Nisōiro Brasileira

Autor(a): Pedro Caetano


Volume IV – Arco 13

Capítulo 107: Topo da Cadeia

Envolto pelas muralhas, porém longe das cidades, as grandes propriedades de terra dos Kuro recebiam aquela manhã em silêncio. A guarda que fazia a segurança não trocava palavras, apenas sinais. A maior das mansões, cercada por cercas de ferro e muros de pedra mais altos que qualquer outra, recebia uma luz esverdeada.

O homem encapuzado que saia do portal, fizeram os atiradores no muro e os guardas com lanças no portão engolirem seco. A entrada levava para o casarão, desprovido de guarnição, exceto pela entrada de um túnel do lado de fora. Este por sua vez estava rodeado de soldados com armaduras pesadas e escudos largos.

Antes de abrirem passagem para o túnel, o homem que chegava retirava seu capuz. Seth se revelava abrindo um sorriso largo, fazendo sinal de silêncio antes de descer. 

O caminho pelas profundezas do lugar estava vazio. O lugar estremecia, deixando um rastro de terra pelo chão. No último corredor restavam apenas quatro criados. Três de pé, e o quarto deitado na poça do próprio sangue. Um deles correu até Seth, o agarrando pela túnica:

— Ele está muito sensível. Já tentamos de tudo, por favor...

De repente um tentáculo interrompeu a súplica do servo, brotando das costas do feiticeiro pegou no braço daquele que pegava suas vestes, o arremessando longe:

 — Obrigado pela informação. Os imprestáveis pelo menos separaram os curativos?

— E-Está ao lado da poltrona — respondeu outro criado.

Ao entrar na câmara, Seth fechou a porta atrás de si. Os criados ouviram um grunhido forte vindo de dentro. O local estremeceu outra vez. Do lado de dentro, o súdito encontrou escuridão. Nenhuma tocha acesa, ou luz da superfície entrando. Sua aura cresceu timidamente para revelar um cabideiro no canto, com camisa e uma túnica penduradas.

No centro da sala, uma cadeira de ferro com apoio para a cabeça, além de encosto de couro e um braço amassado com marcas de dedos. Ao lado dela, uma mesa com uma bandeja sobre ela, repleta de curativos, uma tesoura, um frasco e uma máscara negra.

Na medida em que andava pela sala, sua luz revelou o homem apoiado na parede oposta à porta. A aproximação de Seth arrancou uma reação imediata do homem nas sombras:

— Acabe logo com isso.

— Meu roteiro deveria guiar os servos para que minha ausência tenha pouca relevância.

— Estes são novos — cambaleou até a cadeira, onde se sentou — Tem muito o que aprender.

— Não parece ter dado essa oportunidade a eles? — encostou a cabeça de Nobura com as mãos.

— Minha tolerância é baixa com incompetência — o braço da cadeira rangeu com seu aperto.

— Mesmo depois de todos esses anos, é difícil concentrar, velho amigo — banhava as faixas com o líquido no frasco — Garanto que a dor já vai passar.

— Zeta cumpriu sua parte em Nokyokai. Mas ainda é imperfeito. Muito apego.

— Ele está se recuperando com os médicos de novo, estou certo? Diferente dos outros, Zeta abandonou um trono para vir até nós — enrolou as faixas ao redor da face de Nobura — E ele precisa reforçar esta escolha, todos os dias.

— Ele ainda duvida de mim — esticou o braço direito para pegar a máscara — Mesmo aqui, confinado nestas catacumbas, escuto os murmúrios dos Generais a meu respeito. Basta uma vitória deles, que a dissidência cresce por falta de memória. Ela deve ser morta.

— Como, eu me pergunto — questionou Seth, cortando as ataduras, finalizando o curativo.

— Lembrando a eles de quem eu sou — respondeu Nobura, vestindo a máscara.

O mascarado ficou de pé e caminhou até suas roupas. Enquanto abria os botões da camisa, enfiando os braços nas mangas, ele perguntou:

— Como ficou sabendo do meu estado?

— Um representante de Junichi visitou a capela, requisitando a sua presença. Sua ausência me fez cogitar que estivesse com dores de novo.

— Então está na hora — fechou a camisa e vestiu a túnica.

Seth estalou os dedos, criando uma bolha esverdeada ao redor deles que estourou os levando dali. O portal de Seth os levou ao topo da muralha norte dos Kuro. A passagem larga estava recheada com homens armados, que saudaram os dois no instante que surgiram. 

O grupo fez um corredor os guiando para as escadarias internas, que os levou a uma sala de frente para a face externa dos muros. A abertura que permitia ver o lado de fora era estreita, porém alta. Assim que entrou na sala, Seth pendurou sua capa no gancho preso na parede ao seu lado, enquanto Nobura tomou o assento ao lado da cabeceira. 

Do outro lado da mesa, Junichi esperava por ele, martelando sua perna de pau contra o piso de pedra. Atrás dele, Itoshi admirava a vista com as mãos nas costas. Os campos de Ibu e suas flores brilhavam com o Sol, que caía na direção do cânion distante, cortado por um rio seco.

— É como venho dizendo, Cônsul — Junichi parava de bater a perna — Algumas pessoas crescem de corpo e nunca de mente.

— Fui convocado. Aqui estou eu — respondeu Nobura — As tropas estão prontas?

— Em todas as minhas décadas de experiência nunca me senti tão desrespeitado. Um punhado de escravos e prisioneiros ingratos é a minha Guarda Pacificadora agora? Tudo para dar pelos caprichos de um homem que quando se juntou a nós não passava de uma criança — apontou para o mascarado — e uma mulher que nem é uma de nós? Cadê a precedência?

— Um homem com seus feitos e da sua estatura merece um exército melhor — Itoshi encostou em seu ombro.

— Obrigado pela compreensão, Cônsul.

— Pandora é uma coadjuvante. O desenvolvimento recai sobre Konjiru — Seth tomou o seu lugar na cabeceira oposta da mesa — Pensei que confiasse nos seus, General.

— Nobura — Itoshi deu as costas para a janela — Contenha seu acompanhante.

Com um gesto das mãos do mascarado, Seth reclinou na cadeira. Itoshi prosseguiu:

— Eu te ensinei melhor que isso. Todavia, não tema, Junichi, terá a Guarda Pacificadora em toda sua glória, após o sucesso na batalha.

— Se for assim, pode esquecer do luxo que Houkara deu às suas aberrações. Nada de esperar a estratégia inimiga, eles serão a linha de frente.

— Três súditos serão o suficiente.

— Eu desejo ver o terreno — ordenou Itoshi.

Junichi se levantou aos grunhidos. Nobura apenas acenou com a cabeça para Seth. Ao se erguer, ele tomou sua capa, a vestiu e os envolveu com outra bolha, que estourou todos para o meio de um cânion, bem na passagem do rio seco. 

Aos seus pés, terra enlamaçada, enquanto o Sol enfurecido os castigava de cima, mesmo bloqueado pelos paredões dourados daquela passagem.

— Eles atacarão em níveis diferentes — Itoshi erguia a cabeça, reconhecendo uma passagem alta entre o topo e o rio seco, em cada uma das encostas — Priorizando o rio, claro. Como está a represa?

— Pronta há algumas semanas — explicou Junichi — Tenho todo o equipamento necessário já montado. Com a sua permissão, Cônsul, gostaria de ocupar os transportes alternativos com meus próprios homens.

— Maravilhoso — as palmas de Itoshi reverberaram pelo cânion — Está vendo, Nobura, que preparo exemplar? Não espero menos de meus homens. 

— Eu também espero colaboração durante o aviso — Junichi passou pelas costas de Seth — Odiaria perder a oportunidade de vitória pela incompetência de certas pessoas.

— Mais alto — Itoshi ordenou, apontando o dedo para o céu.

O portal de Seth agora os transportou para o ponto mais alto do cânion, com vista para toda a passagem do rio. Itoshi tomou à frente de todos até a beirada do terreno,  abraçando os ares com seus braços abertos:

— O sangue impuro de nossos inimigos será derramado aqui para a glória do Povo Escolhido! 

— Eu vou fazer de tudo para realizar sua visão, Cônsul — Junichi parava ao lado de Itoshi — Um continente unificado.

— Eu sei — virou-se para o general — Por isso que Nobura estará no comando desta batalha.

— Como? — Junichi deu um passo para trás — Eu pensei que…

— Todos terão responsabilidades — Itoshi descansou a mão em seu ombro sorridente — Você vai liderar a Guarda Pacificadora, meu caro. Agora, a partir do instante em que Nobura exercer o papel que lhe concedi — sua expressão mudou — você cala a boca e obedece.

Junichi ergueu o nariz enojado. Encolhendo os ombros, ele deu as costas para Itoshi, enquanto Seth o envolvia numa bolha somente dele. Antes dela estourar, o Cônsul proclamou abrindo um largo sorriso:

— Abra os portões, Junichi. Partimos imediatamente.

Quando o sujeito partiu, Nobura rompeu seu silêncio, sentando na beirada do penhasco:

— A Matriarca estará entre eles.

— Isso é de praxe — Itoshi ria  — Assim como o pai, ela é uma criança que recebeu brinquedos caros demais e acha que o mundo é o seu parquinho. Se os gêmeos não ensinaram a lição, cabe a nós sermos severos. Afinal, você me trouxe um arsenal próprio agora.

— Pandora e Konjiru estão terminando os aprimorados hoje, apesar de instáveis.

— Instáveis… Até pouco tempo eles eram impossíveis — Itoshi fechava os olhos, sentindo a brisa acariciar seu rosto — Um passo mais próximo de desvendar meu objetivo.

O sino da igreja rompia o silêncio das ruas abaixo. Em sua entrada, barricadas e muros erguidos, tudo sob a proteção da Guarda Pacificadora. Por trás do ponto de checagem, havia o santuário, ainda ocupado pelos leitos dos feridos no lugar dos fiéis de outrora. 

O lugar ainda cercava um pátio nos fundos, onde três filas eram organizadas pelos guardas. Todos eram homens de roupas rasgadas, mãos calejadas, unhas negras, magros até os ossos. 

Um de cada vez eles se apresentavam ao guarda e a um auxiliar de avental de couro escuro na cabeça da fila. O homem abria a boca, erguia os braços, era examinado pelo auxiliar até que de repente, uma aura de luz negra saltava de seu corpo antes de serem aprovados e liberados para outro pavilhão no complexo.

Por cima do pátio, uma mulher de cabelos ondulados vermelhos roía as unhas e assistia à triagem pelas vidraças do corredor pouco antes de voltar para o quarto onde trabalhava. 

Sentado na cama, Suzaki teve seu ombro ferido exposto para um senhor loiro de avental negro. Sua pulseira de prata tilintava a cada movimento, na medida em que costurava a carne do rapaz de volta à forma ao som dos gemidos de seu paciente:

— Da última vez bateu a porta bem na minha cara. Agora aqui está você.

— O que eu vi lá embaixo — Suzaki olhava para o médico depois para a mulher na porta — Aqueles caras sequer tinham corpo para suportar uma aura. 

— Tudo será revelado no devido tempo, rapazinho. Saiba apenas que estamos aqui para ficar. O jeito como as guerras são travadas hoje, vai mudar completamente.

— É isso que chamam de medicina aqui?

— Konjiru ficou empolgado com sua condição — Pandora puxou seu braço, apontando para a articulação de seu cotovelo — A selva guarda muitos animais, porém não é todo dia que se encontra uma fera.

— Mas todo dia encontro interesseiros — puxou seu braço. 

Konjiru pressionou o ombro de Suzaki, forçando-o a girar o braço algumas vezes e depois cobriu a ferida com ataduras novas. O jovem recebia sua camisa do médico, enquanto Pandora o respondia:

— Não é o único que encontrei por aí, apesar de serem espécies raras. Nosso amigo mascarado que ordena as mentes alheias através do toque, é um bom exemplo do topo da cadeia alimentar. Mesmo nos Aka, tem gente capaz de incendiar uma fortaleza inteira com um único corte de espada.

— Enfiou uma seringa neles enquanto estavam desmaiados durante seu tempo lá também? — caminhava até a saída.

— Nenhum foi tão aberto a colaborações — deixava Suzaki passar por ela — Uma pena, porque fugir da evolução é o melhor atalho para a extinção.

— Não tem ninguém capaz de me parar lá fora — Suzaki se virou para ela.

— Um cientista pode levantar hipóteses, porém quando as experiências as contradizem — apontou para seu ombro — Ele precisa mudar seu curso.

Suzaki olhou para o pátio abaixo. A aura que brotava dos homens arrancaram-lhes gritos de dor. Pandora fez sinal para que ele a seguisse. Enquanto viam o segundo pavilhão de cima, onde os homens das filas anteriores erguiam pesos, Suzaki questionou:

— O que propõe? 

— Violência é a língua da natureza. Levamos anos para travar guerras, porém em um gramado há uma batalha perene travada por seres minúsculos tão sangrenta quanto a luta entre dois predadores numa floresta qualquer. Tudo impulsionado pela semente da vida, a energia que move o mundo.

— Iro.

— Precisamente. Todo ser vivo tem, seja ele branco ou preto. Agora nós em algum momento desenvolvemos as auras e nos dividimos em cores. Já parou para pensar no que isso significa?

— Não tenho interesse, ninguém quer saber o porque os pássaros voam.

— Mas deveriam. Em algum momento, decidimos que era melhor ser muito uma coisa do que tudo ao mesmo tempo. Cada cor, um jeito diferente de fazer violência. Os vermelhos compartilham energia. Os amarelos os servos suportam o líder, doando suas energias. Já os azuis confiam na sua individualidade — Pandora parou na frente de uma das vidraças — Sementes diferentes da mesma árvore, e por isso são cultivadas da mesma forma: praticidade.

O que Suzaki viu foi o terceiro pavilhão. As três filas se uniram em duas para destinos diferentes. A primeira era um braseiro, onde eles construíram a partir do fogo uma bola flamejante para segurar nas mãos. A segunda fila era capaz de mudar a água de um jarro a outro controlando-a com as mãos.

— Manipulação elemental é a forma mais primitiva de Iro. Sua aura serve como um canal por onde a água, fogo, terra ou o que for passe. Por muito tempo, acreditou-se que a aura fosse etérea, algo imaterial, atuando sobre o material. Mas descobrimos que a aura é tão física quanto um braço ou a cor do seu cabelo. É uma receita dentro do seu corpo, e como tal pode ser transferida. Quanto tempo levou para dominar o relâmpago?

— Uma década inteira. Na temporada de tempestades virava noites na chuva, para acostumar meu iro à ideia de conduzir eletricidade.

— Eu consigo fazer um corpo decrépito desses — apontou para suas cobaias — Aprender o básico com um tratamento de poucos dias. Se eu posso fazer uma minhoca ingerir uma maçã. Imagina o que posso dar a um leão. 

— Se é tão bom, por que usar em escravos, em vez dos súditos?

Fazendo o mesmo sinal para acompanhá-la, Pandora conduziu seu convidado de volta ao santuário, onde por trás do altar principal havia uma passagem subterrânea. A escada descia em formato de espiral para um complexo enorme abaixo da propriedade. Terminando de descer o último degrau, ela apresentou uma galera de celas:

— Sua dúvida quanto a minha prática é justa. Eu vou muito além da medicina, porque por trás de hipóteses certas, há um rastro de fracassos.

De repente um braço saltou das grades, puxando Suzaki pela camisa. Na luta para escapar, o súdito caiu no chão, vislumbrando o rosto esquelético do homem aos gritos com os olhos arrancados da face que espumava pela boca.

— Algum problema? —  perguntou Pandora.

— Não — se reergueu —  O que fez com essas pessoas? 

— A mesma coisa que fiz com os experimentos bem-sucedidos. Dei um propósito a eles. Assim como na natureza, alguns são selecionados, outros perecem, mas servem de exemplo.

— Tortura e mutila os corpos deles e quando dá errado os joga fora como brinquedos quebrados.

— E não é esse o jeito do homem e da natureza? — se aproximou de um armário na virada do corredor — Se fosse diferente, você estaria nas montanhas, desfrutando da vida de um príncipe imperial.

O armário guardava inúmeros frascos etiquetados contendo sangue e outros fluídos corpóreos. Pandora passeou entre os vidros, até encontrar um vazio.

— A teoria e prática andam de mãos dadas. Eu gosto de categorizar o primeiro lote que viu no pátio lá em cima como aprimorados. Muito longe do real objetivo — dizia, exibindo o vidro a ele.

— E por que não desembucha e diz onde eu entro nisso?

— Volte até mim após sua próxima batalha — abria um sorriso de canto.

Após a oferta da cientista, Suzaki fez seu caminho de volta para a superfície. Quando a batida da porta no topo da escada ecoou nos ouvidos de Pandora, Konjiru surgiu das sombras:

— Você ficou louca? Não devia ter levado ele aqui! Ainda estou trabalhando naquilo.

— Mostre-me então.

— Itoshi quer os aprimorados na próxima batalha — caminhou para até uma sala, virando o corredor — Duvido que este aqui seja necessário.

— Para ele não — entrou junto com Konjiru fechando a porta atrás de si — Para nós, um experimento como esta batalha traz prospectos bons demais para ignorar.

A sala tinha duas mesas longas, ocupadas por dois corpos. Uma delas tinha um homem nu amordaçado, lutando contra as tiras de couro que o prendiam. O segundo estava coberto por um lençol, exceto pela cabeça e os pés. Era um corpo completamente queimado, sem nem os cabelos na cabeça. 

— Para quem está morto há pelo menos um ano — dizia Pandora, tirando o lençol, revelando o cadáver — Esse aí está bem inteiro.

— Eu requisitei que o conservasse — Konjiru sedava o homem inquieto — Mesmo longe das batalhas da guerra civil, as histórias deles se espalharam como fogo. E agora um deles está ao meu alcance.

— Mostre-me o caminho até seus poderes divinos — dizia Pandora, colocando o vidro numa bandeja ao lado da mesa e pegando um escalpo — gêmeo da liberdade.

O pote posto de lado por Pandora exibia uma etiqueta com um nome legível pela luz das tochas do lugar: Hirojiyu.

Passando pela entrada da igreja, Suzaki foi recebido por uma fila que dobrava a rua. Todos segurando um bilhete de papel numa mão, e qualquer recipiente na outra. Uma barraca servindo uma comida amorfa, vinda de uma panela de ferro enferrujada, esperava pela alma paciente o bastante para suportar a fome.

A Guarda Pacificadora passava pela fila com seus porretes, revistando cada bilhete nas mãos das pessoas. Os que já tinham o cartão preenchido, eram retirados da fila para um beco. Suzaki parava para assistir ao castigo, quando o barulho de um metal batendo chamou sua atenção. 

A fila rugiu em desespero, na medida em que ele correu para ver. A panela havia derramado no chão e os moradores correram para comer o que havia sobrado do chão. Correndo para o outro lado da rua, estava um moleque, agarrando a tigela de madeira transbordando com a comida perto do peito como um tesouro.

— Foi aquele moleque — apontou o cozinheiro.

— Afastem-se animais — os guardas empurravam os moradores.

Três guardas fizeram um círculo ao redor da comida derramada e somente um correu atrás do garoto. Suzaki os seguiu de perto, cortando pelos becos ao ponto de ficar lado a lado com o garoto. Batuques começaram a ser ouvidos pelas ruas, na medida em que mais seguranças eram alertados de um fugitivo entre eles até que um forte puxão freou sua corrida.

As pernas do garoto se arrastavam no chão, mas ele não saía do lugar. Suzaki e os guardas pararam e testemunharam aquela mesma força atrair o moleque para uma rua sem saída parando com o pescoço nas mãos de uma mulher de túnicas e capuz preto.

— O show acabou, rapazes — ela tirava o capuz, revelando cicatrizes rastejando para fora de seu pescoço — Estava bem indo até a igreja te buscar, Zeta.

— Você deve ser a Mayuri.

— Aqui fora, me chamam de Gama — tirou a tigela das mãos do garoto — peço que me chame assim também.

Os guardas passaram por Suzaki, chegando em Mayuri para capturar o garoto. Em meio às tosses para recuperar o ar, ele ainda gritava:

— Minha mãe tava com fome. Eu trouxe o bilhete dela mas não aceitaram. Vocês tem que acreditar em mim! Foi um acidente!

Ambos os súditos viram o punhado de guardas despir o moleque e açoitá-lo em plena luz do dia, no meio da rua. 

— Alfa decidiu te dar outra chance — entregava uma túnica nas mãos dele  — Seremos cúmplices nesta batalha.

— Esse seu poder, prevejo que costuma pegar muitos fugitivos — Suzaki olhou por cima dela, para o garoto sendo castigado.

— O menino fracassou e se deixou ser pego, quem sabe essa surra não faça ele tomar cuidado na próxima. 

— Achei que a punição servia para ele nunca mais cometer o crime. 

— Deve ser por isso que temos tantos adultos civilizados — caminhou para uma carruagem estacionada na saída do beco — Conta outra principezinho. No cada um por si as coisas são diferentes do seu palácio de marfim.

— Não é só aqui que existe pobreza, o mundo está cheio daqueles que saem do seu palácio e fazem o que quer, e daqueles que não podem fazer nada. 

— Eu fazia o que queria mesmo quando não tinha nada. Roubava dos isolacionistas todo mês, até quando não precisava. Devia ver as caras deles. “Oh, como uma mulher pode roubar um homem certinho como eu?” — subia no assento do condutor.

— Você disse que eu nem poderia imaginar o que se passou com cada um de vocês — Suzaki veio ao seu lado — o que mudou?

— Eu fui pega… Porque decidi roubar dos expansionistas. O resto é história — ajeitava a gola, expondo as cicatrizes no pescoço — Por isso entendo bem aquele moleque, não resta muitas opções para gente daqui, ainda mais se você for mulher, como eu.

— Mesmo assim escolheu se tornar uma súdita — a carruagem começava a andar. 

— Fui escolhida. Já era uma mulher temida, Beta viu isso e convenceu Alfa a parar antes que eu morresse por hemorragia — fazia sinal para os guardas abrirem-lhe o caminho — Me falaram do esporro que tu levou, ele pegou leve.

— Você se rendeu ao homem que quase te levou à morte?

— Tem sempre um peixe maior no lago. Você pode morrer tentando superá-lo ou se juntar para pegar os farelos — levava as mãos à túnica — eu já não preciso passar as noites trêmulas colada numa brasa, isso já é uma coisa. Agora roubar… mesmo que eu não precise mais disso para sobreviver, eu aprendi outras maneiras de fazer isso.

—  Do que precisa para sobreviver então?

— Dos Súditos, não é óbvio? Por isso somos cúmplices. E por falar nisso — Mayuri apoiou as mãos na carruagem.

De repente, Suzaki não conseguia se mover. Além de sentir sua garganta sufocada pela pressão, seu corpo era atraído ao seu assento por uma força que era impossível de ser vencida. Os cavalos também sentiram o fardo invisível sobre eles, afundando na terra, e relinchando de dor. Eles estavam nos arredores da cidade de onde partiram, ninguém perto para ver ou ajudar.

— Não cause problemas — Mayuri apontou o dedo no peito de Zeta — Comigo não vai ter joguinhos, que nem o Épsilon. Se desobedecer, vamos terminar o que começamos.

Quando ela o libertou, Suzaki se jogou para frente, enchendo seus pulmões de ar. A carruagem voltou a andar pela estrada.

— Alfa e Beta vão fazer parte desta batalha — prosseguiu Mayuri — Se tiver algum ressentimento com os Kiiro, esquece. 

— Meus ressentimentos daqui se foram há muito tempo — se ajeitava no banco.

Com o longo percurso durante o dia, atravessando as subidas e passando por um jardim de campos floridos. O clima ficava cada vez mais seco enquanto a noite se aproximava. Altos barulhos de ordens e cornetas já podiam ser ouvidos pelos dois súditos que estacionaram próximo de outras centenas de carruagens. 

Após caminharem adiante, o súdito de olhos azuis contemplava o exército se apresentando diante um cânion seco. Do topo de uma das encostas, um sujeito mascarado era reparado por Suzaki. Noburu desviava seu olhar diretamente para a chegada de seus pupilos, pressentindo a presença do Zeta, mesmo que estivesse tão distante.


Ilustradora: Joy (Instagram).

Revisado por: Matheus Zache e Pedro Caetano.

 



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