Volume II – Arco 7
Capítulo 50: Herói
Os arqueiros que guardavam o muro de Oásis, capital do território Kiiro, encontraram naquela hora uma caravana às pressas e desordenada. Com uma carruagem chegando a cada dois minutos, uma mais apressada e despedaçada que a outra, mal resistindo a um sopro do vento, eles abriram a entrada para recebê-los.
Ainda era dia quando devolveram os cavalos aos estábulos e abriram a carruagem para ver os passageiros. Eram moradores de periferia, alguns feridos, outros intocados, porém todos ali dividiam o mesmo medo. Na primeira ordem, eles saltaram para fora dos transportes e fizeram fila, de onde os levaram para serem cuidados numa enfermaria próxima.
Não levou muito tempo para colocar todos sob o mesmo teto, menos ainda para o patriarca ser notificado da nova companhia. Entrando lá, estavam Kusonoki e Yasukasa ao seu lado, sendo igualmente informados do que se passava por um Kishi do local.
— Patriarca, os quartos estão todos lotados. Eles trouxeram mais moradores que encontraram pelo caminho nas vilas. As carroças mal suportam o peso. E no máximo três Senshis retornaram.
— Quantos Kishis retornaram?
— N-Nenhum, senhor — abaixou a cabeça.
— Como eu temia — suspirou olhando para baixo — Eles tem um alvo bem claro.
— Mas espera ainda tem coisa — Kusonoki dizia — Onde estão esses Senshis sobreviventes?
O Kishi apontou para o teto, indicando o andar de cima. Quando chegaram no corredor, um corpo enrolado numa capa vermelha era carregado para dentro de um dos quartos. Na porta, um Senshi manco espiava tudo, apoiado na parede.
— Cuidado com ele — ele pedia — Está muito mal.
— Com licença, sou o comandante Aka na operação das vilas — Kusonoki chegava por trás — Eu tenho uma pergunta para fazer a você. Estava em conflito ou foi evacuado nas vilas mais próximas?
— Senhor, olhe para mim — olhou para a perna — Eu nunca teria feito isso comigo mesmo. Só estou aqui por conta daquele morador — apontou com a cabeça para o quarto — foi um herói de verdade.
— Se nosso mensageiro chegou no horário, vocês são da vila mais externa. Quantos inimigos?
— Parecia um exército dentro daquela fumaça. Por onde você olhava tinha braços puxando, lâminas cortando, tudo era muito coordenado lá dentro. Mal dava para respirar também.
— Isso não adianta — interrompeu Yasukasa — Como assim estavam lá e não sabem?
— Eles se moviam numa nuvem negra — levava as mãos na cabeça — Incendiaram as casas com bombas e o incêndio alimentava a névoa. Ficava cada vez maior e não dava para ver.
— No deserto essa fumaça deveria dispersar — insistiu Yasukasa.
— Eles estão atacando sem deixar pistas — Kusonoki se colocou entre Yasukasa e o Senshi — assim fica difícil mandarmos os interceptadores.
— Tinha falado que um morador nesse quarto foi um herói — interrompeu Osíris — Como ele está?
— Péssimo, mas acho que vai viver. Eu seria deixado para trás, mas ele escolheu ficar e me trazer para a carruagem. Eles arremessaram outra daquelas bombas e ele tomou a explosão quase toda sozinho para escaparmos.
Ao ouvir o testemunho do Senshi, Yasukasa entrou no quarto rapidamente. Osíris a seguiu tentando impedi-la, enquanto Kusonoki permaneceu com o paciente.
Ao lado da cama de Okada, ela percebia um médico nativo com máscara, com as queimaduras do morador sendo envolvidas por esponjas d'água com constantes gemidos de dor.
— Uma bomba fez isso com ele? — perguntou Yasukasa botando uma das mãos à boca.
— Várias testemunhas relataram a mesma situação — disse o cuidador, pressionando as feridas — o que sei é que com essas queimaduras, o deserto talvez não seja um bom local para este homem morar.
Osiris chegava por trás encarando os olhos sofríveis amarelos do morador bem na sua frente:
— Yasukasa, deixe ele descansar.
Quando ela ameaçava virar as costas seguindo seu pai, em último impulso Okada se moveu para frente pegando-a pelo pulso.
— Es-espere, eles… como eles estão?
— Eles? — olhou para a mão de Okada, fechada ao redor de um tubo de madeira.
— Minha família evacuou na frente. Eu fiquei para — tirou os dedos de cima e mostrou a flauta improvisada — recuperar algo do meu filho.
Osíris a pegou repleta de rachaduras, estava frágil a qualquer toque. Com cuidado, a repousou na cabeceira, enquanto sua filha o questionava:
— Chegou a ver quantos eram? Ou conhece alguém que viu o ataque mais cedo?
— Eu fui um dos primeiros — lutava para puxar o ar para dentro — Pareciam dois deles, antes de tudo ficar preto só dele olhar para eles. Depois veio a fumaça e aí todos saíram correndo.
— Dois? — Yasukasa olhou para Osíris, que deu de ombros com a informação — Não é possível.
— Ei, acho melhor vocês saírem — Kusonoki aparecia na porta para avisar.
Após o aviso do Senshi Principal, uma mulher e uma criança correram para dentro do quarto.
— Okada, Okada! — a mulher chamava por ele, se aproximando da cama aos prantos.
Yasukasa se afastou do leito, ao passo que a criança gritando por seu pai, com os três abraçados, por um momento Okada sorriu em alívio. As duas autoridades se afastaram, enquanto o patriarca dava um passo à frente, pegando a flauta na cabeceira da cama. Chamando a atenção da criança, o patriarca agachou, ficando frente a frente com o menino.
— Eu sinto muito — entregou o instrumento para ele.
Com o gesto, Okada não conteve as lágrimas. Enquanto Yasukasa já havia saído do quarto, Osíris dava passos vagarosos até a saída, com os olhos fixos na família, que derramava lágrimas à beira da cama de Okada.
— Eles foram separados na evacuação — explicou Kusonoki — Achei melhor dar esse tempo junto para eles. Conseguiram o que queriam?
— Relatou apenas só dois Kuro — afirmou Yasukasa, levando a mão ao queixo — Mas tem que ter mais.
— Toda essa destruição — dizia Osíris olhando ao redor — Nosso plano realmente funcionou, Kusonoki?
— Patriarca, eu entendo a sensação de impotência, mas também compreendo a dificuldade, e por isso precisamos deixar nosso coração de lado aqui. Nossos homens, por mais frio que possa parecer, estão prontos para dar suas vidas em serviço. Um vilarejo inteiro praticamente foi evacuado por conta disso.
— Nós Kiiro não enxergamos nossos homens dessa forma, são companheiros não vidas descartáveis! — os dois trocaram olhares, até que Kusonoki colocou a mão em seu ombro em luto — Você é jovem, não posso pedir que entenda isso — desconversou Osíris.
— Eu disse que entendo, aliás, nosso plano ainda está em execução, o sucesso ou não dele dependerá bastante do próximo passo.
— Atacar! — cerrou os punhos — Pai, vamos atacá-los já! É a hora da interceptação, certo?
— Sim, se a evacuação já começou, só nos resta interceptá-los onde combinamos. Guardamos nossos melhores homens para isso — respondeu Kusonoki.
— Você não vai! — rebateu Osíris — Olhe ao seu redor, pensa que vai terminar diferente deles?
— Você me treinou melhor do que eles. Ou vai me dizer que confia mais em Senshis do que em mim?
— Não se trata disso, não se fala mais nisso!
— Olha só para você — comentou Yasukasa, negando com a cabeça, antes de sair andando pelo corredor.
Recostando-se na parede, respirando fundo, ele segurou seu braço esquerdo com força, enquanto escutava o jovem Senshi que ainda ficou do seu lado:
— Eu sei que deve ser difícil. Posso assumir essa primeira incursão para você, se quiser.
— Nada disso. Vamos até o Susumo para terminarmos isso de uma vez. Em algumas horas, devemos ter tudo pronto para enviar as tropas.
Em meio às estradas de rocha, com árvores revestidas em folhas secas e vermelhas do outono. Uma enorme carruagem seguia para a mansão onde o Supremo cumpria com suas obrigações.
De repente uma mulher de cabelos negros, lisos e longos descia de supetão do veículo. Os guardas do enorme edifício curvaram suas cabeças logo que viram a chegada, permitindo assim a entrada da mulher que batia na porta da última sala para saída da mansão.
Com soar do som das batidas na sala de espera, Oda, o líder dos principais correu abrindo a porta, já imaginando quem poderia ser:
— Tomoe se você está sozinha aqui…
— Não encontrei os Shiro — respondeu, empurrando de leve a porta, deixando apenas uma brecha — Mas, o Rei requer a presença do Supremo para tomar uma decisão.
— Supremo? — ria voltando os olhos para dentro — Vamos pessoal, espero que estejam todos preparados — empurrava a porta que era pressionada pela Senshi — Você também, Tomoe.
— Eu não sei se isso é uma boa ideia, líder — disse ela, enquanto o seguia.
Quando a equipe saiu, se deparou com a chegada de uma caravana repleta de guardas ao seu redor. Da carruagem mais adiantada, a porta se abriu, e um Senshi estendeu um um tapete vermelho até a entrada da mansão.
A seguir, um homem de estatura média, cabelos ruivos, alaranjados por alguns fios loiros e barba feita. Ele calçava sandálias de couro rentes aos pés e vestia uma armadura de bronze por baixo da capa vermelha que se prolongava do pescoço aos pés.
Enquanto o Rei caminhava, ninguém dizia uma palavra. Oda, que estava em seu caminho, parado na entrada, se curvou levando a mão direita ao lado esquerdo do peito dizendo em gesto de continência:
— Aka!
— Avise ao Supremo, que estarei esperando aqui.
— Sim, senhor! — respondeu Oda.
A porta da mansão se escancaram com a força de Oda, que dispersava seus homens e se encaminhava ao Supremo bufando. Yanaho testemunhava tudo sem entender bem.
— Acharam Onochi? — perguntou, o mirim.
O líder dos principais sequer olhou para o jovem sentado. Diante da porta de Ryoma, Oda bateu duas vezes e exclamou:
— O Rei Chaul está aqui.
Com a informação, o mirim se ajeitava no seu lugar, abaixando a cabeça. Rapidamente, o Supremo abriu a porta e passou por Oda. O mirim encarava somente o chão, quando sentiu uma mão no seu ombro e outra erguendo sua cabeça pelo queixo.
— Você vem comigo — disse Ryoma antes de se voltar para os outros — E vocês ficam aqui. É uma ordem!
As mãos do menino começaram suar. Seus joelhos amoleceram e seus olhos cresceram, mas ele continuou seguindo Ryoma até o tapete vermelho.
"Então… Onochi não foi encontrado", pensou, quando abriram a porta da saída.
Diante do Rei, o jovem e o Supremo fizeram o mesmo gesto de Oda.
— Os Shiro não foram encontrados, Supremo — cruzou os braços, reparando em algo se movendo por trás das janelas — Vamos direto ao ponto. Qual o seu plano, Ryoma?
— Meia hora atrás minha solução não seria diferente das outras. Não podemos enfrentá-los sem os Shiro — pegou nos ombros de Yanaho — mas eu tenho um último recurso.
— Esse mirim? — o Rei encarou Yanaho, que engoliu seco.
— Seu nome é Yanaho, é um aluno de Onochi. Mais do que só algumas técnicas, ele desenvolveu a própria energia Shiro. E por isso, é a figura mais próxima dos Shiro de todo nosso exército. Ele é a nossa alternativa.
— É-é um prazer — disse Yanaho, se curvando novamente.
— Está me dizendo que Onochi treinou esse mirim, desenvolveu a energia Shiro dentro dele a ponto de imunizá-lo contra os Kuro e guardou segredo?
— Sim! — respondeu Yanaho, se levantando — Q-Quer dizer, sim, eu sou imune ao poder ocular dos Kuro. Mas, mas, Onochi nunca me pediu segredo. Até porque se fosse o caso eu…
— Não teria contado? — questionou Chaul, inclinando a cabeça.
Suspirando profundamente após a resposta, o Rei correspondeu abrindo a porta da carroça dizendo:
— Tenho pressa. Entrem.
Na medida em que os cavalos se apressaram em direção aos limites da capital Kagutsuchi, Yanaho estava isolado no banco do passageiro enquanto o Rei e o Supremo se colocavam lado a lado, junto ao cocheiro.
— Em todos esses anos, um mirim era a última coisa que esperava enviar em uma situação dessa — provocou o Rei.
— Nem sempre trabalhamos nas melhores condições — encarava um símbolo marcado em seu pulso — Não arriscamos nossas melhores opções num terreno desconhecido. O rapaz pode quebrar essa escuridão de dúvida, nos mostrar um meio de contornar isso.
— Nunca passou pela sua cabeça que fosse melhor enviar aquelas armas desprovidas de vida.
— Mesmo que eles obtivessem sucesso, o que duvido, teríamos que recolher o lixo depois. Sem falar na quantidade de baixas civis que teríamos que suportar. Além de tudo, o garoto se voluntariou. Mesmo que Onochi não tenha pedido segredo a ele, isso servirá de exemplo para os dois. Tudo isso poderia ter sido evitado se não tivessem se omitido.
— Eu gosto de pensar que quanto mais o problema estiver em nossas mãos, menos seremos surpreendidos — disse Chaul cerrando o punho.
— Por isso Kusonoki está lá — disse Ryoma cruzando os braços — Além do benefício estratégico, precisamos nos certificar de que Osíris não faça algo do qual todos vão se arrepender.
Ouvindo pedaços da conversa pela madeira abafada da carruagem, Yanaho esfregava as mãos umas nas outras, suando frio.
“O que eu fiz? Isso não é uma simulação ou uma prova com os amigos. Os Kuro numa batalha…” levou a mão ao peito. "É muito, muito... grande?", a memória trazia uma lembrança.
De repente a carroça parou. Uma brisa passava pela extensa estrada, carregando as folhas vermelhas que repousavam sobre o trajeto, ocupado por nove interceptadores. O líder deles deu três passos à frente, gesticulando para os condutores descerem.
— Deixe isso comigo, majestade — disse Ryoma, desceu do transporte, indo até Oda — Ordenei que esperassem.
— E levar esse garoto? Sem teatro, Ryoma, estamos partindo para resolver isso logo. Não vou sair pelas suas costas como fez comigo. Tenha um pouco de dignidade e mande esse rapaz de volta para o internato de onde ele não devia ter saído.
— Você que deveria ter ficado. Pelo menos uma vez, não perturbe o que já está sob controle — colocou a mão no ombro do principal — Confie em mim.
— Eu já ouvi essa antes — Oda tirou o braço de Ryoma — Que confiança eu devia ter de uma decisão de você?
— Fui eu quem decidi — gritou Chaul, vindo de trás — Você não vai, Principal Oda!
— Ah é claro, o Rei concordou em enviar uma criança para morrer — apontou para o veículo — Quanta nobreza nos poupar da nossa mera obrigação, majestade.
— O sacrifício está na natureza do Senshi. Lutamos por isso. Não pela glória ou por exibição, mas pelos nossos — afastou seu subordinado, olhando Oda de cima para baixo — Devemos conhecer o problema primeiro antes de subestimar o inimigo e perder um subordinado valioso por arrogância. Disso você entende, estou certo, Principal Oda?
Com a aproximação do rei, todos os principais se ajoelharam. Notando isso, Oda, sendo o único que permaneceu de pé, ficou em silêncio.
— Um líder devia ser exemplo para seus subordinados — terminou Chaul, virando de costas — Em vez de uma vergonha para eles.
— Que seja, não esperem contar com a vergonha quando tudo der errado — disse sinalizando a equipe para abrir caminho.
— Vocês não estão descartados — dizia Ryoma, mas os Principais continuaram silenciados — Esperem as próximas ordens na base.
Chegando aos limites, próximo ao norte Aka, uma fronteira de soldados vermelhos abriram espaço para as máximas autoridades. Yanaho descia rotando seu olhar de um lado para o outro, notando Senshis completamente preparados para qualquer urgência.
— Sigam rumo, eu irei esperar aqui — disse o Rei sem nem ao menos sair do veículo.
Seguindo rumo a uns estábulos, o Supremo conversava com uma companhia de guerreiros, no qual um se deslocou junto a ele para as cercas da fronteira da capital. Ryoma se aproximava do garoto uma última vez, pegando em seu ombro.
— Estamos nos preparando para enviar mais reforços, então consegui que um Senshi te conduza até a capital Kiiro, lá você será instruído por um dos principais que enviamos.
— Sim senhor — disse Yanaho, com uma expressão diferente, seguindo em frente para o cavalo que o esperava.
— Garoto, não posso deixá-lo ir sem antes perguntar — pressionou a mão no ombro — tem certeza do que está fazendo?
— Não preciso de certeza para fazer o que é certo. O mundo é muito grande, mas se eu tiver nem que seja uma pequena utilidade… eu preciso ir.
— Entendo — retirava a mão do ombro do garoto, indo em direção contrária — cumpra o seu dever!
Indo mais a frente, seu acompanhante já montado em um cavalo, encarava a aproximação do garoto da cabeça aos pés:
— Você é o garoto então, prazer Tokito.
— Sou Yanaho Aka — respondeu subindo em seu cavalo — é um prazer.
Os dois partiam em velocidade por uma rota alternativa, em direção à capital Oásis. Com os trotes ressoando, Yanaho olhava para trás por um momento franzindo as sobrancelhas em determinação, se lembrando das antigas palavras de seu primeiro companheiro:
"Vou fazer grandes mudanças se for preciso! Se acha que é pequeno para mudar as coisas, comece pelos detalhes, assim como foi naquela promessa. O que não podemos fazer é ficarmos parados sem fazer nada."
"Eu sempre quis que minha vida valesse a pena, sempre quis ser útil. Então… mesmo que eu seja muito pequeno, esse mundo precisa de grandes mudanças, não é mesmo, Suzaki?", concentrou seu olhar para frente. "Eu vou voltar, Mestre, Pai!"
Ilustradora: Joy (Instagram).
Revisado por: Matheus Zache e Pedro Caetano.