Nisoiro Brasileira

Autor(a): Pedro Caetano


Volume II – Arco 7

Capítulo 47: Herança

Pelas ruas de Oásis, na capital Kiiro, uma mulher com o rosto coberto por um véu avistou as colunas de um enorme edifício, cercado por guardas no térreo e nas sacadas. Quando colocou os pés no lugar, retirou o véu, permitindo que os porteiros a reconhecessem. Dois Kishis a seguiram como uma sombra, carregando a longa saia do seu vestido.

O salão do edifício tinha uma larga escadaria, levando a um salão de duas portas de madeira, de onde ela ouvia vozes. Seus dois acompanhantes empurraram uma porta cada um, antes de serem dispensados. A conversa lá dentro cessava naquele mesmo instante.

— Atrapalhei? 

Na sala estavam Osíris debruçado sobre uma mesa estreita e um Kishi sentado do lado oposto, que rapidamente se ergueu para saudar a recém-chegada.

— Em nada, senhora Kasa — se curvou um Kishi de alta estatura. 

— Eu e Susumo estamos conversando — o patriarca escorou sua bochecha sob seu punho — não lembro de ter requisitado sua presença.

— Você pode até ser durão com nossas filhas — foi até a mesa do escritório e pegou alguns papéis — eu sou sua mulher.

— Eu sei que quer ajudar, mas já fez o bastante. O que temos aqui não é nada para se preocupar. 

— Se fosse algo tranquilo, os dois não estariam se reunindo tão cedo — começou a ler o papel.

— É um problema de logística quanto ao abastecimento de água nas periferias — disse Susumo, retomando a postura — os Senshis reclamaram mais uma vez. 

— E com razão — colocava os papéis sob a mesa — quando os Senshis tomaram essas terras, não tínhamos esse problema. Por que darmos migalhas agora? 

Osiris juntou os documentos que ela abandonou, recolhendo-os da mesa e os guardou em uma gaveta em silêncio.

— Nós temos outras prioridades no momento. As cidades mais próximas cresceram a sua população  — disse Susumo com as mãos para trás — E os Senshis deveriam ter os recursos necessários para administrar a água de lá.

— Então tá tudo bem deixá-los morrer de sede? 

— Não é sobre isso, senhora — suspirou Susumo — Essa crise é inédita. As pessoas estão melhorando de vida e se mudando para cidades maiores. Se não mostrarmos a elas que podemos cuidar de nossos problemas, a pressão só irá aumentar. E além do mais, o deserto já possui o suficiente ara sobreviver. — terminou de falar assim que o rosto de Kasa se fechou. 

— Que tal você ter somente o suficiente para sobreviver também? 

— Basta vocês dois — O ultimato de Osíris silenciou a sala, que permitiu um estalo da porta ser ouvido — Continuamos essa conversa amanhã — se levantou indo em direção à porta — abriu a porta — devo admitir que tenho saudades de ter a última palavra sobre os problemas — completou abrindo a porta. 

Abandonando os dois na sala, o patriarca subia o edifício pelas escadarias laterais, quando atingiu uma sacada. Além da vista, havia duas cadeiras e uma mesa do lado da porta de saída, mas Osíris optou por se escorar no parapeito e ali ficou observando as ruas abaixo dele e o horizonte após as muralhas da cidade, notando uma aproximação por trás, antes que pudesse se virar se sentiu abraçado.

— Mas o que?! — virando-se percebia o sorriso de sua filha.

— Assustado em seu próprio castelo? — perguntou Hoshizora, o soltando. 

— Agora é um mau momento, filha — passava as mãos nas roupas para tirar o amassado — Não pode ficar nos espiando como estava fazendo.

— O Rei precisa de mais alguma dica pros problemas? — mostrou uma peça do tabuleiro.

— Governar é muito mais que um jogo — pegou a peça dada por sua filha — E eu não preciso de dicas ou proteção como o seu “Rei”.

— Mas a última palavra sempre é sua. Então de alguma forma você encerra as coisas, como o Rei.

— Exceto que não termina com a minha captura — estufou o peito, guardando a peça no bolso. 

— Não caso esteja cercado pelo inimigo — olhou por cima do parapeito para a cidade — Você já mudou de ideia sobre os Aka, né?

— Talvez já, as coisas tomaram ordem por aqui nos últimos anos — encolheu a cabeça abaixo do peito — mas nunca podemos ficar dependentes de qualquer ajuda externa — agitou o vendo com as mãos, como se desmanchasse os próprios pensamentos — Esqueça, melhor voltar para seu quarto. Preciso visitar um lugar.

— O povo daqui está acostumado a colocar a Dinastia em primeiro lugar. Eu não acho que as migalhas sejam o problema em si. Mas sim, conscientizar o povo da capital, e das cidades mais ao centro, dessas mudanças do ponto de vista dos Aka, e a importância dos moradores da periferia. 

Osíris se levantou sem dizer uma palavra, até ir para a porta.

— Você cresceu Hoshi.

— Aprendi com o melhor — disse voltando-se para a cidade, onde o Sol subia acima das muralhas no horizonte.

Nos fundos do lar do patriarca, havia um estábulo onde os Kishis preparavam transporte para seu senhor. Apesar da tarefa designada, lá estava Osíris junto deles amarrando os cavalos no carro. 

— Podemos fazer isso sozinhos, senhor — um dos Kishis se queixou.

— Nada disso, quero colocar a mão na massa para variar — prendeu as rédeas — Ajuda a aliviar a cabeça — subia no assento com dificuldade, suspirando fundo. 

— Senhor, fique do lado de dentro — ajudou a descê-lo, enquanto o outro Kishi abria a porta — É perigoso se expôr assim nas ruas.

— São nossos súditos, o que há a temer? — comentou o patriarca, rindo.

— Acho que você não vai gostar da resposta — outro Kishi comentou reparar em alguém passando pelos guardas do portão traseiro.

Com passos apressados e acenando com os braços de um lado para o outro, um jovem chamou pelo patriarca. Ele tinha cabelos loiros bem cortados e vestes marrons presas por uma corda na cintura.

— Patriarca Osíris, lembra de mim? — gritava.

— Essa não — sussurrou o Kishi.

— Os Kishis não me deixaram entrar pela porta da frente — curvou-se diante do patriarca — Que sorte a minha, estava bem procurando por você. 

— O que deseja, Kenkushi? — abriu a porta e o convidou a entrar.

— Você quem coordena tudo por aqui — entrou no carro — Eu que devia lhe dirigir esta pergunta. 

Os Kishis assumiram as rédeas e a carruagem partiu.

— Todos temos problemas — cruzava os braços. 

— Nem todos têm discípulos para ajudar — sorriu tapando a boca — Perdão, mas falo sobre a pressão dos Senshis pela distribuição das águas. Eu penso se não seria interessante voltarmos a negociar com o Império Ao. Eles nunca nos negaram ajuda.

— Você é meu novo conselheiro, não discípulo — seu tom aumentou a ponto de os guardas escutarem do lado de fora — Encha suas mãos de trabalho dos outros e vai acabar caindo com o peso da sua ambição.

— Sim, minha alteza — inclinou a cabeça.

— Não falei por mal. Concedi uma posição parecida com a do seu pai no conselho para você ganhar confiança primeiro, ganhar experiência — disse pegando a peça que estava em seu bolso — Depois, vai poder se preocupar com coisas de adulto. 

— Eu sei que está me preparando para ser o futuro auxiliar do patriarca — esfregou as duas mãos — mal posso esperar para minha parceria com a futura Matriarca, a virtuosa, Yasukasa.

Osíris olhou pela janela e, batendo três vezes na parede do veículo, a carruagem parou. Ao abrir a porta, ele falou antes de desembarcar.

— Enquanto isso, eu estou no comando. E você ainda tem muito a aprender.

— Até mais, senhor — acenou, indo embora junto com a carruagem. 

"Que garoto estranho", pensava, sem nem olhar para trás. 

Diante dele estava um templo coberto, sustentado por colunas, quatro somente na fachada, com uma abertura alta e larga, guardada por duas estatuetas de bronze. Do lado de dentro, um corredor de bustos esperava por ele. Vários rostos, vários patriarcas, exibidos com uma placa de ferro abaixo das esculturas com seus nomes inscritos. Aos pés de cada um dos bustos, havia um prato raso com areia. Parando no mais recente, Osíris encarou diretamente para os olhos mortos da escultura, quando voltou para a peça "Rei" em suas mãos. 

"Quem dera as coisas fossem simples como um jogo", pensou. De repente, a chama do braseiro que ardia na sala enfraqueceu com um vento tímido. Guardando a peça, ele sentiu alguém por perto: 

— Já devia imaginar.

De repente uma figura coberta da cabeça aos pés, avançou contra ele sem sucesso. O punho que devia acertar a nuca encontrou somente ar, quase atingindo busto, se o inimigo não tivesse impedindo, segurando seu antebraço. 

O adversário puxava sua espada com a outra mão, o corpo de Osíris esquentava, na medida que desviava da lâmina adversária. A cada salto, desvio, agachamento, as veias de seu corpo saltavam. 

Por baixo da sua manga, havia uma braçadeira de ferro. Com ela, aparou o próximo golpe e utilizou da abertura para deslizar sua mão para o ombro do oponente, desatando o nó que sustentava a capa da figura. 

Com seus olhos amarelos e cabelos dourados expostos, a mulher buscou um golpe desesperado, que foi impedido antes mesmo da execução completa.

— Demorou para acabar dessa vez — sorriu suspirando — será que eu estou melhor ou você pior? 

— Fato é que ainda falta muito pra você, Yasukasa — dizia, limpando o suor da testa. No final da sala, ele reparou mais quatro observadores com o mesmo uniforme da princesa.

— Ei, patriarca — um deles acenou, mas foi beliscado.

— Cala boca.

Os quatro de antes se retiraram para a entrada do templo, deixando pai e filha à sós com os bustos.

— Eu vi a carruagem vindo para cá e não acreditei. Você sempre preferiu visitá-los pessoalmente, em vez de vir ao memorial — dizia ao seu pai, que retornava a admirar o busto mais recente da galeria.

— Você sabe que não é qualquer um que levanta aquela coisa — se agachou pegando um pouco da areia do prato das mãos.

— Ouvi falar dos Senshis — cruzou os braços — Anos atrás você já teria embarcado para ensinar uma lição a eles.

— Este acordo foi apoiado por você mesmo desde o último conflito — se virou para filha — Agora é tarde para reclamar. 

— Isso não significa que você tenha que lavar suas mãos. O tempo passou — apontou para o peito de seu pai — você gerou essa expectativa no povo e depois? As pessoas não se acostumaram a ver Senshis dando ordens em terras estrangeiras. 

— Você sabe quem gerou essa expectativa toda — apertou as mãos da filha com as suas ainda ásperas pela areia — e ele não está mais aqui. Temos que olhar para frente.

— Lá vem você falar de novo sobre meus avôs — removeu as mãos e bateu areia na roupa — não estou falando do passado, mas do presente e do futuro que está por vir. 

Osíris virou de costas novamente, limpando a areia das mãos no prato de volta:

— É tem razão. Talvez eu esteja com a cabeça no passado. 

— Eu só quero ajudar — disse encarando as costas erguidas do pai. 

— Já ajudou — juntou-se a ela — me lembrando de que tenho problemas maiores. Agora volte para seus cavalheiros, eles estão a sua… 

De repente, o forte relinchar dos cavalos ecoou pelo salão. Alguns gritos de ordem foram dados, mas o galope se aproximava quando, ao sair do templo, Osíris e sua filha encontraram os quatro acompanhantes de Yasukasa em guarda e Kenkushi ofegante atrás do cavaleiro vermelho que acabara de chegar, coberto de feridas.

— Eu tentei impedi-lo de vir para cá, patriarca, mas ele…

— O que está havendo, afinal? — advertiu Osíris. 

— As vilas do deserto — gritou o Senshi, descendo do cavalo cambaleando — Elas estão sendo invadidas neste exato momento! 

A notícia percorreu todos como um disparo de eletricidade. Os guardas abaixaram suas armas, voltando a atenção para Osíris, que cerrava seus punhos, sendo o único sem que os olhos tivessem saltado. 

No internato dos mirins, a multidão de alunos uniformizados corria ao sinal do alarme para formar no campo principal, onde todos os seus professores esperavam num tablado de madeira construído às pressas. As filas de alunos ocupavam todo o terreno, Tomio  percorria cada fileira corrigindo posturas e averiguando os presentes, até voltar ao tablado. Lá, encontrou Arata e os dois trocaram informações ao pé do ouvido. Yanaho, que estava entre os mirins, viu seu professor apontar exatamente na sua direção e desviou o rosto, quando Kazuya, que formava atrás dele, deu um tapa leve em seu ombro:

— Tenha postura frente a situação. 

— Tá, tá certo — respondeu depois de suspirar, virando para frente.

— Acha que se isso for uma emergência de verdade eles vão ligar? — Tsuneo retrucou em sussurros — Olha só para eles, conversando entre si naquele palco para ver como vão enganar a gente pra fazer o trabalho sujo de novo. 

— Aposto que é para limpar os estábulos — murmurou Emi na fila ao lado, engolindo seco. 

— Com tantos Senshis chegando assim — disse Yachi, que era o próximo da fila depois de Yanaho — Não pode ser brincadeira.

— Acho que logo logo, iremos saber — completou o menino da capa vermelha. 

Com a chegada de outros Senshis, Yachi engasgava e os outros mirins ficaram boquiabertos. Alguns passavam as mãos nos olhos por um momento. 

— Estão vendo o mesmo que eu? — Tsuneo tentou se esticar para fora da fila para tocar Yanaho no ombro.

— O que foi? — o mirim ergueu a vista por cima dos outros para ver.

Subiam no tablado os dois recém chegados, os demais prestando continência em respeito. O primeiro, que conversava com Tomio, calçava sandálias e vestia um kimono aberto, com um dos braços descansando sobre o par de espadas amarradas nas costas na altura da cintura.

— Aquele é o Musashi! Eu não acredito — Tsuneo dizia sem conseguir conter a empolgação.

— Esse nome não me é estranho? — disse Yanaho, levando a mão ao queixo.

— Como não o reconhece? — se indignou Emi — ele é um dos dez Senshi Principais!

— Não “um” — disse Yachi — O Senshi Principal. Meu pai lutou ao lado dele em missões. Me contou que Musashi nunca perdeu uma luta, sempre que era enviado aos campos de batalha as notícias de vitória chegavam em menos de uma semana. Nenhum Senshi que o desafiou chegou a tocar num fio de cabelo dele.

— Suponho que o outro também seja um Principal —  disse Yanaho, notando um de seus professores dar espaço para o segundo sujeito de cabelos vermelhos. 

Ele estava atrás de Musashi, voltado para os alunos, usando uma das mãos para fazer sombra nos olhos. Com a outra, ele carregava uma maleta pequena e escura, como suas roupas e luvas de couro.

— Aquele é Honda, médico e cirurgião. Um dos pilares no avanço da medicina Aka, não é atoa que meu pai chamava ele de mago.

— Então ele é dos bons?

— Dos melhores. Ele já reanimou mais de cem Senshis em campo de batalha, literalmente debaixo de flechas e com aríetes rompendo os portões. Isso sem falar nas vidas que salvou fora da guerra.

— Eu conheço ele — disse Kazuya.

— Sério? — virou Yanaho para seu amigo.

— Do que tá falando esquisito? — Questionou Emi ao lado — porque alguém como você conheceria um Principal?

— Foi há muito tempo — explicou-se.

Antes que o grupo pudesse continuar o assunto, um grupo de Senshis apareceu entre as filas, dividindo os alunos. Um por um, o grupo que circundava o aprendiz de Onochi foi se dispersando para as extremidades do campo. Quando percebeu, não havia um mirim que reconhecesse ao seu redor. Finalmente, outro Senshi veio para posicioná-lo em outro lugar.

— Yanaho — o tomou pelos ombros — Venha comigo.

O rapaz engoliu seco, olhando ao redor, imaginando onde o colocariam quando viu-se saindo daquele aglomerado de mirins. Olhou para trás e não via mais os Senshis Principais no tablado, somente Tomio e Arata. 

"Mas o que está havendo?", pensou com seu peito apertando.

Foi então que o Senshi que o tinha sob custódia deixou o jovem do lado de fora do portão de ferro. 

Lá, uma carroça simples, gasta pelo tempo, conduzida por um único cavalo, esperava por ele junto dos dois Senshis Principais.

— Saudações — acenou com as luvas — Você deve ser o antigo camponês Yanaho, oriundo do sudeste Aka. Estou certo?

— Mas… o que? — arregalou os olhos — Sim, sim senhor! — Abaixou a cabeça por um momento. 

— Temos ordens para levá-lo daqui, de imediato — disse Musashi, subindo no assento do motorista.

— O-O que eu fiz? — perguntou procurando onde embarcar.

Honda subiu no mesmo assento, como passageiro, estendendo a mão, sorrindo para o garoto com capa vermelha: 

— Nada que um garoto da sua idade já não tenha feito. Agora vamos, não se preocupe.

— Tudo bem — segurou nas mãos de Honda, subindo no transporte.


Ilustradora: Joy (Instagram).

Revisado por: Matheus Zache e Pedro Caetano.

   



Comentários