Nisoiro Brasileira

Autor(a): Pedro Caetano


Volume II – Arco 7

Capítulo 46: Longe de Casa

Em meio às dunas do deserto, dois sujeitos de vestes pretas caminhavam sobre a areia gelada daquela manhã, quando o sol nascente escalou o horizonte, cegando suas vistas por um instante. Os viajantes tinham olhos castanhos contra uma esclera negra, cobertos por vestes igualmente escuras com ornamentos brancos, que balançaram ao sopro forte do vento.

A dupla erguia os braços para se protegerem dos grãos de areia nos olhos e na boca, quando aquele que estava mais atrás, parou de se mover. A ventania parava, permitindo que tirasse a areia do seu cabelo espetado, enquanto olhava para a trilha de pegadas na areia que se prolongava até onde seus olhos podiam ver.

— O que houve, irmão? — seu companheiro mais adiantado reparava sua distração.

— Nunca estivemos tão longe de casa — respondeu Nagajiyu, voltando a caminhar adiante — é uma sensação estranha. 

— Nossa casa se foi há muito tempo — fazia sombra nos olhos com uma das mãos, avistando vilas mais a frente — O que estamos fazendo é por ela — completou Hirojiyu, enquanto os dois deslizavam pela a duna. 

— Tem razão, não temos para onde voltar. 

Arte dos dois gêmeos, Hirojiyu (Esquerda) e Nagajiyu (Direita)

Quando o dia já estava claro, um jovem virava em sua cama de um lado para o outro, agarrado nos lençóis, quando foi despertado por uma voz familiar.

Yanaho! — ele virou para um lado — acorde — sentiu uma mão balançando seu ombro.

Abrindo os seus olhos, Yanaho levantou de sobressalto ao reconhecer seu entorno. A janela ao lado, a plantação do lado de fora, o ranger da cama e dos móveis do quarto e o largo sorriso do homem que o acordara à beira da cama. 

— Pai, como você…O que eu estou fazendo aqui? — coçava os olhos com força.

— Não estava com saudades de casa? — riu, abraçando seu filho. 

— É, eu tava — pegou no ombro de seu pai, afastando o abraço — mas você está bem? 

— Olha para mim — levantou-se para pegar uma pá escorada na parede — é claro que estou.

— Está tudo tão — ficou de pé e andou pelo quarto — igual. 

— Não estava com saudades de casa? — perguntou Yoroho, novamente, abrindo a porta do quarto. 

— Já disse que sim — respondeu, percebendo um ruído surgir do lado de fora da casa — que barulho é esse? — olhou pela janela e não viu nada.

— Yanaho! — uma voz abafada chamava por ele. 

— Está ou não com saudades de casa, meu filho? — repetiu a pergunta. 

Aos poucos o ruído se tornava cada vez mais alto. O chão estremecia, como se um exército marchasse do lado de fora da casa. 

— Não está ouvindo isso, pai? — questionou Yanaho. 

— Pensei que estava com saudades — desabafou Yoroho. 

Percebendo a indiferença do pai, Yanaho passou por ele, saindo do quarto em direção à varanda. O barulho não cessava e, ao atingir a porta da saída, assim que colocou a mão na maçaneta, um vendaval levou as paredes de sua casa.

Como se um Kazedamu tivesse atingido seu lar, erguia os olhos para ver os pedaços da sua casa subindo para o céu. Estava no olho de um furacão, embora seus pés continuavam plantados no chão.

— Yanaho! — a voz rugia em meio à tempestade. A marcha do exército também não diminuía sua intensidade. 

Tapando seus ouvidos, Yanaho fechou os olhos com força e se encolheu no chão até que pôde reconhecer a voz que o chamava. A marcha cessou e parou de sentir a poeira agredindo suas bochechas. Abrindo seus olhos puxando todo o ar que podia, ele virou para o lado e lá estava Katsuo ao lado de sua cama. 

— Estava tendo outro pesadelo, poxa — disse o amigo colocando a mão na cintura.

Vendo onde estava, Yanaho reconheceu o alojamento dos mirins. Tirando as mãos da cabeça e controlando a respiração, ele se sentou na cama.

— Não precisava ter me acordado. Eu cobri a vigília de ontem e estou livre pela tarde. 

— Eu, eu não queria te atrapalhar, você sabe, mas esses pesadelos, já estão me assustando. 

— Vou ficar bem, anda — pegou o uniforme pendurado na cabeceira da cama e se levantou — Já me acordou, então deve ter motivo.

Enquanto se vestia, ele aproveitava para usar o reflexo do vidro na janela para ajeitar seu cabelo, ouvindo as explicações de Katsuo:

— É que, Arata pediu para avisar que você tem visita. 

Sem fechar seu uniforme e de cabelo embaraçado, o mirim disparou, ainda descalço, pelos dormitórios e, cruzando o pátio até o portão principal do complexo, esbarrou com um dos Senshis.

— Cuidado colônia de férias — disse Arata limpando as vestes — tem andado muito ansioso ultimamente.

— Onochi? É ele? — perguntou Yanaho.

— Ei, olha só para você — o professor levantou a voz — Sequer está calçado. 

— Por favor, é o Onochi?

— É — suspirou, balançando a cabeça — termine logo essa visitinha. Vai pagar por essa displicência depois. 

O grande portão de ferro era a entrada para o complexo enorme cercado por muros de concreto. Arata fez um gesto para os guardas do portão que o abriram para permitir a entrada do convidado. Onochi se curvou aos Senshis em agradecimento antes de botar os dois pés no complexo.

— Fala aí, como está o garoto da capa vermelha? — estendeu a mão para um aperto — soube que passou na última prova. Parabéns!

— Como está meu pai? — apertou as mãos.

— Eu vou deixar vocês por aqui — disse Arata indo embora.

A saída do professor deu espaço para um olhar desaprovador de Onochi, que foi respondido por um Yanaho inflexível.

— Falta pouco para juntar o dinheiro para comprar a parte da fazenda em que meu pai trabalha. Depois de todos esses anos, ele finalmente vai poder descansar, né? — disse Yanaho

— Receio ter más notícias — coçou a cabeça — ele está bem, mas pioro.

Antes de continuar, Onochi sentou-se em um banco debaixo da sombra de uma árvore. Yanaho continuou de pé.

— Como assim? — insistiu o mirim.

— Akemi liberou seu pai dos serviços. Disse que seu pai estava dando mais trabalho do que resultados para ele. Chika e eu estamos cuidando com ele em uma casa que comprei na Vila da Providência.

— O quê? Então o dinheiro que guardei até hoje, todos esses anos de serviço não vai prestar para nada?! — bateu o pé. 

— Claro que vai. Você sustentou o seu pai por anos com esse dinheiro. Só conseguimos indenizar Akemi agora por causa das suas economias. 

— Não devia ser assim. Ele gostava de trabalhar e morar lá. Meu pai nunca gostaria sair dali.

— Ele não tem escolha. Antes disso, cheguei a pagar um médico que conheço daqui, um dos melhores — disse suspirando — Ele disse que conheceu casos parecidos, nenhum deles reversíveis.

— Deve haver alguma coisa — sentou-se no banco ao lado de Onochi, cabisbaixo.

— Vamos dar o nosso melhor com o que está ao nosso alcance — disse estendendo a mão até a do aluno. 

— As vezes penso que deveria estar lá com ele — encarou sua mão cicatrizada.

— Seu pai ainda precisa de você — manteve a mão estendida — quando falo de você, os olhos deles brilham de orgulho. Quer ajudar seu pai?

— Claro que quero — apertou mãos com seus mestre.

— Então conclua seu treinamento e se torne um Senshi. Ele estará esperando por você, Yanaho. Vou garantir isso.

— Se você diz… — disse indo até a porta — Mais alguma coisa, Onochi? 

— Está querendo se livrar de mim? — riu, se levantando. 

— Desculpa — admirou o céu através das folhas da árvore — eu só quero ficar… 

— Para sua sorte, vou viajar nos próximos meses — interrompeu colocando a mão na cabeça do aluno — para treinar com meu irmão e mestre, Imichi. 

— E quando nós vamos treinar de novo?

— Vai levar um tempo, vamos para bem, bem longe. 

— Certo, então eu já vou — manteve os olhos fitos no chão. 

— Ei, tente se animar com seu progresso — disse, levantando Yanaho do banco — Seu treinamento alcançou um ótimo estágio. Eu diria que você já controla técnicas Shiro tão raras e antigas que duvido que entre numa luta onde elas não sejam necessárias. 

— Eu vou tentar, obrigado Mestre Onochi — assentiu sorrindo timidamente. 

— Continue sua jornada, na próxima vez verei se consigo uma liberação para você visitar seu pai — disse com os dois caminhando. 

Quando retornaram à entrada, os guardas já aguardavam o Shiro com os portões abertos. Após um breve aceno de Onochi, ele e seu aprendiz foram em direções diferentes.

A caminho do alojamento, Yanaho caminhava cabisbaixo, chutando qualquer pedra que estivesse em seu caminho. Alguns mirins olhavam discretamente para ele, mas a cabeça do mirim estava em outro lugar.

Quando retornou ao quarto, abriu a gaveta próximo à sua cama e ao abrir o fundo falso nela ouviu batidas na porta seguidas de um giro da maçaneta. 

— Yanaho? — chamou Katsuo, entrando no quarto — aconteceu alguma coisa? — Todos perceberam seu estado.

— Só quero ficar sozinho — disse sem se virar — Não me importo com o que os outros pensam — fechou a gaveta. 

— Poxa — se sentou em sua cama — onde está o Yanaho que fala tanto de ser um exemplo? — levando as mãos até embaixo de sua cama, puxou de lá uma moldura — sabe que podemos contar um com o outro — mostrou uma pintura de um céu azul. 

— Eu agradeço, Katsuo — sentou-se na cama e se estirou — mas preciso de um tempo, de verdade. 

— Então ainda vai no refeitório mais tarde? — abria a porta para a saída. 

— Estarei lá — respondeu Yanaho, virando para a parede.

Ao final da tarde, os mirins terminaram suas atividades, se dirigindo ao refeitório. Era um lugar extenso, com o chão coberto por mesas largas rodeadas de cadeiras. O pôr do sol ainda possibilitava uma claridade através das janelas no alto, sem necessidade de tochas ou lâmpadas.

Katsuo passava pela comida servida, recolhendo um pedaço de pão com uma mão e enchendo a outra até os braços de ração. Quando sentou-se à mesa puxando duas cadeiras para si, outro mirim cuspia a sua comida no chão.

— Isso aqui é horrível — disse Jin, jogando a ração na mesa — Não tem gosto de nada, é tipo água comestível. 

— Era só ter pegado o pão, idiota — respondeu Umi. 

— Já estou enjoado daquele gosto. 

— Eu não — sentava Etsuko ao lado, esticando a cabeça para olhar a comida que ainda restava no final da sala — e cara, parece que o pão acabou de novo — levou uma das mãos à cabeça.

— Yanaho já chegou? — perguntava Katsuo para mesa.

Os mirins deram de ombros, ao passo que ele fixava os olhos na entrada até que viu Yukirama, que atravessou a porta, pegou o que iria comer e se sentou isolado de todos. De repente percebeu uma mão se esgueirando por cima de seu ombro.

— Não vai comer esse pão? — perguntou Kazuya.

— É… está no meu prato né? — respondeu estapeando o braço do garoto.

— Certo — respondeu Kazuya sentando em cima da cadeira na qual Katsuo guardava lugar, esmagando sua mão — onde está Yanaho? 

— Ele… — engolia a dor, puxando a mão — ele disse que viria ao refeitório. 

— Essas visitinhas que ele recebe — dizia Tsuneo com a boca cheia — com certeza alguma coisa de fora incomodou ele.

— Isso é errado — disse Kazuya — a regra é nos concentramos aqui, alheios de famílias.

— Teria alguma ideia do que está deixando Yanaho tão abalado, Katsuo? — perguntou Masori, que acabava de se sentar com eles.

— Eu não sei se posso, poxa. — colocou os braços sobre a mesa. 

— Corta essa cara, Yanaho nem podia saber dessas coisas — disse Etsuko estendendo o prato vazio — e você vai comer esse pão ou não?! 

— Pode nos dizer, Katsuo — sugeriu Usagi, sentando à frente do garoto — não se preocupe.

— O pai de Yanaho está doente, é tudo que sei — trouxe seu prato mais para perto, onde só restava o pedaço de pão.

— E você Masori — Etsuko continuou — não era para estar com o Yukirama?

— Quem? — ela respondeu.

Com exceção de Katsuo e Kazuya todos na mesa trocaram olhares e risadas com a resposta da garota. Alguns chegaram a olhar discretamente para Yukirama que terminava sua comida e se retirava, até que por aquela porta, atravessou Yanaho.

Pegando suas rações, Yanaho foi para a mesa que Yukirama havia abandonado e ficou ali. Imediatamente, Katsuo saltou do seu assento e correu perto dele.

— Você demorou — colocou seu prato na mesa — eu peguei esse pão para você também, sei que prefere qualquer coisa além das rações. 

— Obrigado, mas — afastou o prato — nem estou com fome direito. 

Vindo de outra mesa, Kazuya parou atrás de Yanaho projetando uma sombra por cima dele, antes de cutucá-lo no ombro. 

— Por que não se senta com os outros? — perguntou Kazuya.

— Agora não, Kazuya — respondeu, comendo a ração. 

— Desde quando existe uma hora para isso? — Kazuya insistia em cutucá-lo.

— Desde que eu tive vontade de fazer outra coisa — Yanaho continuava comendo.

— Kazuya pode voltar para mesa, ele só está um pouco chateado — Katsuo se levantou, colocando-se entre os dois para afastar o mirim mais alto.

— Eu nunca entendi uma coisa aqui, principalmente vindo de você — Katsuo tentava empurrá-lo mas Kazuya não se movia — se fica aqui desse jeito, por que não vai embora?

As pernas da cadeira arrastaram no chão, Yanaho se levantou pegando Kazuya pela camisa. Todos os mirins pararam o que faziam para ver o que se passava.

— Quem é você para me dizer o que fazer?

— Yanaho, calma, ou então… 

— O que te faz agir assim? — interrompeu Kazuya pegando na mão que o segurava — pode ser punido, qual a razão disto?

— Como você poderia saber? — o empurrou — por acaso nunca teve sentimentos por ninguém?

— Não sei.

A resposta de Kazuya deu um nó na garganta de Yanaho, que o soltou imediatamente. Por trás dele, Usagi aparecia para afastá-lo dali, perguntando:

— Está assim por conta de seu pai, certo?

Quando se deu conta da briga, o garoto percebeu os olhares de todos voltados para ele. A partir disso, balançou a cabeça e saiu correndo, esbarrando em Tomio que já estava prestes a abrir a porta. 

— Que barulheira é essa por aqui? Não lembro de estarmos em festa — reclamou, vendo Yanaho correr para longe.

— Relaxa professor — disse Etsuko com um pedaço de pão nas mãos — é que o Katsuo não queria me dar o pão que ele não comeu.

Na medida em que Tomio colocava os jovens em forma, Katsuo reparou em alguém cruzando a porta pelas costas do professor.

Já de noite, ao extremo norte do complexo, Yanaho estava sentado à beira do rio que cortava o lugar, com os braços próximos do corpo, escondendo algo no peito. Admirando o céu noturno, sua mente trouxe memórias do seu pai. 

“O pôr do sol, meu filho…”

Seu devaneio, no entanto, foi interrompido com a chegada de alguém.

— O que está olhando afinal? — perguntou Yukirama com uma das mãos no bolso.

— O céu — se encolhia — o que você quer?

— Que tédio olhar para isso. Está tudo escuro.

— Às vezes quando não temos respostas na terra, é de lá que elas vem, estando claro ou escuro. 

— O shiro encheu a sua cabeça com essas coisas? — se aproximou ainda de pé — o que está segurando? — apontou para os braços cruzados de Yanaho. 

— Olha é melhor eu ir embora — disse preparando para se levantar.

— Eu ouvi sobre seu pai — disse, fitando seu reflexo no lago.

— E veio aqui para comparar nossos pais também? — subiu a voz — Aposto que vai dizer agora que o seu foi um grande Senshi enquanto o meu é apenas um camponês. 

— Sente saudades também? — se sentou à beira do lago. Yanaho fez o mesmo logo depois.

— Então… — notava a expressão fria do rival — é assim que se sente, esse tempo todo?

— Eu me lembro da noite de quando quando partiu. Passei ela toda esperando ele voltar para depois, não restar nada fora dor e raiva. Eu só fui reconsiderar, no nosso último embate — os dois se encararam por um momento.

— E como você lida com isso? — voltou seus olhar para palma de sua mão com uma cicatriz. 

— A vida é como esta água — fez ondas nas águas com as mãos — mesmo que eu tente, nada vai mudar onde ela vai terminar. A dor não vai embora, mas posso aceitá-la e controlar como ela me afeta. E para mim, só resta honrar a memória dele — cerrou o punho com a mão molhada — Eu percebi isso quando lutamos. 

Finalmente olhando para Yukirama, o aprendiz de Onochi desceu os braços, revelando o que guardava no peito: uma espada de madeira, com os dois pedaços unidos por faixas. 

— Meu pai me deu isso quando eu era criança. Devia ser só para brincar, mas depois de tanto tempo com ela, pensei que poderia usar para algo mais. Talvez para ser alguém, ser importante — levantou a espada — esse sempre foi meu objetivo. 

— Se isso é o que lhe restou — se levantou Yukirama — foque e lute por isso, siga em frente, idiota — saiu andando. 

— Seu pai — as palavras de Yanaho paralisaram Yukirama — me tirou isso uma vez porque estava usando mal. Depois disso ele me devolveu para me motivar, me mostrando o que um Senshi deve ser — se levantou — ele nunca morreria por nada.

— Eu sei, mas isso é o que me restou agora. Sou o encarregado disso daqui em diante — voltou a andar.

— Obrigado, Yukirama — disse com o seu rival já distante.

No dia seguinte, todos os mirins saltavam de suas camas, despertados por uma trombeta cujo som era mais forte que as usadas na rotina. Durante a tempestade de passos, portas se abrindo e se fechando, Yanaho despertou em igual estado de alerta: 

“Essa trombeta é a de convocação. Algo muito ruim aconteceu, será que…”, pensou.

— Katsuo! — balançou o garoto que estava sonolento na cama. 

— Esse barulho… nunca ouvi ele antes — balbuciou. 

— Anda, sem enrolação. Estamos sendo convocados para a capital com urgência. Pode ser uma invasão.



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