Nisoiro Brasileira

Autor(a): Pedro Caetano


Volume II – Arco 7

Capítulo 48: Os Kuro

Nuvens negras pairavam sobre mais um vilarejo no deserto de Kiiro. Envolto pela fumaça, pessoas gritavam e corriam de suas casas em chamas, embora as ruas fossem palco de uma batalha tão perigosa quanto suas casas devastadas. 

Com as vestes manchadas de sangue da cor de suas roupas, um Senshi arrastava-se para o posto mais próximo, carregando o corpo de um Kishi pela rua antes de sucumbir às suas próprias feridas. Ajoelhado no chão, ele via outros Senshis correndo na direção oposta, rumo ao combate.

— Alguém… Me ajude… — dizia com sua voz fraca.

Um dos Senshis parou para ajudá-lo, mas suas pernas mal conseguiam sustentá-lo.

— Ouvimos o chamado — disse o homem — O que houve?

— Os Kuro… Eles estão aqui — o homem ferido respondeu — Esse Kishi veio sozinho, não suportou a fumaça. Acho que ele apagou.

Os olhos do homem viraram para trás da cabeça, ao passo que sua consciência se perdia nos braços do Senshi.

Mais a frente, dois jovens perseguiam os moradores, ceifando uma vida de cada vez, quando uma mulher agarrava as vestes de um deles, gritando:

— Não consigo ver! Cadê meu filho! Quem é você?

Atravessava sua lâmina sob o corpo da vítima, cruzando seu olhar inexpressivo com os olhos desesperados enegrecidos. Eram visíveis as ranhuras em suas pontas mesmo com o metal mergulhado no sangue. A mulher gritava de dor tentando conter a hemorragia, notava a aproximação do outro.

— Por que… porque fazem… isso? — perguntou já perdendo a consciência.

— Fomos roubados — respondeu, pegando seu corpo do chão — só estamos pegando de volta.

Com o corpo nos braços, ele a arremessou junto a uma pilha de corpos dentro de uma casa que já pegava fogo. Admirando as labaredas consumindo a madeira e a carne, ele foi interrompido pelo seu parceiro que pegou no seu ombro:

— Nagajiyu, temos que seguir ainda há mais deles.

— O que vermelhos fazem aqui, irmão? — perguntou — esperava envolver só os Kiiro nisso.

— Também não sei — apontava sua espada — mas não importa, nada mais importa. 

— Todos queimarão, esperamos muito tempo por isso — tirou do bolso da sua roupa uma esfera de pano e arremessou contra a casa. O pequeno projétil estourou na mobília, atiçando as chamas — Eles não podem se esconder mais. 

Os gritos abafaram por um minuto, substituídos pelo barulho de armaduras e ordens. Quando os dois deram as costas para casa, viram Senshis em formação se aproximando deles na intenção de cercá-los. Colados um no ombro do outro, os Aka formavam uma linha que se aproximava lentamente de seus alvos.

— O que tenham vindo fazer aqui acaba agora! — dizia o Senshi no centro da linha, colocando-se à frente — Estão cercados! Abaixe essa arma!

— Não — respondeu Hirojiyu.

A resposta seca desencadeou a reação do comandante, avançou sua linha quando, de repente, seus olhos e os de seus homens foram envolvidos por uma penumbra. Os homens pararam de avançar e subiram a guarda.

"Estou cego, o que está haven…", o pensamento do comandante foi encerrado sentindo um metal frio deslizar por sua garganta.

Aos poucos, os Senshis foram perdendo a sensação do iro um do outro, sem ter a menor noção do que os acertava. 

— O que está acontecendo? Por que eu não vejo nada? — um deles gritava, subindo seu escudo.

Mergulhados na cegueira, os que restaram quebraram a linha defensiva e balançavam golpes ao vento antes de serem eliminados, assim como seus parceiros.

— Estão usando prisioneiros como escudo? — Nagajiyu pegava o corpo do sujeito, jogando sobre as chamas.

— Ainda não acabou, vamos! — respondeu Hirojiyu com os brilhando em preto, focando nos fugitivos.

Capital Kagutsuchi - Território Aka.

A bordo da carroça trepidando, guiada por Musashi, o mirim convidado pelos Senshis Principais mantinha a cabeça baixa esfregando suas mãos, pensativo.

"Isso nunca aconteceu antes, será que tem relação com Onochi? Ou… meu pai?", fechou os dedos na cicatriz na sua mão. 

As rodas de madeira paravam de rodar, e Yanaho finalmente ergueu a vista, enquanto Honda e Musashi desembarcavam. Por um instante, o filho de Yoroho coçou os olhos com força antes de voltar a ver os seus arredores. 

“Isso é real?”, questionava sua própria sanidade vendo a cidade inundada por pessoas, rodeada de construções.

A rua em que estavam era uma avenida com ruas de pedra, divididas por um canteiro de grama por onde passavam carruagens de três a quatro cavalos. Todos se vestiam com capas de cetim, armaduras ou botas de couro. Os prédios eram altos de pelo menos três andares com fachadas repletas de ornamentos simétricos. Numa esquina, gritos de um homem balançando um papel na mão anunciando alguma coisa somado a conversas paralelas que criavam na cidade uma cacofonia intensa demais para o menino do campo, que teve seu transe desperto por um dos principais.

— Anda, precisamos descer — avisou Honda estendendo a mão para ajudar o menino a pôr os pés na calçada.

— É que — desceu o garoto, meio tonto — Aqui tem tanta coisa. Onochi está por aqui? 

— Não. É exatamente por isso que você está aqui — respondeu Honda, apontando para a praça mais adiante ao final da avenida.

Do outro lado dela, havia uma verdadeira mansão. Protegida por Senshis na porta e nos telhados, o lugar era pintado de vermelho com colunas brancas e ornamentos dourados nas janelas e na entrada principal. Quando o trio chegou, outros homens e mulheres apareciam ao redor, de um sujeito com um tapa olho, a outro com um enorme arco nas costas e braços tatuados, todos se moviam com pressa pelo local.

O mirim terminou esperando em uma ante sala, onde podia ouvir do outro lado da porta uma conversa acalorada. Quando a presença de Honda foi percebida por um dos guardas, ele abriu a porta vagarosamente e anunciou a chegada dos dois principais. Foi então que um homem, de cabelo escuro na altura dos ombros, avermelhados nas pontas, apareceu na porta para chamá-lo para dentro. 

"É o Senshi Supremo”, reparou Yanaho imediatamente, quando entrou na sala e reconheceu outro, reclinado para trás na sua poltrona do outro lado de uma mesa. “E aquele é o Senshi com ataduras de anos atrás". 

— Eu trouxe ele, Supremo — disse Honda empurrando o garoto para frente. 

— Isso será rápido. Sente-se — disse Ryoma, apontando para uma cadeira vaga ao redor da mesa — só preciso de algumas respostas. Onochi está sumido há alguns dias. Estamos conduzindo uma busca, mas pelo que sabemos você foi a última pessoa que o viu — colocou uma palma sob a outra — Onde ele está?

— O-Onochi ele… — Yanaho travou, enquanto tomava seu assento — Meu mestre disse que sairia de viagem para treinar com seu irmão mais velho.

— Ele deu alguma dica ou ideia de onde iria ou como poderia encontrá-lo? — afastou as palmas e encostou as pontas dos dedos umas nas outras.

— Ele só disse que iria para muito longe. Disse que iria treinar com o mestre dele — a resposta arrancou um suspiro do outro Senshi das mãos atadas — mas, qual a urgência? 

— Eu já ouvi o bastante — o Senshi ficou ereto na cadeira — Não dá para contar com quem nunca aparece. Deixe eu e os principais agirem de uma vez. O garoto nem precisava estar aqui.

— Estamos sendo invadidos, né? — o mirim insistiu — Qual é o problema para precisarem dele?

— Não nós, e sim Kiiro. O deserto está sob nossos cuidados desde o Conflito da Providência — Ryoma explicou apoiando a mão no queixo.

— Mas por que os Shiro em específico? Qual o motivo dessa…

— Os invasores são os Kuro — interrompeu o Supremo — O iro deles é capaz de neutralizar nossas habilidades com apenas o contato visual, se poderosos podem derrotar até nossos veteranos. Apenas os Shiro possuem uma proteção natural contra isso — encarou o Senshi sentado — Não vou mudar minha decisão, Oda. 

O segundo homem na sala levantou da cadeira para sair, quando a fala de Ryoma trouxe uma memória para a cabeça do aprendiz de Onochi:

"Você já controla técnicas Shiro tão raras e antigas que duvido que entre numa luta onde elas não sejam necessárias". 

— Está dispensado garoto — Oda despertava Yanaho do transe — Vamos, Honda, leve ele daqui. Precisamos de um tempo.

— Espera, mas…

— Vamos andando — Honda o tomou pelos ombros.

Assim que a porta foi fechada nas costas do mirim, Oda parou alguns segundos virado para a saída até que Ryoma quebrou o silêncio:

— Eu não espero que você aprove minha decisão, Oda. 

— Quero que me escute bem porque só vou dizer uma vez — apontou o dedo — se meus homens retornarem sem nenhuma informação sobre os Shiro, minha equipe vai agir independente de suas ordens.

— Enviar um de seus homens com um apoio militar adicional já nos dá tempo para medir a temperatura do problema — voltou a se sentar na mesa — A menos que ele seja menos do que você disse antes.

— Eu só trabalho com os melhores — respondeu Oda virando-se de costas, já girando a maçaneta para sair — tenho certeza que ele já deve ter mais avanços que você sobre a situação, não devemos medir, mas sim moldar a temperatura do problema. 

— Para isso teria que arriscar os melhores contra os Kuro sem a proteção Shiro — soltava o ar pelas narinas com uma leve risada — Meu pressentimento quanto a isso não são dos melhores. 

— Você sempre tem — interrompeu Oda, abrindo a porta — E nós sempre somos reféns da sua covardia. 

Saindo da sala, Oda já foi recebido com a ansiedade de seus companheiros:

— E então, quais são as ordens?

— Esperar! — Oda deu de ombros — Com sorte, Tomoe e Masaki encontram logo esse cara. 

— Parece que está de mal humor de novo — comentou Musashi, afiando uma de suas lâminas.

— Novidade — suspirou Honda, notando o mirim ao lado com os olhos perplexos — Ei, mirim, está tudo bem? 

— Tá… tá sim — respondeu, levando uma das mãos à cabeça.

"Será que eu… Não, eu sei que eu posso, mas será que eu deveria?", pensou Yanaho, ao som das mãos de Musashi deslizando pela sua lâmina.

Capital Oásis - Território Kiiro.

Quando retornou ao seu lar, Osíris e Yasukasa se uniram a Susumo, numa sala secreta, por trás do escritório do patriarca. Em seu centro, havia uma mesa com uma maquete de todo o deserto e sua topologia, com peças posicionadas. Nos arredores, estantes com livros e um arsenal no fundo, com espadas, escudos e armaduras. Tudo iluminado por velas desgastadas, acesas pelo guarda. 

— Eu pensei que esse dia chegaria cedo ou tarde — disse Susumo admirando a maquete — Mas eu queria que levasse um pouco mais de tempo.

— Isso é um luxo que perdemos — Osíris tomou uma das peças das vilas externas, um boneco vermelho — Os Senshis não estão equipados para isso, pelo menos conseguimos preservar a vida do informante. 

— O aviso da invasão não deve chegar aos Aka a tempo — Yasukasa se apoiou na mesa com os braços — Estamos por conta própria.

— Ainda há Senshis nas vilas que ainda não foram atacadas — respondeu Osíris pegando as peças amarelas juntas dentro do muro e distribuindo pelo deserto — Se levarmos nossos Kishis para apoiá-los, podemos ir para o próximo passo do plano.

Terminando de colocar a última peça amarela, as mãos trêmulas de Osíris esbarraram na outra vermelha.

— Nossa guarda é forte suficiente — afirmou Yasukasa, pegando na mão do patriarca — Se depender de mim, posso tomar a dianteira  ao lado deles para deter essa ameaça.

— Patriarca, temos uma visita — uma voz gritou do lado de fora da sala.

O grito dos porteiros fez Osíris gesticular a Yasukasa que ficasse na sala com um aceno, antes de ir com Susumo para as escadas. Esperando por ele, rodeado de Senshis e envolto numa capa vermelha estava um jovem que jogava sua franja para o lado para falar:

— Patriarca Osíris, nós Aka estamos cientes da ameaça. Sou um enviado do próprio Supremo para auxiliá-lo nessa crise temporária. 

— Tudo que seu rei e o Supremo têm para me oferecer é um garoto? — questionou Susumo.

— Quem é você? — perguntou Osíris, depois de erguer a mão para silenciar seu cavaleiro.

— Me chamo Kusonoki, um dos Senshis Principais — abriu a capa, mostrando alguns papéis debaixo de seu braço — venho com um plano.

Susumo e o patriarca trocaram olhares entre si. 

— Todos esses Senshis estão à nossa disposição, senhor — continuou Kusonoki — Sem falar nos que esperam pelo pior nas vilas. Meu papel é dar suporte para coordenar Kishis e Senshis nesse combate.

— Patriarca, o senhor tem certeza? — Susumo sussurrou.

— Precisamos convencer o conselho antes de agir. Com o suporte dos Senshis e a garantia de que não vamos derramar somente sangue Kiiro, é impossível sermos recusados. Se desconfia dele, ao menos confie em mim pois tenho um plano — respondeu ao pé do ouvido de seu cavaleiro, antes de se dirigir ao Senshi em voz alta — Me mostre a que veio.

Deixando seus Senshis na entrada, Kusonoki acompanhou o patriarca para a sala de reuniões, absorvendo cada centímetro do que via, até que se viu diante da mesa de guerra.

— Pai, quem é… — Yasukasa começou a perguntar, mas foi interrompida.

— A ajuda veio mais cedo do que pensamos — interrompeu Osíris, entregando uma peça preta para Kusonoki — Como você vê essa situação?

— Longe do ideal, mas ainda administrável — admirou a peça antes de posicioná-la na mesa — Os Kuro chegaram pela depressão de onde nós os conhecemos. O rastro de destruição deles começa na vila mais próxima de lá e segue numa linha reta até aqui. Nesse ritmo eles vão conseguir destruir todas as vilas, e vão chegar na capital em alguns dias. 

— Eles não vão botar o pé aqui — afirmou Yasukasa, cruzando os braços.

— Esse é o plano — continuou Kusonoki, revelando um dos documentos na mesa — Eles estão vindo de uma viagem longa e ainda terão que cruzar as dunas em um clima escaldante. A ideia é: deixem que concluam a viagem. Vamos interceptá-los na última vila antes das cidades centrais. 

— É uma margem muito pequena — Susumo argumenta — O estrago se falharmos será enorme, sem falar nas vidas perdidas pelo caminho.

— É aí que está — recuou as peças vermelhas espalhadas pelas vilas da maquete — Vamos atraí-los, evacuando os moradores do caminho e os confrontando aos poucos. O deserto e as lutas sucessivas vão cansá-los e aí entramos com força máxima — aproximou as peças vermelhas das amarelas.

— Não gosto de abandonar as vilas mais distantes para morrer — Osíris apoiou o punho fechado sobre a mesa — Deve haver outra maneira.

— Eu sinto muito, mas não temos tempo. O melhor que podemos esperar é que os Senshis já designados salvem o máximo que puderem — explicou Kusonoki — Nem se fossemos partir agora chegaríamos a tempo.

— Isso não é o bastante — insistiu Yasukasa — E como tratamos todos os refugiados? São centenas de…

— Isso será um problema para o futuro — justificou Osíris — Faremos o que for necessário, mas ninguém morre se pudermos evitar. Por agora só tenho uma objeção. Tem um lugar melhor para enfrentá-los do que a última vila — mostrou na mesa um terreno às margens da capital, longe de todas as vilas, cercado por dunas.

— Mas para levá-los para lá teríamos que desviá-los do caminho — pensou um tempo — Já sei! Vamos dividir as tropas, uma parte na vila que os desviará para onde queremos e outra esperando para emboscar nesse ponto. Será difícil, mas se garantir a vitória…

— Eu garanto que eles serão impedidos lá — Osíris respondeu, percebendo que Yasukasa desviou seu olhar da maquete. 

Com um aperto de mãos, o Senshi Principal e o patriarca fecharam o acordo. 

Com os desdobramentos na capital, uma vila vizinha a primeira a ser atacada, tinha seus trabalhadores de pé logo cedo. Cercada de grandes dunas, o vento soprava elevando as areias, obrigando os moradores a tampar seus olhos com as vestes em meio às brisas. 

Um dos moradores se aproximava de outro enquanto colocava sua mão sob os olhos, observado uma fumaça escura saindo detrás do montante de areia:

— Essa fumaça está se estendendo bastante, não acha? Okada? — perguntou um dos trabalhadores.

— Deve ser só um incêndio, espero que ninguém tenha se ferido — respondeu, pegando um cajado. 

— Espera, veja — chamava a atenção do sujeito novamente pegando em seu ombro. 

Semicerrando seus olhos, pode observar dois sujeitos de vestes da cor da fumaça, descendo sob a montanha de areia com as cabeças cobertas por lonas comum do deserto. 

— Vestes pretas? — estranhou Okada. 



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