber o armamento imperial.
— Boa viagem — cobria com as vestes — estarei esperando por vocês.
Numa região distante da capital do deserto, a areia se misturava com uma terra úmida rodeada de uma vegetação morta. Os cactos guiavam carruagens que atravessaram as dunas. As trilhas desenhavam um caminho até uma espécie de fortaleza que estava de frente para uma floresta.
Na porta de entrada do edifício, homens de túnicas azuladas despachavam um enorme carregamento coberto com uma túnica em toda sua extensão. Saindo de um dos veículos, um sujeito se aproximava com as mãos nos bolsos de suas vestes que se misturavam com os metais que cobriam seu corpo.
Logo ao se aproximar, via os mediadores da negociação já partindo floresta adentro quando perguntou:
— Então esse é o armamento.
Imediatamente um sujeito de túnicas pesadas foi em sua direção, olhando-o debaixo para cima:
— Você deve ser o sujeito que Matriarca mencionou — estendeu a mão — sou Kenkushi, já nos vimos algumas…
— Cavalheiro Riki, legitimo primo das princesas — passava por ele sem cumprimentar — estou com pressa, mas preciso averiguar as armas com meus próprios olhos.
— Espere, nossos amigos do império não cobriram isso atoa — tomava à frente novamente — o tecido emudecido é pra proteger os metais da exposição ao sol segundo eles.
— E acha que vamos lutar com um pano em nossas lâminas? — empurrou o conselheiro dessa vez — quero ver com meus próprios olhos, tirem agora!
Retirando as linhas que prendiam a cobertura no solo, levantando o tecido, bastou alguns segundos para que o contato com a luz solar fizesse o armamento brilhar diante de todos, fazendo-os arregalaram os olhos.
— Isso é tão… — os olhos de Kenkushi brilhavam.
Com um aceno de Riki, o pano cobria novamente as armas, tirando Kenkushi de sua hipnose do brilho.
— Está feito, vamos encontrar com a caravana que leva a matriarca no local planejado em direção ao cânion — ordenava — com o armamento imperial em posse.
— Senhor Riki, a matriarca havia comentado com o conselho sobre um plano que envolvia a capital caso a batalha fosse um fracasso.
— Não será um fracasso — andava sem nem ao menos olhar para o sujeito.
— Eu sei, mas ela não compartilhou comigo detalhes desse tal “plano”.
— Porque não lhe interessa mero conselheiro, afinal — finalmente fitava seus olhos com o de Kenkushi — você nem era para estar aqui, então me dê licença.
Riki partia abandonando o conselheiro que acenava no momento que uma sombra era projetada diante dele:
— Desculpe, é que queria muito ver a soberania divina.
Fugindo da sombra, vai adiante o lugar que iluminava o carregamento naquele dia caloroso. Antes que os guardas levassem o carregamento até os veículos, Kenkushi aproveitou a distração de todos para dar uma última olhada debaixo daquele cobertor umedecido. Seus olhos saltaram de brilho novamente se impressionando com a reação química que dessa vez arrancou faíscas dos metais, assustando o conselheiro.
Após uma longa viagem atravessando as dunas do deserto, a noite se apresentava junto a um cânion, que se abria até onde a vista alcançava. O canto das águias ecoavam pela passagem, cujo topo abrigava um extenso acampamento.Os Kishis tocavam músicas ao redor da fogueira enquanto distribuíam a comida que terminava de aquecer na fogueira.
Rodeados por tochas altas, com tendas menores para cada dupla, os Senshis aguardavam a batalha em uma breve quietude. Os adultos já estavam recolhidos, ao passo que os mirins eram os únicos ao ar livre, cobertos por pesadas roupas de frio ao som da confraternização do reino aliado.
Sentado nas pedras, Katsuo olhava hipnotizado para o céu. O vento castigava seu corpo, ao passo que suas mãos lutavam contra o frio, escapando dos cobertores para tentar alcançar as estrelas no céu.
— Tá fazendo o que? — Emi puxou seu braço.
— É que… Nunca vi nada parecido, tanta luz, tão amplo — espremia seus olhos — o amanhecer deste lugar deve ser como um paraíso.
— Quando o amanhecer vier — Masori passava por eles, caminhando até a beirada — A batalha terá começado.
Saindo de dentro de uma das cabanas, outro mirim de barba e cabelos encaracolados, levava a mão a barriga que roncava:
— Ai que fome! Alguém tem algo para comer?
— Tente pedir para os Senshis, Masori — Emi sugeriu — Não é só Etsuko que ta nessa — repetiu o gesto.
— Essas rochas são duras — Masori bateu nas pedras — Será que as cordas vão funcionar amanhã?
— Ouviu alguma coisa do que a gente disse?! — protestou Etsuko.
— Vá falar com eles, vocês — Masori voltou para a sua cabana — isso aqui não é o acampamento, e os Kiiro não nos prestigiam.
— Nakama costuma fazer jejum antes dos exercícios — os olhos de Katsuo passearam pelas cabanas — Ele pode ter deixado a comida dele de lado.
— Deixem que eu resolvo — saiu da cabana, Usagi — precisamos descansar para amanhã.
O queixo de Emi caiu ao ver o mirim mais velho perambulando pela noite fria sem cobertores. Apenas com seu uniforme, Usagi vasculhou as mesas como se o vento gélido fosse um mero detalhe.
Katsuo seguiu a mirim que passou a ajudar Usagi em sua procura. Na medida em que vasculharam, dois mirins sentavam em uma das mesas de madeira, mexendo no equipamento.
— Mas então — Effei trançava as cordas — vocês acham que vamos sair dessa?
— Se tudo der certo, não vamos nem entrar “nessa” — Nakama afiava as estacas de ferro com uma faca — E o Yachi provavelmente deve ter encarado muita ação do lado de lá…
— E acha isso bom? Se der tudo errado corremos risco de vida — amarrava um nó com mais força.
— Eu quero ajudar. Trançar cordas, montar cabanas e esperar? Não era essa a minha ideia de ser Senshi — se levantou com as mãos abertas — temos que lutar!
— Tem que saber a hora certa das coisas. Olha para ele — apontou com a cabeça pra Usagi — Ele não fica arrumando confusão com todo mundo, tá sempre ajudando. Quem é bom não precisa anunciar por aí.
— Fácil pra quem não quer mostrar a ninguém a que veio — ergueu uma pulseira com um pingente ao céu — mas eu tenho algo a servir e…
— Ei — Usagi parou nas costas de Nakama, exibindo um pedaço de carne fria — Vou esquentar o seu para os outros, tudo bem para você?
— Tira isso da minha frente, antes que eu mude de ideia — empurrou o braço de Usagi para longe — se eu quebrar o jejum, irei para a fornalha.
Quando Usagi chamou pelos demais na saída da cabana, o mirim esfomeado saltou para a comida como um predador. Katsuo se pegou rindo com a dupla que mexia nas cordas e estacas, o fazendo sentar junto deles.
— Precisa de ajuda? — Katsuo tomou uma estaca para afiar — Isso não é muito diferente dos meus instrumentos.
— Cuidado para não se cortar — Nakama ria — Pode ser demais para você.
— Não foi ele que roubou sua maleta? — Effei retrucou.
— Tá mais para o Yanaho e aquela aberração da natureza. O cara nem pisca quando luta.
— Kazuya é um cara legal depois que você conhece ele.
Os Kishis no acampamento ao lado se agitaram. Suas vozes cresceram, junto com um estampido de pés correndo ao sinal da caravana que chegava. Os mirins logo perceberam, deixando seus afazeres de lado. Pouco a pouco, os Senshis em vigília também despertaram para ver o que se passava.
Muitos dedos apontavam, todos olhavam na direção da grande caravana que estacionava com vários guardas ao redor. Em primeiro lugar, desceram todos os Kishis que acabaram de chegar, para então Riki se aproximar do maior dos transportes, e abrir-lhe a porta:
— Prestem suas reverências, cavaleiros da Dinastia, pois nossa Matriarca está entre nós! E ela trouxe a nossa princesa!
Yasukasa foi recebida com ovação de seus súditos a partir do primeiro passo que colocou para fora de seu transporte. Antes de andar entre eles, ela puxou sua irmã para fora. Aos cumprimentos e abraços, a rainha fez seu caminho para o centro das dependências dos Kiiro, onde Riki as levou ao restante dos cavaleiros pessoais da líder dos Kiiro.
— Pensei que teria que pedir aos Kuro para esperarem mais um dia ou dois — Kotaru apertou-lhe a mão — É bom tê-las conosco, altezas.
— É óbvio que a Matriarca veio aqui só para avaliar a gente — outro rapaz entrou no meio das irmãs, abraçando a mais velha pelo pescoço — sendo que somos plenamente páreos para os Kuro.
— Já discutimos o plano, Tsuruta — Yasukasa tirou o braço do cavaleiro de seus ombros — E não pretendo entrar no caminho de minha irmã.
— Ei, Hoshi — Riki trouxe a princesa para perto — Algumas pessoas precisam aprender bons modos ainda — afastou o cavaleiro da Matriarca.
— Quem está chamando de mal educado? — cobria o nariz — Pretende ficar na presença das duas cheirando a areia molhada? Que vergonha.
— Ei, está tudo bem… — Hoshizora tentava apartar a briga.
— Para trás vocês dois — Kotaru puxava ambos pelo braço — Altezas, Raijin estava conosco a pouco. Espero que o barulho o tenha feito perceber quem chego…
Hoshizora virou para o lado apenas para se deparar com a figura de um homem alto de armadura de bronze, coberto até por um capacete, que só não escondia seus cabelos loiros. Logo Raijin se curvou com um joelho só apoiado na espada:
— Senhorita Hoshizora, Matriarca Yasukasa. É uma honra recebê-las.
— Achei que já tivéssemos conversado sobre essas formalidades, Raijin — Yasukasa o colocava de pé.
— Não é necessário se proteger assim neste momento — Hoshizora retirava seu capacete — Viu, bem melhor?
— E-Eu estava de prontidão caso um ataque surpresa viesse. Estava revezando a ronda com alguns Kishis, mas…
— Mas a caravana chegou e esse seu capacete não te deixou ouvir nem ver o que tava acontecendo longe de você, né? — Tsuruta dava um peteleco na cabeça de Raijin — Sorte sua que a gente vai estar por perto quando os inimigos derem as caras.
— Direcionem os Kishis que vieram conosco — Yasukasa sorria, olhando ao redor — Minha irmã e eu precisamos falar com os aliados.
Quando Yasukasa e Hoshizora apareceram no acampamento Aka, os mirins viram apenas o par de comandantes receberem-nas. Focados nos seus afazeres, os Senshis deixaram a conversa entre os superiores apenas para ouvidos privados. Apesar de longe demais para ouvir, os mais novos podiam ver muito bem.
— A princesa é tão linda como me falaram — Katsuo deixava o mastro cair de suas mãos.
— Como é que é? — Etsuko usou o mastro para acertar a cabeça do mirim.
— Ai, nada. Nada não.
Resguardados do frio daquela noite, as irmãs e os comandantes do exército vermelho se reuniram na única cabana larga do acampamento Aka. Um tabuleiro de xadrez tinha as peças brancas envolvendo o centro do campo de batalha como uma elipse, todos posicionados cuidadosamente pela princesa Hoshizora:
— Quando todos baterem suas marcas, podemos começar. Nossa única restrição é o horário. Não podemos passar do meio-dia.
— Será uma questão de chegar no horário certo — um Senshi coçava o queixo — Ou defender nossas posições pelo tempo que nos resta.
— O que me obriga a perguntar — Yasukasa pegou um peão preto para si — Desde a nossa última reunião, não tínhamos notícias de Nokyokai. Qual é o plano já que nossos inimigos sabem dos núcleos de energia Shiro?
Um dos professores dos Mirins virou seu rosto para o comandante ao seu lado. Sua cabeça raspada e olhos negros se voltaram para o tabuleiro, principalmente para as peças pretas. Ele mexeu os peões ao redor de um peão branco.
— Mesmo que eles descobrissem um — pegou a peça e trocou de posição com o cavalo da mesma cor — Temos números o suficiente para esconder os núcleos reservas, ou transferir a cor branca temporariamente para um Senshi não-núcleo. Mesmo sem domínio da técnica, ele pode temporariamente nos manter na batalha.
— Mesmo que um de nós se vá, é impossível que eles saibam qual o próximo núcleo — concluiu Tomio — Eles estarão correndo riscos demais penetrando em nossas linhas.
— É um improviso grande para um ajuste de apenas algumas semanas — Hoshizora reposicionou as peças pretas — Quem veio com essa estratégia?
— Infelizmente, isto é confidencial, princesa — o comandante pegou um bispo — Só há uma exceção neste plano. Há uma classe de inimigos que não ligam para as linhas de defesa ou quantos o cercam de uma vez.
— Eles serão responsabilidade nossa — Yasukasa se interrompeu, se voltando para Tomio — Sinto muito, ainda não fui apresentada a este.
— Yato. Comandante de confiança a serviço do Supremo Ryoma Shiranui, a seu dispor para esta batalha.
— Que bom — Hoshizora virava o tabuleiro, guardando as peças em seu interior — presumo que já estejam informados da nossa estratégia daqui a algumas horas.
— Positivo. Temos uma equipe preparada para proteger a encosta por onde a princesa vai ficar — se aproximou do Senshi ao lado — Nossos mirins estão terminando de construir os instrumentos de escalada e as bandeiras, Tomio está por conta disso.
— Excelente. Por mim, terminamos aqui — Hoshizora buscou o olhar de aprovação da irmã.
Yasukasa apenas acenou com a cabeça, cumprimentando os Senshis antes de sair. Ao retornar para os seus, dois Kishis entraram no meio do grupo:
— Matriarca, precisamos distribuir o carregamento. Alguns dos nossos homens já estão circundando a carga de tanta ansiedade.
O maior transporte da caravana era ocupado somente pelo seu condutor, que já havia entrado na sua cabana para dormir. O restante do veículo sobre rodas se resumia à traseira coberta com baús e caixas. Yasukasa e Hoshizora encontraram alguns Kishis espiando o conteúdo na escuridão, até que ouviram uma voz familiar dispensá-los:
— Não tem nada para verem aqui! Saiam!
Hoshizora olhou para sua irmã, como se buscasse confirmação do que ouviu. Os Kishis foram um a um deixando o lugar, sobrando apenas uma mulher sentada no degrau para subir até a traseira com a carga.
A princesa correu em direção da mulher que tinha longos cabelos de coloração amarelada eram amarrados para trás, revelando seu rosto maduro, com fortes marcas de expressão. Vestindo roupas casuais por baixo da capa com cachecol e capuz.
— Mutaiyo! — abraçou ela sem que tivesse reação — Você voltou mesmo?
— Eu estou aqui não estou? — ela ria, retribuindo o abraço — Que bom te ver, fofa. Quanto tempo deve fazer?
— Cinco anos — dizia Yasukasa — Esse era o último lugar que esperava te encontrar.
— Podia até dizer o mesmo, se o líder da dinastia fosse seu pai. Mas eu te treinei para colocar mais a mão na massa. O que me surpreende — pegou Hoshizora pelos ombros — é você por aqui.
— Nós temos um plano e para executá-lo, eu sou necessária — mudava a expressão.
— Você não tem essa manha Hoshi — cruzava os braços — mal sabia manusear uma espada!
— Mutaiyo — Yasukasa interrompia, trazendo Hoshizora para perto — Por que está aqui?
— Me contaram que isso aqui seria a resposta para vencer a luta contra os Kuro. Eu fiquei curiosa.
— Isso não. Por que você está aqui?
Mutaiyo suspirou com a pergunta, levando as mãos à cintura. Passando pelas duas, indo na direção do acampamento, ela respondeu:
— Venham comigo.
Em poucos minutos ela estava vestida com uma armadura no peito e uma espada na cintura enquanto a rainha se desfazia de suas vestes pesadas. Alguns Kishis pararam para assistir, mesmo à distância, a mulher e a Matriarca, frente a frente nas areias frias do deserto.
— Quando recebi a notícia da morte de Osíris — Mutaiyo fechava a circunferência com os pés — Tinha retornado de uma viagem mais para o norte. Minha vila já sabia da notícia há pelo menos uma semana. Então eu quis esperar a poeira baixar para aparecer.
— E o que fez você pensar que agora seria diferente? — sacou sua espada.
— Estamos em guerra — Mutaiyo assumiu sua guarda — Todos devem se responsabilizar.
As duas se encontraram no centro do círculo. Yasukasa atacou primeiro, empurrando sua antiga mestra para o lado esquerdo. Os movimentos das duas espirraram areia para os lados, recuando Hoshizora que assistia.
— Era impossível prever a invasão dos Kuro, mas eu creio que minha aposentadoria prejudicou vocês — Mutaiyo encolhia os braços — Eu não vou cometer o mesmo erro.
— Você me treinou, não foi? — Yasukasa martelava sua oponente contra a borda da circunferência — Minha presença teria sido o suficiente.
— Naquela situação, sim, mas agora…
— Agora eu sou a Matriarca — sua espada deslizou na arma inimiga.
Mutaiyo inclinou o corpo para o lado, deixando o peso de Yasukasa fazer o resto. A Matriarca cambaleou até parar a milímetros da borda, com sua professora com ângulo para acertá-la nas costas.
Hoshizora prendeu a respiração, quando sua irmã saltou no ar. A areia acompanhou o movimento da sua perna direita, que girou em um chute com impacto duplo. Apesar da defesa, Mutaiyo havia sido arrastada para fora dos limites da luta.
— Nossa função como Kishi é proteger o povo Kiiro — agachou para recobrar o fôlego — Eu não duvido dos meus aprendizes.
— Então por que voltou? — Yasukasa estendia sua mão.
— Está tudo bem, Yasu — Hoshizora se aproximou, estendendo outra mão, ajudando Mutaiyo a se erguer — Ela só quer ajudar.
— Armamento interessante aquele — Mutaiyo olhou para o carregamento — Eu nunca vi nada parecido. Onde encontraram?
— Eu descobri o poder daquilo anos atrás — Yasukasa embainhou sua espada — Então um amigo em comum me apresentou a alguém capaz de me emprestar este poder.
— É a primeira vez que vejo uma Matriarca tão confortável, diante de tanta coisa nova. Novas armas, novas alianças, nova guerra.
— Mudança requer coragem — levou as mãos ao diário preso no cinto de couro — Por isso eu não devo fugir delas, é o que todos devem saber.
Yasukasa retomava suas vestes, partindo ao tempo que Mutaiyo se contentava da posição de sua antiga aluna e Hoshizora solicitava o acompanhamento dos guardas. Com a passagem da gélida madrugada, os Kiiro e Aka se ajudavam no recolhimento de suprimentos e na montagem da estratégia de entrada.
Quando os mirins terminaram de montar o equipamento, os Senshis desfizeram suas moradas e montaram em seus cavalos. Os Kishis por sua vez se dividiram. Enquanto uma parte permaneceu no alto da encosta, a outra tomou uma pequena estrada de terra, descendo até o nível do rio. Hoshizora ficou no primeiro grupo, ao passo que Yasukasa colocava seu capacete, guiando o segundo grupo.
Com a ajuda das estacas, os Senshis ocuparam cada extremidade do cânion, por onde desceram a encosta até a passagem larga entre o topo e o rio seco. As duas encostas que fechavam o cânion, além do meio, ficavam sob o domínio dos Kiiro.
Já próximos da passagem do rio, um dos Kishis gritou a Yasukasa:
— Enviamos batedores para as partes mais avançadas do rio. Esperamos o retorno deles ao amanhecer para iniciar a investida.
Quando o grupo iniciou sua passagem pela fenda, onde passava o rio, o Sol rompeu o horizonte, se enfiando entre as duas encostas. Sua luz revelou uma dupla de Kishis vindos de longe, na direção do grupo liderado pela filha mais velha de Osíris:
— Matriarca — ele acenava com a espada — Sem sinais do inimigo. Permissão para avançar.
— Escutem — a voz de Yasukasa ecoava pelo lugar — Este é o primeiro passo para pôr um fim a esse passado que nos atormenta a tanto tempo. Cada arma que se quebrou, cada ferida que ainda não cicatrizou, cada adeus dado, transformam isso em ataque.
Mesmo do alto da encosta, Hoshizora ouvia as palavras da sua irmã. Cercada por Kotaru e uma legião de Kishis ela armava seu tabuleiro em uma pequena mesa de madeira, plantada nas rochas da borda. Todas as peças estavam nos seus lugares exceto por dois peões avançados para o centro, dando condição para a rainha avançar, enquanto Yasukasa continuava seu discurso:
— Eles pensam que mandam em nós! Que tudo o que nossos ancestrais lutaram e morreram para construir foi só para que eles se apossem de tudo agora. Acham que não aprendemos a lição da última vez? Mostraremos a eles que ninguém nunca tocará na dinastia sem a permissão divina!
Os Senshis permaneceram calados. Já os Kishis repetiram em uníssono:
— Nunca!
— Hoje nós levamos a luta até eles — finalizou Yasukasa, sacando sua espada, que refletia no Sol — A única parada será quando estivermos em seus portões!
O cavalo da Matriarca galopou na frente de todos, cortando o rio. O enorme barulho da marcha do exército era acompanhado pelo avanço da peça da rainha no tabuleiro de Hoshizora.
— Começou — disse engolindo seco.
Ilustradora: Joy (Instagram).
Revisado por: Matheus Zache e Pedro Caetano.