Volume III – Arco 8
Capítulo 70: Céu Limpo Pt.1
A floresta Hercínia era um labirinto verde coroado por um céu acinzentado no dia em que Suzaki deixou Nokyokai com os dois Tsuki rumo à região fronteiriça. Cortando por arbustos, depois escalando árvores para saltar de galho em galho, eles se aproximavam de seu destino.
— Há muitos Heishis a frente — comentou um dos Tsuki — Eles estão parados, esperando.
— Seus transportes estão ainda mais à frente, para depois do templo — o segundo acrescentou — o vento bate em rodas, carruagens, cavalos.
— Temos a vantagem do ataque surpresa — afirmou Suzaki do alto de um galho — eu vou na frente.
Exibindo suas armas, os Tsuki seguiram Suzaki pela mata densa, que terminava em um vasto campo aberto. No seu centro, um templo que se projetava acima das árvores. Longas colunas de mármore, vidraças escuras dos lados e teto revestido de telhas com uma fachada com ornamentos dourados assim como havia visto no passado, exceto que dessa vez não havia correntes na enorme porta de entrada.
— Espalhem-se e aguardem meu sinal. Vocês entrarão pelas janelas à minha ordem.
Apoiando seus braços na porta, Suzaki preparou-se para abri-la, quando um enxame de Heishis empurrou a entrada na direção contrária com seus escudos, forçando o príncipe a recuar para puxar sua espada.
Contudo, os Heishis seguraram sua linha, voltando para o templo, ao passo que o jovem continuava a atacá-los até que colocou os dois pés para dentro do templo.
— Agora! — gritou suas ordens.
Seu chamado, no entanto, caiu em ouvidos surdos. O ruído da porta atrás dele se fechando, fez Suzaki olhar ao redor, reparando no interior repleto de Heishis. Estavam espalhados por um salão circular, que descia para um altar no centro, onde sua espada de duas pontas estava exibida em um suporte na mesa em seu centro.
Dali, um homem de grande estatura subia até a entrada batendo com uma mão na outra. Junto dele, dois homens vestidos com a marca dos Tsuki carregavam cada um os corpos sem vida dos acompanhantes de Suzaki.
— A briga já acabou — disse Tadashi, enquanto jogavam os cadáveres na escada.
Suzaki ignorou o aviso, partindo para atacar seu oponente, apenas para ser bloqueado pela série de lanças abaixadas entre os dois pelos homens ao redor.
— Abaixa essa arma, garoto — fechou a mão no orbe de água, desfazendo-o — Essa não é a hora nem o lugar.
— Eu não tenho medo desses números — respondeu Suzaki, com os olhos brilhando — Muito menos de você.
Um som grave cortou o diálogo dos dois, vindo do altar no qual alguém soprava um instrumento. Suzaki procurava sua origem, analisando os que posavam ali. Todos vestiam túnicas cerimoniais e estavam divididos em dois grupos.
Um mais à direita, de roupas azul claro, estatura alta, mas avançada em idade. Outro na esquerda, com roupas azul marinho, cujas luas minguantes prateadas saltaram aos seus olhos. Eram as mesmas roupas dos algozes de seus companheiros. Era entre esses dois grupos que Koji apareceu, vestindo um traje azul-turquesa coberto por uma capa vermelha.
Nas mãos ele carregava uma corneta, que jogou escada abaixo, indo parar nos pés de Suzaki. Boquiaberto, seus olhos perdiam a luz de seu iro na medida que pegava o objeto do chão.
— Lembra-se dela, não é? — perguntava Koji — Do dia em que traiu a sua família e o seu povo.
— Isso já foi resolvido, a situação estava sob controle. A princesa Kiiro foi resgatada sem a necessidade da interferência dos Heishis.
— Olhem como ele diz — apontou Koji, olhando para os outros homens no altar — Essa não foi a ordem, meu filho. O plano era recuperar a princesa para nós. Devíamos estreitar laços com os Kiiro, e juntar forças contra os Aka, em vez disso você acabou aproximando as duas nações.
— Mas então, o que fez com Daisuke? — a pergunta fez os nobres olharem entre si — seu homem de confiança e testemunhou tudo o que fiz.
— Já sabemos da parceria entre vocês dois. Escondeu essa conspiração de nós esse tempo todo, dois anos perdidos quando poderíamos ter conquistado tanto! Em troca disso, a sua ambição e a de Daisuke pelo meu trono falou mais alto. E ainda tem coragem de não ter um pingo de arrependimento — levou a mão ao lado esquerdo do peito — o que eu fiz para merecer a traição do meu próprio filho?
— Não havia nada para conquistar! Entregar a princesa aos Aka não foi meu plano, e é por isso que o continente está… — engoliu seco antes de prosseguir — esteve melhor sem nós. Eu retornei do rito para fazê-los entender isso.
Saindo dentre os homens de túnicas escuras, um sujeito tomou a fala de Koji, caminhando para seu lado, com Suzaki franzindo as sobrancelhas a cada passo dele:
— Sempre os outros, nunca nós, esse é o motivo de tantas viagens. Por isso que nos abandonava sempre que podia?
— Eu devia saber, Yomi! — gritou, sendo segurado pelos Heishis — Matando sua própria família? Não vou terminar como todos os seus fracassos! Não vai me varrer para debaixo do tapete apoiando o Koji! — se debatia.
— Quem toma o lado do assassino do meu filho não é mais minha família — respondeu, virando-se para Suzaki e aumentando a voz — É claro que alguém como você não entenderia nada sobre lealdade.
— No fundo as três famílias discutem e brigam sempre prezando pela integridade e segurança de nosso império — Koji dava de ombros — não é muito diferente de confusões entre irmãos.
Suzaki parou de resistir para analisar a sala. Havia vários nobres espalhados entre os Heishis abaixo do altar, porém um deles chamou sua atenção. Ele tinha roupas simples e uma boina na cabeça. Vendo aquilo, Suzaki abriu um sorriso de canto. dizendo:
— Confusões como sua amante, Asami?
O nome invadia os ouvidos de todos no salão. Suzaki pôde reparar no homem de boina se encolhendo em seu assento.
— Ou melhor, matar toda família de Minoru. Seu crime? Querer uma parte do fulgur para melhorar a qualidade de vida em Nokyokai — Suzaki olhava de um lado para o outro — esse é o imperador de vocês? Que renega o próprio filho por uma falha? E como se não fosse o bastante, fez a imperatriz pagar pelas…
— Será que não restou nenhuma consideração por nós? — respondia Koji, se voltando para o resto do salão — Citar sua mãe em vão… ela teria vergonha do que se tornou!
O olhar do imperador alcançava uma mulher nas cadeiras do salão entre os Heishis, as costas de Suzaki.
— Quanto tempo levou para fabricar essa historinha, criança?— dizia Dohana, passando pelo príncipe, soprando fumaça do seu cachimbo — pensei ter sido clara quando disse que Asami teve um filho com o Heishi Ryutaro. Foi por causa disso que ele tentou envenená-la para matar a criança. E desde então ele está destituído de seu título, fim da história.
— É mentira! Não percebem? Por que Dohana está aqui quando em todos esses anos Koji tentou escondê-la de vocês como uma vergonha? — exclamou para os Heishis ao redor — eu sou filho de Asami. Koji matou Yua para encobrir o bastardo e se manter no trono com o meu título de Heishi Celestial!
— Você não estava lá, Suzaki — outra voz feminina surgiu dos arredores — eu mesmo ajudei em seu parto.
Com o rosto borrado de maquiagem, a mulher de curtos cabelos azuis foi para o altar, conduzida por um Heishi.
— Tia Rhea?! — reconhecia arregalando os olhos.
— Você deveria ter vergonha de arrastar o nome da sua mãe pela lama assim. Pensamos que tinha corrido tudo bem, quando de repente ela… — levou lenços a seus olhos — Ela sofreu até o fim para que você estivesse aqui agora!
Crescendo seu olhar, Suzaki reparou que o lenço de sua tia estava ensopado de água, simulando lágrimas em sua face.
— Mentira… Mentira de novo! Parem de mentir, seus desgraçados! Por que então eu fui jogado naquele poço? Dohana e Tadashi me lançaram nas Trevas para proteger a sua reputação!
— Não sei do que está falando — respondeu Tadashi, desviando o rosto dos nobres que olhavam para ele.
— Mas eu sim, amor. Daisuke desistiu de apostar em você, criança, e tentou tomar tudo para si. Aotaka tinha os recursos e ele o plano — conteve as risadas — Por isso estão ausentes, pois são traidores como você.
— Meu próprio filho foi convencido pelas suas mentiras — complementou Yomi —. Ele não passou de uma peça nos seus planos. Descartado e morto como um animal.
— O responsável pela morte do seu filho está na sua frente, Yomi! Se não fosse por mim, a última lembrança do Ryo seria a sua cabeça decepada — Suzaki liberava uma das mãos, arremessando a corneta na direção do Tsuki — Se tivesse alguma coragem, Koji estaria entre esses Heishis, não eu! O que você acha que ele fará com vocês quando terminar a guerra? Como vai explicar isso pro Tetsuhi?
Um silêncio tomou conta do ambiente, permitindo que uma trovoada fosse ouvida pelo salão, junto com o sopro do vento contra os alicerces do edifício.
— Admito — retomou a palavra, acenando para Yomi ao lado — eu falhei. — se levantou do trono o imperador — Minha confiança em Daisuke acabou causando essa disputa sem sentido. Contudo, situações como esta mostram uma coisa — ergueu seu dedo indicador — a nossa fraqueza é a divisão. Enquanto estivermos unidos como um único império, uma única cor, nada mais deveria importar, meu filho.
— Pare de me chamar assim.
— É por isso que eu anuncio — apontou o mesmo dedo para Suzaki — que o Heishi Celestial está destituído de seu cargo e do título de nobreza. O jovem diante de vós não é mais príncipe, muito menos herdeiro, é apenas Suzaki.
— Faz um tempo que abri mão disso. Sem mim você não tem nada, nem sucessão nem Império — disse Suzaki, com um sorriso desdenhoso.
— Alteza se me permite — solicitou Tadashi, sendo correspondido com um aceno — Koji é um homem esplêndido que manteve toda essa estrutura, carregando o desejo de todos nós em recuperar nosso prestígio no continente — colocava a ponta de sua lâmina sob o chão se apoiando em seu cabo — mesmo entre pressões e adversidades ele sempre ficou de pé. Os Chisei ficarão ao seu lado.
— Não apenas isso — continuou Yomi — ele atravessou nossa maior crise, uma que veio de dentro, nos mantendo unidos. Nesse momento, ele provou ser o melhor que temos para liderar o Império a um futuro melhor, mesmo sem um Heishi Celestial para chamar de seu. Pela primeira vez, os Tsuki o apoiarão.
— Acredito que frente a isso, não há nenhuma outra objeção, certo? — levantou o tom de voz.
A pergunta reverberou pelas cadeiras do lugar, sendo respondida pelo silêncio consentido dos presentes. Passado algum tempo, o general finalizou:
— Koji tem nossa confiança.
— “Para vencer seus inimigos, precisa se tornar a solução dos problemas deles” — sussurrou Suzaki, rindo de repente com a lembrança da fala do pai.
As risadas se transformaram em uma grande gargalhada que espantou todos ao redor, perdurando por mais alguns segundos:
— Que ridículo, ofereceu a eles a mesma coisa que eu recusei. Desde quando está com a corneta?
— Chega de objeções! — ajeitava sua longa capa vermelha — Essa história sombria termina hoje, para que possamos seguir em frente para a glória da qual fomos negados. E isso começa por eliminar qualquer divergência interna antes de retomarmos os Midori nos próximos dias. Para isso, com muito pesar declaro que Suzaki terá como castigo pelos seus crimes a execução imediata.
Naquele instante, o homem de boina levantou-se entre os Heishis, subindo até o altar para revelar sua identidade.
— Como assim, minha alteza — gritou Masao suando frio — Você havia prometido que Suzaki voltaria para o palácio conosco!
— Está fora das suas competências, Masao — disse Koji, sem virar o rosto.
— Como pode matar seu filho? Por favor, deve haver outro jeito!
— Basta! Coloque-se em seu lugar! Lembre-se de tudo que lhe dei primeiro — ordenou se virando para o homem de boina.
— Não pode fazer isso, podemos apenas conversar mais tarde, vocês estão todos nervosos e por isso estão indo longe demais! — erguia as mãos crescendo para cima do imperador.
Todos do salão ficaram imersos no debate entre o imperador e seu criado, exceto por Suzaki, cujos olhos fixaram na sua antiga espada de duas pontas na mesa. Com seu braço livre, ele usou sua energia para chamar a espada, que saltou para sua mão estendida ao alto.
A trajetória da lâmina despertou a atenção dos Heishis, mas já era tarde. Assim que a arma alcançou a palma de seu dono, uma descarga arremessou os homens de armadura para longe, disparando na direção do altar central. Vendo inúmeros entre ele e Koji, Suzaki fincou sua lâmina no piso para saltar sobre eles.
Ao cair frente a frente com os líderes das famílias imperiais, Suzaki só tinha olhos para seu alvo indefeso. Tadashi corria para impedir o príncipe destituído, porém ele e todos os armados estavam longe demais.
Atacando com uma das lâminas na direção do peito do imperador. Num piscar de olhos, Masao saltou na frente do ataque. A espada atravessou seu corpo, silenciando o lugar ao ponto de ser possível ouvir o sangue gotejando no chão.
Aos gemidos, o criado levava a mão ao ferimento agonizando de dor, enquanto líquido vermelho escorria de sua boca. Olhando em seus olhos, ele sussurrou para Suzaki que tinha os olhos saltando da face:
— Não precisa ser assim…
Foi então que tudo ao redor se dissolveu em branco. A espada nas suas mãos sumia, assim como os Heishis, Koji, Masao e o resto dos nobres. Parado na pose em que desferiu seu golpe fatal, ele sentiu algo pequeno e macio segurando sua mão.
Ao virar, ele viu um menino. Cabelos amarrados, com uma jaqueta azul de detalhes dourados. Seu rosto redondo, nariz arrebitado e olhos da cor do céu.
— Onde estou? — perguntava olhando ao redor.
— Eu estou sozinho — fitou seus olhos para trás.
— Mas o que é isso? — disse Suzaki percebendo uma cortina azul que se estendia infinitamente para os lados.
— Você precisa tomar sua decisão — o menino estendeu a mão para ele de novo.
Suzaki olhou para ele depois deu sua mão, respondendo:
— Você… era eu…
— Errado, eu sou você. Venha.
O menino conduziu Suzaki para perto da cortina, onde havia duas aberturas. Delas, surgiram dois braços estendidos para ele.
— Nós não poderemos ficar juntos mais — o menino dizia — Então foi chamado aqui para escolher com quem vou ficar.
— Eu não entendo. Quem são esses braços?
— Para evoluir o indivíduo precisa reconciliar-se com seu passado e atender aos ecos de seus prováveis futuros. Escute as vozes deles — apontou para seu ouvido — Pode espiar pelas duas fendas, mas, quando entrar, terá tomado a decisão.
Concordando com a cabeça, Suzaki se aproximou da fenda à sua esquerda. O braço o segurou no pescoço e apertou. Pela abertura, ele viu um homem de roupas negras com o rosto coberto por um capuz. O lado esquerdo do rosto estava queimado.
— Koji queria um vingador e eu dei isso a ele. Mas como tudo na minha vida, eu estava longe das suas expectativas — a figura dizia — Não fui o príncipe que deveria, muito menos o filho que poderia, nem mesmo o amigo que queria ter sido. Se todos me deram as costas, então eu darei as costas a eles. Se sou indesejado por onde eu passe, que seja. No final, tudo vai para o caos e acelerar este processo, é o que nasci para fazer.
Suzaki segurava se soltava do braço retornando para seu lado da cortina, quando da outra fenda o braço segurou em seu ombro. A mão que o enforcava recuou e ele viu o que estava por trás da abertura mais a direita.
Era um homem coberto por roupas pesadas de viagem, sujas de areia, lama e terra. Escondendo o rosto barbado debaixo de um chapéu negro, ele começou a falar:
— Na época eu não entendia. Tudo que precisava fazer era aceitar quem meu pai era e seguir em frente. A verdade é que não queria aceitar, porque tudo na minha vida até aquele momento eu tinha feito por ele. Eu devo me libertar desse ódio, não por tê-lo perdoado, mas porque as pessoas que precisam de mim não merecem pagar esse preço. No final, tudo que posso fazer é colocar as coisas em ordem.
Tirando a mão de seu ombro, ele deu dois passos para trás, admirando as duas escolhas.
— Precisa decidir — a criança se aproximava — Não sairá daqui antes disso.
Abaixando a cabeça, Suzaki encarou suas mãos, depois os dois braços estendidos. Quando fez a sua escolha, sentiu os dedos apertarem os seus, o puxando para dentro. Tudo escureceu e a voz da criança pôde ser ouvida:
— Ainda nos veremos de novo.
No derredor do templo, os guardas cercaram Suzaki com Tadashi correndo para o local. De repente, as nuvens do lado de fora se acumularam para cuspir um raio que acertou a construção imperial diretamente.
O barulho foi o suficiente para fazer todos taparem os ouvidos, destroços foram arremessados e as árvores mais próximas tombaram com o impacto. Um vendaval tomou conta junto a uma fagulha de chamas no topo do impacto, amenizado pela chuva que se intensificaram junto aos trovões e relâmpagos que pintavam a escuridão da noite que caía sobre eles.
Ilustradora: Joy (Instagram).
Revisado por: Matheus Zache e Pedro Caetano.